Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Ciranda de fatos e furos

CASO ZILDA IOKOI

Samir Thomaz (*)

A polêmica em torno dos erros no livro de História escrito pela professora Zilda Iokoi e publicado pelas Edições Loyola vem mostrar uma faceta pouco conhecida dos autores de livros didáticos no Brasil. Trabalho há alguns anos no mercado editorial e sei do que estou falando. Há autores sérios, perfeccionistas, obcecados pela precisão e pela ética em suas obras, bem como aqueles cujo único elo com suas casas publicadoras se dá por meio do departamento de direitos autorais ? para receber os ditos cujos, naturalmente.

Não digo que este seja o caso de Zilda Iokoi. Na verdade, não conhecia a professora antes de o caso vir à baila, com grande repercussão no meio acadêmico, denunciado pelo jornalista Elio Gaspari em sua coluna no jornal Folha de S. Paulo. Mas, ao empurrar a culpa pelos erros do livro para a equipe de profissionais da editora, Zilda Iokoi, que é também chefe do Departamento de História da Universidade de São Paulo, descamba para a sutil leviandade. Seus argumentos podem enganar ao grande público, mas não enganam aqueles que conhecem os meandros por que passam os originais de um livro, didático ou não, em qualquer editora decente.

É obrigação de qualquer autor que publique um livro a sua leitura final, aprovando ou sugerindo os últimos retoques na obra. É a praxe. No caso de livros didáticos, essa responsabilidade se multiplica diante do alcance que esse tipo de obra costuma adquirir num país cuja educação é subsidiada em larga escala pelo governo. As editoras vendem milhões de livros todos os anos ao MEC, que os distribui aos alunos da rede pública. Nada mais natural, portanto, que o autor assuma a responsabilidade pelos conceitos que emite e que estes sejam pautados pela ética e pela correção.

Dever ético

Se a editora permitiu falhas, como argumenta a professora, elas deveriam ter sido apontadas pela própria autora antes de o livro seguir para a gráfica. Se houvesse algum ponto com o qual ela não concordasse, era de seu direito pedir a retificação do ponto em questão. Não cabem acusações de que houve cortes na edição, pois isso faz parte do dia-a-dia das equipes editoriais ? cortar, acrescer, sugerir, até mesmo escrever a obra. Nem cabe a acusação de que a revisão não foi feita a contento. Revisores, em princípio, devem zelar pelo cotejamento de provas, não pelo conteúdo do que revisam, muito embora, profissionais altamente gabaritados, muitos deles o façam.

Nada justifica os erros apontados por Elio Gaspari em sua reportagem. Muitos deles pouco ou nada têm a ver com cortes na edição. São erros crapulosos de quem, ao escrever, ou não tinha domínio sobre o que estava escrevendo, ou não costuma zelar minimamente pela precisão de uma informação, prática, aliás, que é um dos preceitos básicos do jornalismo. O caldo entorna de vez ao se verificar, pelos depoimentos da chefe da História da USP, que, uma vez impresso, ela notou os problemas no livro. Ou seja, foi testemunha ocular de seu próprio engodo. Ainda assim, permitiu que o livro continuasse circulando e fosse incluído na bibliografia de um concurso público, por conta do qual foram vendidos cerca de 2.000 exemplares dele.

Por fim, depõe contra a professora o fato de ela contestar a forma como Gaspari teria chegado aos erros que apontou em sua matéria. Trata-se de um outro ponto no qual Zilda Iokoi, no afã de se defender, revela uma primária falta de conhecimento sobre a natureza do trabalho do profissional de imprensa. Não importa se alguém sugeriu a pauta, ou se Gaspari descobriu por acaso os erros. Numa sociedade democrática, o jornalista tem o dever ético de buscar a verdade dos fatos, principalmente quando estes envolvem questões de cidadania, como é o caso. É a essência do seu ofício. Não se pode, por isso, falar em "linchamento público" ou em "desqualificação da rede pública" por parte do jornalista. Sem o objetivo de lesar a figura pública da professora, que, a despeito dos equívocos em que se enredou, é digna do respeito da sociedade e de seus pares, é preciso acima de tudo que se atenha aos fatos, que estão aí e são inquestionáveis.

(*) Editor-assistente da Editora Ática e autor dos livros Meu caro H (Ática, 2001) e Carpe diem (Atual, 2000), entre outros. Estuda Jornalismo na Faculdade Cásper Líbero