ARGENTINA
Jorge M. Burnik (*)
Por difícil que seja aceitá-lo, ainda estamos discutindo e nos canibalizando sobre o "estereótipo do jornalista". De um lado os formados academicamente, do outro aqueles cujo treinamento é o resultado da aula do dia-a-dia no exercício da profissão, em que a necessidade forneceu o espaço e a idoneidade perpetuou o ofício. Quem alguma vez passou por alguma aula de jornalismo sabe (ou deveria saber) qual jornalista quer ser e qual não quer ser. Não há modelos adaptativos nem universalismos. A criação do conceito jornalístico tem seu próprio microentorno, segundo o lugar e o espaço, suas próprias normas e ética. Mas uma virtude é fundamental, além de algum conhecimento da técnica de produzir valores culturais, sejam notícias, colunas de opinião, pesquisas em geral: a virtude de referência é a própria vigilância do jornalista em manter a humildade de quem está sempre aprendendo, mesmo após 30 anos de profissão, aprendendo de tudo e de todos.
Se um dia quem exerce a profissão descobre que já não há nada que precise saber, então a hora da aposentadoria terá chegado.
Alguns meios de comunicação na Argentina, por exemplo, estavam at&eaceacute; os anos 90 (outros, até hoje) assolados por uma geração de jornalistas indicados para a profissão por algum funcionário de governo; a função destes comunicadores era obviamente dar publicidade ad hoc ao exercício das atividades do político que o tivesse "indicado". A mídia era infestada de demagógicos comentários que não procuravam formar, senão enredar, acontecimentos noticiáveis como fatos simplesmente. Muito foi e será discutido a respeito dos critérios de noticiabilidade, mas acho importante salientar aqui uma diferença basilar: uma coisa é o jornalismo e outra são os meios ou a mídia em que a profissão acontece todos os dias. Mesmo que um tenha necessariamente que aparecer "aconchegado" ao outro, as técnicas de funcionamento e as prioridades de cada um poderão, eventualmente, divergir. Este é um fato mais comum do que se pensa.
A metáfora do funil
Muitos jornalistas do interior às vezes puderam sentir que o seu produto parecia estéril na hora de mudar aquilo de errado na realidade. Quem trabalhou ou trabalha num acanhado meio de comunicação sabe quão difícil é às vezes modificar para melhor o entorno. Isto parece potenciado numa realidade sociogeográfica como a da Argentina, país que tem estrutura funcional parecida à de um funil, onde tudo que não é centro (Buenos Aires) é periferia. E esta "periferia", composta pelas chamadas províncias, funciona como os outrora pequenos feudos, onde o senhor feudal é o governador. Que geralmente está associado aos meios de maior porte em cada região.
Com tudo isso contra, não parece descontextualizado que cotidianamente os jornalistas experimentem frustrações profissionais, quando não denunciam ameaças e perseguição ideológica. Fato incentivado pelos acontecimentos dos últimos meses, quando, perante a crise e a falta de recursos financeiros e para manter a linha de pensamento das massas, se apela à coerção na forma de ameaças de morte a jornalistas e outros tipos de violência psicológica.
Fora das fronteiras de um país a imagem que se passa às vezes dista bastante daquela que têm os protagonistas autóctones. Isso tem características singulares no caso da mídia argentina. Continuando com a metáfora do funil, a mídia do centro, com todos os recursos técnico-financeiros, reflete constructos próximos (ao centro de produção), restando à mídia mais afastada a tentativa de fazer a mesma coisa no seu lugar de base. Mas a pressão exercida, politicamente algumas vezes e de grandes empresários em outras, faz com que o interior (com escassas exceções) não tenha uma imagem de progressão com peso nacional, e obviamente nem se fala de projeção internacional. Em outras palavras, para um estrangeiro desavisado, a Argentina é Buenos Aires, porque no seu universo cognitivo não há imagens do interior do país, que é a porção territorial maior, com 23 províncias ? uma das quais é Buenos Aires, mais a Capital Federal (DF).
De fato, há 20 anos estamos vivendo nossa adaptação ideológica do conceito de democracia, porém seria bom que a mídia argentina produzisse para todos e projetasse seu trabalho em todas as direções possíveis, desembaraçando-se da coibição dos poderes político-financeiros que ainda a parasitam.
Os canais de televisão do interior, por exemplo, quando denunciam a prevaricação de um funcionário público estadual, não são levados a sério; quando a mesma denúncia aparece na mídia nacional, então merece o interesse da Justiça. Não é uma questão de ver quem concorre com maiores recursos ou atinge o interesse da maior parte das pessoas; trata-se, sim, de agir como se a mídia fosse uma (única), composta por muitos suportes, coexistindo para melhorar a vida de todos, e não o ibope de poucos.
Hoje, a mídia argentina está sendo abençoada com uma virtual cumplicidade e credibilidade do povo, como o expressou o humorista Fabian Gianola: a única semelhança entre a mídia e os políticos atualmente é que a mídia corre com o povo e os políticos correm do povo…
Em outras palavras, a sociedade argentina está se aglutinando de uma maneira diferente hoje, e a mídia tem muito a ver com isto, mas ainda há bastante a ser feito, pois muitos jornalistas não estão à altura das mudanças que acontecem e nem pensam em "ontologizar" o próprio ser jornalístico com o ser social. Uma prioridade hoje da mídia argentina é o trabalho no interior para integrar e extinguir a metáfora do funil: a concepção da nossa totalidade social é mais do que a soma das partes, ou pelo menos deveríamos lutar para que assim fosse.
(*) Jornalista graduado na Universidade Nacional de Misiones, Argentina