ALÉM DA NOTÍCIA
Muniz Sodré (*)
Numa de suas crônicas recentes (O Globo, 16/4), Luis Fernando VerEssimo detecta, em certas simplificações correntes do tipo "Bin Laden é sócio de Bush", a presença de uma incitação a que nos desobriguemos de pensar. Antes de mais nada, é interessante observar que o cronista, excepcional, cujo texto antes encaminhava-se prioritariamente para o humor, envereda cada vez mais pelas vias da reflexão argumentativa, do mini-ensaio especulativo.
Essa inclinação ? rara, mas encontrável em outras figuras da imprensa brasileira ? pertence a uma tradição jornalística que nem sempre foi muito evidente, mas que permanece como um sinal daquilo que o jornalismo poderia oferecer de melhor. Nos publicistas, comentaristas e polemistas de todas as latitudes, estão latentes possibilidades reflexivas para o jornalismo ainda não plenamente desenvolvidas.
Ao contrário do que possam pensar e apregoar os "apenas-práticos" da profissão, desde os antigos "reis do lead" (lembro-me de ter um deles dito em livro que Guimarães Rosa fazia literatura de bula medicamentosa) até os guardiões das máquinas de moer jovens talentos nas redações de jornais, o jornalismo não se reduz à exposição simplificada de fatos. A notícia, em que a simplicidade esclarecedora é sempre desejável, é apenas uma das formas ou gêneros informativos. E uma forma que, na imprensa escrita, demanda urgente renovação textual, frente à pressão da redundância provocada por sua excessiva repetição na mídia eletrônica.
Se mesmo a notícia comporta "pausas para a meditação", em outras formas é possível conceber brechas no açodamento industrialista dos prazos de fechamento das páginas e na subestimação do público-leitor para que alguma reflexão possa ocorrer. Sabemos que, de modo geral, a mão-de-obra técnica da indústria da comunicação (jornalistas, diretores de imagem de televisão, cineastas, publicitários, estrategistas de necessidades ou de marketing etc.) costuma afetar um certo desprezo pelos teóricos e acadêmicos ? uma vez que, nestes, o fazer sobrepõe fortemente à auto-reflexão. Ao mesmo tempo, intui por experiência continuada que o tradicional discurso das ciências sociais e humanas não dá conta da realidade representacional produzida pelo campo da mídia.
Por outro lado, tem ficado evidente que da fala puramente empirista nada sai de verdadeiramente reflexivo sobre a profunda afetação da vida humana na contemporaneidade ? pelas práticas comunicacionais ou mesmo por todas as outras velhas práticas hoje alteradas em sua natureza profunda pela presença invasiva da mídia, basicamente da chamada "mídia espetacular". É que falta um outro tipo de prática, a prática conceitual, e agora em termos capazes de integrar a atividade dos produtores do campo comunicacional com a atividade reflexiva (acadêmica ou não) da comunidade leitora.
O conceito não é privilégio da Academia, já que se pode retraçar uma parte de sua história também no jornalismo ou no publicismo, seja em editoriais, artigos ou crônicas. E talvez nunca tenha havido na História tanta necessidade quanto agora de um pensamento conceitual capaz de dar conta da gigantesca operação de reciclagem, pelo mercado, das organizações culturais tradicionais, num contexto de abolição da racionalidade e da socialidade. Tudo pode ser reciclado pelas formas hegemônicas a serviço do mercado, inclusive a sofisticada filosofia acadêmica, que termina sendo diluída na vulgata cibernética ou nos best sellers de auto-ajuda. Pensamento, aí, transforma-se em adorno modista.
Por isso tudo, é alvissareiro registrar em cronistas e colunistas da imprensa nacional a tendência a uma reflexão (com acento conceitual, mas sem o vezo complicado da Academia) sobre o cotidiano, a política e a economia capaz de efetivamente orientar o leitor no cipoal dos sedutores enganos da cultura do espetáculo. Viver com alegria, sim, mas sem simplificações anestesiantes, sem que nos desobriguemos de pensar, como sugeriu o cronista. Pode estar aqui um forte do indício do jornalismo que ainda vem.
(*) Jornalista, escritor e professor-titular da UFRJ