Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

O racismo não visto

Por que muitos jornalistas esportivos brasileiros condenaram atitudes racistas ocorridas recentemente nos estádios de futebol europeus, mas não condenam com a mesma veemência as ocorridas aqui?

O caso da ofensa racial do jogador argentino Leandro Desábato, preso pelo delegado Osvaldo Gonçalves, da Polícia Civil de São Paulo, contra o jogador brasileiro Grafite foi caracterizado como ‘injúria qualificada com agravante de racismo’, de acordo com o artigo 140 do Código Penal, parágrafo terceiro.

O fato jornalístico é este em si mesmo e deveria até ter sido comparado a casos de agressões físicas entre jogadores ou entre integrantes de uma equipe técnica em alguma outra partida. Em muitos casos, as pessoas foram à delegacia e fizeram o boletim de ocorrência. É o trivial. A imagem da televisão começou também a ser usada pós-jogo, para coibir atos de agressão física cometidos por jogadores à revelia do árbitro. A imagem é geralmente usada pela Justiça Desportiva para punir o autor da agressão. Agressões verbais também já foram motivo de processo, como chamar o juiz de ‘bêbado’, por exemplo. Ou seja, são fatos corriqueiros do futebol e que nem por isso deixam de implicar injúria ou agressão. Exageros à parte, confesso não saber por que xingar um árbitro de bêbado é ofensa moral pior que chamar de ‘negro de merda’, ‘macaco’ etc.. O mais engraçado é que os casos de ofensa com conotação racial reincidem sobre as mesmas pessoas, que são negras, é claro. Mas parece que é escuro, opaco. Assiste-se a um jogo e comenta-se outro, como dizem os futebolistas.

Na Europa, o jogador Roberto Carlos, que para muitos daqui nem negro é, sofreu discriminação racial da torcida de time adversário e muitos outros jogadores, em geral, de origem africana e latino-americana, passam pela mesma situação. Lá, as punições se tornaram duras. Não precisa necessariamente um jogador do time ofender o do outro, basta a torcida daquele time ofender que o clube, como instituição, acaba punido.

Michael Jordan, Pelé, Daiane dos Santos, Carl Lewis precisam ser gênios para serem reconhecidos, do contrário, são ignorados, viram ‘negro de merda’. Dito assim, a constatação soa superficial e estranha aos ouvidos dos nossos jornalistas. Eles logo se apressarão em dizer que no Brasil não é assim.

De disfarce em disfarce

Tenho observado ultimamente que boa parte dos nossos jornalistas tem sobrenome que denuncia a origem familiar. Boa parte dessas famílias que aqui chegaram, por diferentes razões, conseguiram se inserir na sociedade com muito esforço e brilhantismo. Algumas famílias constituíram associações, sociedades e comunidades mais ou menos fechadas. Tanto as famílias bem-estruturadas quanto as associações que lhes davam amparo foram as dotações iniciais de muitos jornalistas, contribuindo na formação e na viabilização de oportunidades sociais. Viver no Brasil para muitos deles foi um alento, dado que o ambiente institucional e cognitivo fez com que se desenvolvessem.

Os negros, bem, nem precisa dizer. Com esses aconteceu exatamente o oposto. É natural, portanto, que jornalistas convivendo nesse ambiente tenham como referência forte as relações sociais construídas no país. Natural também é que não entendam que aqui existe racismo, muitas vezes sutil. Ninguém pensa na hora em que troca de calçada ou prende a respiração quando se aproxima um negro. Não é à toa que a palavra ‘negão’ soe tão simpática. Tudo acaba parecendo uma provocação futebolística.

De disfarce em disfarce, de carnaval em carnaval nossas relações raciais foram se enraizando nas instituições, entre elas, a mídia. A mídia reflete esse sentimento comum. A mídia esportiva, então…

‘Ginga brasileira’

A incapacidade de nossos jornalistas esportivos em lidar com a questão do racismo no futebol é chocante. Alguns chegaram a dizer que chamar alguém de ‘negro safado’ é o mesmo que chamar um estrangeiro que visita o país de ‘gringo’. São grandes jornalistas, mas raciocinam com a cabeça na Europa e nos Estados Unidos. Acreditam que racismo é somente ódio racial, e não relações raciais estruturantes, que escolhe quem emprega e quanto pagar. Nem entendem que os negros querem é o poder dividido com eles. Pode ou é privilégio demais?

O futebol é uma das raras oportunidades de inserção social do negro. Ser genial jogando bola é uma estratégia de sobrevivência vital. Esse capricho da natureza humana que tanto nos encanta e nos identifica com as pedaladas do Robinho é o mesmo que nos denuncia.

Caco Barcellos é um dos raros jornalistas que foram além do encantamento com a ‘ginga brasileira’, descobriu facetas das mais profundas do Brasil e quem são suas vítimas, mas o seu trabalho é classificado como ‘estilo’, nada mais. Quem quer ver o outro Brasil? Quem quer desencantar-se rapidamente com a rica diversidade brasileira, tão saudada, mas que não vai a lugar algum? Ou melhor, o jogador vai jogar na Europa, pelo menos, lá terá melhores condições de vida do que aqui. Os jornalistas não estão lá, mas a cabeça deles está. É como se o problema se tivesse originado lá. Aqui, bem… na próxima partida a gente comenta. É isso.

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Economista, doutorando em Economia Aplicada/IE-Unicamp