Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O sorriso da violência

IMPRENSA & CRIME

Muniz Sodré (*)

Na mesma edição de jornal que noticiava uma passeata carioca em favor da paz nas ruas da cidade (O Globo, 13/5/02), uma outra notícia dava conta dos sorrisos debochados de dois adolescentes de classe média que acabavam de ser presos por roubo de automóvel. Foram capturados por policiais depois de terem se apoderado de um veículo à força e em seguida empreendido em fuga frenética, durante a qual abalroaram dois carros estacionados.

Semanas atrás, um outro riso inquietante tinha merecido destaque jornalístico: Fernando Beira-Mar, o famigerado traficante de drogas, ria às bandeiras despregadas durante o seu traslado de Brasília para o Rio de Janeiro. E logo depois, outro chefe de tráfico, Celsinho de Vila Vintém, era fotografado com um sardônico sorriso no instante de sua captura pela polícia. Sorria e avisava que continuaria dirigindo o seu negócio de dentro da penitenciária ? no que foi confirmado em entrevista jornalística por uma alta autoridade policial.

Não se trata, como parece ter inferido a imprensa, de atitudes isoladas, nem de mero extravasamento individual. O riso em questão está interligado a um fenômeno que vem caracterizando fortemente os espaços urbanos da América Latina: a mudança estrutural de uma violência política para uma violência social. Este último, aliás, é o título de um texto do portal na internet da Associação de Pesquisadores Alemães da América Latina (Arbeitsgemeinschaft Deutscher Lateinamerikaforschung), republicado pela revista alemã Humboldt. Segundo o texto, vem aumentando dramaticamente a escalada da violência social nos países latino-americanos, como conseqüência direta da insuficiente imposição e segurança jurídica da coerção estatal.

Atente-se para o seguinte:


"(…) É em face do crime organizado, sobretudo, mas não apenas o narcotráfico, que se nota claramente a ausência da coerção estatal. Não é casualidade que os cartéis de drogas sejam particularmente ativos nos países em que a debilidade do Estado é especialmente evidente devido a guerras internas.

(…) O desenvolvimento socioeconômico das últimas décadas constitui a causa central do incremento da violência e da criminalidade: o êxodo rural maciço, a urbanização, ao lado da pobreza e marginalização de amplas camadas da população, são também um solo fértil para a criminalidade.

(…) A diminuição da segurança da vida no dia-a-dia levou à sua privatização: enquanto os ricos compram segurança, pelo menos em seu entorno direto e se entrincheiram cada vez mais em guetos, impera nas ruas e nos bairros pobres a lei do mais forte."


Estas, como se vê, são algumas das causas sociologicamente apontadas (há várias outras, a exemplo da corrupção dos aparelhos policiais e judiciários) para um fenômeno progressivamente insuportável. Nelas tem grande importância o papel do Estado. Há fatores, porém, que ultrapassam esse nível explicativo e remetem para a formação de uma cultura da violência, à qual se vêm habituando jovens e velhos de todas as classes sociais.

O espraiamento cultural da violência levanta problemas de uma natureza toda especial, uma vez que termina guiando-se por lógica, que geralmente tem mais a ver com o exercício de uma contra-linguagem cruel do que com objetivos racionalmente colocados. Como assinala o francês Jean-Luc Nancy, num trecho de artigo publicado pela mesma Humboldt, a violência "se nega a ser possível com outra coisa, compossível; pelo contrário, quer ser impossível. Quer ser insuportável para o espaço do compossível, que ela rompe e destrói (…) quer ser apenas essa ignorância, essa loucura resoluta e cega, uma vontade embotada, livre de qualquer ligação, dedicada exclusivamente a seu próprio avanço destrutivo".

Daí, o riso violento e arrogante, cada vez mais freqüente, dos marginais.

Para a compreensão dessa cultura da violência, será necessário auscultar com mais profundidade o trauma civilizatório da desesperança, especialmente por parte dos jovens, quanto a um futuro risonho em termos de emprego, diálogo entre as classes sociais e coerência político-social. Para tanto, é forçoso tapar olhos e ouvidos para o que vem da máquina política neoliberal (cujo único compromisso é com o capital financeiro ou com o sistema monetário internacional), da mídia de entretenimento (preocupada apenas com espetáculo e faturamento) e, mesmo, de velhos alienados pela leniência frente ao consumo e às drogas.

Estado mais responsável, imprensa e educação sérias parecem deparar-se agora com um novo papel histórico a desempenhar.

(*) Jornalista, escritor e professor-titular da UFRJ