JORNAL DE NOTÍCIAS
"Uma importante e actual questão de prioridades…", copyright Jornal de Notícias, 19/5/02
"O Governo decidiu mexer na televisão pública e o país entrou em convulsões. A verdade é que, até ao momento, apenas se verificou a nomeação de novos gestores, facto que acabou por fazer saber aos portugueses que, afinal, havia um Conselho de Opinião na RTP. Mas, para além disso, pouco mais existe do que umas quantas declarações de intenções de Durão Barroso, por sinal pouco coincidentes com a de Paulo Portas, e de um ministro, Morais Sarmento, que um importante sector da vida nacional transformou no inimigo n? 1.
De permeio, surgem uns quantos dados avulsos, não fundamentados quanto baste para aumentar a vozearia que permitirá, talvez, uma decisão mais fácil ? já quando a saturação levar o país real a ?pagar? o que for preciso para se livrar do barulho e de uma polémica entre as elites, que estas tiveram o cuidado de não lhe explicar. Fala-se, naturalmente, de salários ultrajantes, de contratações milionárias e até desse fantasma que ninguém conhece e que dá pelo nome de ?serviço público?.
(Alport e Portman, que tão profundamente estudaram o ?rumor? e as suas diversas funções na opinião pública, encontrariam neste momento, entre nós, fertilíssimo campo de investigação.)
Rui Martins da Silva, de Santarém, veste, diante do Provedor, a pele do cidadão angustiado perante ?tanto barulho e tão pouca informação?. Considera que, ?se não há, tudo aponta para que haja o propósito de que aqueles que vêm pagando, hoje de forma indirecta, os custos da RTP, não sejam esclarecidos sobre o verdadeiro problema da estação emissora?.
Lamenta o leitor que ninguém dê as respostas a umas quantas perguntas que enuncia, e das quais o Provedor destaca:
?Será que no passado, também não aconteceu que, a cada novo Governo correspondeu uma nova Administração que modelasse a informação aos interesses da imagem do partido no poder? E todas essas administrações não prometeram que iam moralizar os gastos? E não encheram a boca com o serviço público para nos darem concursos de ?chacha?, telenovelas grosseiras, pornografia ou os sonolentos programas ditos culturais, que nem as minorias toleram??
O leitor de Santarém sugere soluções, verbera comportamentos de partidos e de personalidades, aponta a dedo alguns profissionais da RTP. Umas e outros não têm cabimento nesta página. Mas o mesmo, no entender do Provedor, não poderá dizer-se das considerações que faz sobre o papel dos jornalistas nesta questão (e principalmente dos do JN, do qual se tornou leitor fiel e diário há quase cinco anos).
Rui Martins da Silva faz dos jornalistas em geral um julgamento severo, moldado num conceito quase teocrático ? e como tal, desajustado da realidade. No fundo, o leitor partilha com uma parcela ainda excessiva dos portugueses a ideia de que os jornalistas, para além de enciclopédicos, têm acesso à verdade sem barreiras nem fronteiras. Verdade que, algumas vezes, escamoteiam ao público, apenas por impossibilidades legais, por influência do seu posicionamento ideológico, ou em defesa de interesses, entre os quais avultam os dos ?tentaculares grupos económicos que são hoje os detentores da comunicação social e da outra?.
Para o leitor, ?o jornalismo tem que ser um sacerdócio, o jornalista tem que ser um missionário da verdade, num mundo em que a verdade é um bem escasso e em que a mentira ou a meia verdade, que é bem pior do que a mentira, são instrumentos de escravização de uns povos e da gestão da indiferença de todos os outros. O jornalista que não denuncia a corrupção, a incompetência dos líderes e a manipulação torna-se cúmplice, com mais culpa do que os prevaricadores, porque está mais preparado do que eles próprios para detectar, logo na origem, essas acções e intenções criminosas?.
Rui Martins da Silva considera que os jornalistas, todos os jornalistas ?são os vigilantes da Democracia, hoje sem a desculpa da Censura, que protegeu muitos. E não podem, porque não devem, continuar a alugar (se calhar ainda lhes pagam por cima) as colunas de opinião aos políticos profissionais, aos empresários e aos padres de qualquer religião. Os jornalistas têm mais condições do que os outros para formular uma opinião fundamentada na experiência, no conhecimento dos factos e não nos interesses. Quando muito, de vez em quando dar acesso aos professores na sua função educativa, aos médicos, aos juristas não políticos e aos militares?.
A visão de Rui Martins da Silva vai, no fundo, ao encontro de um sentir nacional que algumas sondagens permitiram caracterizar com a força dos números e que faz do jornalismo a mais conceituada entre as profissões que, em Portugal, gozam de mais prestígio.
Como jornalista que também é, o Provedor teme, isso sim, ser cúmplice de um ?crime? colectivo de abuso de confiança, De excessiva confiança.
O jornalista é apenas um homem, com uma profissão que dele faz, a um tempo, agente e intérprete da realidade ? realidade de que tenta ser intermediário junto do leitor, esclarecendo-o, pois decerto ? mas apenas até ao limite do seu conhecimento, com barreiras como as da Lei e as a Deontologia. E pouco mais.
Tem o jornalista, de facto, um acesso privilegiado às fontes oficiais, alicerçado em legislação específica. Mas sabe o jornalista (e tem obrigação de dar a conhecê-lo aos seus leitores) que, muitas vezes, os caminhos da verdade incómoda são labirintos de burocracias inatacáveis. Beneficia, ainda, de uma outra vantagem incomensurável, que é a do acesso aos bastidores do espectáculo da vida. Vê as máscaras, toca as máscaras, conhece-lhes os artifícios. Mas, em grande parte dos casos, não consegue prová-los!
O jornalista é, sempre (e ainda bem) refém da prova factual ou testemunhal. Com preocupações acrescidas como as de cotejar factos e intenções e de ter como fiel da balança o interesse público. Porque, frequentemente, as verdades oferecidas aos jornalistas não têm outro propósito que não seja o prejuízo de terceiros.
É também certo que a preocupação de rigor e de objectividade não retiram ao jornalista a capacidade de emitir opinião ? antes a reforçam. Poucos jornalistas têm, no entanto, e na luta pelas audiências, o peso mediático de políticos e de outros protagonistas do poder.
No clamor que hoje envolve as medidas anunciadas ou sugeridas para a Televisão do Estado, de facto não parece haver, de qualquer um dos lados do conflito partidarizado até à exaustão, a vontade de baixar o ruído. Talvez porque o silêncio, a serenidade e o distanciamento pudessem pôr a descoberto não uma, mas muitas e diversas verdades, comprometedoras de todos os interesses em causa.
De entre todos os argumentos esgrimidos, em que vencimentos e outras mordomias acabam por ser cortinas de fumo, parece haver uma certa unanimidade em que a RTP não vem cumprindo, tal como será exigível, o serviço público de televisão. Exceptue-se o Conselho de Opinião, agora posto a descoberto perante o país. Nunca se pronunciou, de forma pública e notória, denunciando essa falta que agora todos consideram grave. (Ou não será grave, ou o serviço público agora desenterrado não é, também ele, mais do que um pretexto?)
Caberá ao jornalistas investigar e divulgar as conclusões a que chegarem. A menos que em Portugal haja, hoje, temas que comprometem bem mais o futuro do país do que a discussão sobre se o Estado deve continuar a pagar com o nosso dinheiro, um ou dois canais de Televisão.
Será que não há?
Ou será dever do jornalista preocupar-se com as prioridades?"