Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

As musas do Guaíba

MÍDIA GAÚCHA

Gilmar Antonio Crestani (*)

Os gregos chamavam Alétheia, a verdade, variável segundo o ponto de vista do rei de justiça, do poeta e do adivinho. É esta a palavra que aparece na origem das discussões em busca da distinção entre pensamento religioso versus pensamento filosófico. Este ponto em mutação leva a um elemento novo, calcado nos mitos, que são as Musas. Na introdução dos poemas homéricos e nas demais epopéias ocidentais deles derivadas há invariavelmente uma invocação às Musas.

E o que são as Musas? Na mitologia, são as filhas de Mnemosýne e Zeus, a memória, em número de nove: Calíope, a poesia; Clio, a história (hoje modelo de automóvel); Polimnia, a pantomima; Euterpe, a flauta; Terpsícore, a poesia ligeira e dança; Érato, a lírica coral; Melpómene, a tragédia; Talia (há uma cantora pop com esse nome por aí), a comédia, e Urânia, a astronomia. Elas presidem o pensamento na forma de eloqüência, persuasão, sabedoria…

De Mnemosýne derivam palavras ligadas à memória, ou a falta dela, como "mnemônica" e "amnésia". Os aedos, poetas que guardavam na memória poemas inteiros como a Ilíada e a Odisséia, usavam técnicas mnemônicas, fórmulas, pistas que facilitassem a declamação de longos poemas. A descoberta da escrita e todos os avanços tecnológicos substituíram a necessidade individual de preservação da história. Hoje, a Enciclopédia Barsa cabe num CD-ROM!

E o que são os museus senão o templo das Musas? (Na mitologia, Museu é o antigo, o discípulo, o mestre, o filho, ou simplesmente o contemporâneo de Orfeu, isto é, um grande músico). As musas eram entidades abstratas a quem os poetas invocavam em busca de auxílio espiritual.

Camões, na introdução de Os Lusíadas, alerta para que "Cesse tudo o que a Musa antígua canta/ Que outro valor mais alto se alevanta." E, na estrofe seguinte, invoca as suas Musas, as Tágides, ninfas que deram nome ao Rio Tejo, no sentido de ajudá-lo a compor "as memórias gloriosas/Daqueles Reis que foram dilatando/ A Fé, o Império". O mesmo Tejo que abrigava as Tágides também inspirou um dos mais belos poemas de outro poeta, Fernando Pessoa: "O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, / Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia/ Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia."

O Rio Tejo transmudou-se, de Camões para Pessoa, de abrigo das Musas à própria Musa, concretizando os vaticínios camonianos da abertura de famoso soneto: "Transforma-se o amador na cousa amada,/ por virtude de muito imaginar." Tanto Fernando Pessoa, ele mesmo, como seu heterônimo, Álvaro de Campos (Lisbon Revisited) invocam o Tejo: "Olho o Tejo, e de tal arte/Que me esquece olhar olhando,/ E súbito isto me bate/ De encontro ao devaneando ? /O que é sério, e correr?/ O que é está-lo eu a ver?."

A memória corre como o rio, e entre o que ficou e quem olha sobram indagações.

Dizem os estudiosos da mitologia grega que o canto mais antigo das Musas foi o que elas entoaram para celebrar a vitória dos deuses olímpicos sobre os Titãs, para celebrar o surgimento de uma nova ordem, o neoliberalismo mitológico. A nova ordem era conduzida por Zeus, deus do raio e do trovão. Uma espécie de Bush.

Censura prévia

O Tejo da minha aldeia é o Guaíba. Para ele correm as águas turvas do Arroio Dilúvio, que, às margens plácidas, abriga a sede do jornal Zero Hora. Jornal diário que mistura Zeus e Orfeu; para uns, raio e trovão, para outros, música aliciante.

Objeto e símbolo, o jornal promove e sofre as conseqüências de seu tempo. É o que está acontecendo com os veículos de comunicação a respeito da nova onda de censura. A RBS, por exemplo, baixou um editorial condenando a censura judicial de que foi vítima a revista CartaCapital. Palmas! É isso aí! Mas não nos iludamos com as águas turvas do rio da nossa aldeia, pois transforma-se o amador na cousa amada. A própria RBS, também em editorial, ameaçou, a propósito de um artigo publicado neste Observatório, com as "medidas judiciais cabíveis".

Convém lembrar que, não faz muito, a paladina da liberdade aqui dos pampas cravou uma ação judicial contra o Sindicato dos Jornalistas. A RBS vez que outra ensaia uma melhora, mas, é lógico, o leopardo não pode mudar suas manchas.

O jornal Correio do Povo, concorrente da RBS, guarda na memória expedientes caros aos meios de comunicação. Ao se ver preterido na disputa com a RBS pelo controle da Companhia Riograndense de Telecomunicações (CRT), o jornal apagou da memória o nome do ex-governador Antonio Britto, musa da RBS. Este foi buscar na Justiça o direito de ver seu nome nas páginas daquele diário. Como se vê, memória e esquecimento são faces da mesma moeda quando a mídia não distingue informação de interesses pessoais.

Se não me falha a memória, Brizola continua persona non grata na Rede Globo. Há outra forma, mais velada mas não menos prejudicial, de deletar a memória? Para determinados políticos, a RBS abre a caixa de Pandora. Solta todas as maldades na tentativa de obliterar a memória pública. Mas, para alguns eleitos, é música, vira uma Calíope, numa cantilena sem fim.

É oportuna a discussão sobre censura, este vírus que se instala para impedir que registremos novas informações em nossa memória. Estão aí as mídias todas denunciando, com vozes de trovão, uma "onda de obscurantismo patrocinado pelo Poder Judiciário". Sem autorização para fazer a defesa do Judiciário, ainda mais que, do meu ponto de vista, a censura prévia é indefensável, reputo que o problema deva ser debatido com horizontes mais amplos. Há um conjunto de leis necessárias para a harmonização da sociedade e todas sob o manto da constitucionalidade, a lei maior. E há ainda outra lei, que os gregos colocaram no palco através da peça Antígona. Isto é, leis não escritas, universais, naturais que estão acima de um contrato social precário, posto que construído sobre bases voláteis. Aliás, nossa Constituição-Cidadã está apenas na adolescência e já está toda desfigurada!

Não se trata de defender a censura, até porque serei, duplamente, vítima dela. Vítima na minha liberdade de expressão mas, principalmente, limitado no meu direito de saber. Direito de saber, isto existe? Mas, antes de existir o Observatório da Imprensa, que espaço havia para discutir os limites da imprensa?

Convenhamos, uma liminar concedida por um juiz de primeira instância pode ser cassada, com um simples recurso, no Tribunal. Um erro cometido pela imprensa, de que forma é reparado? A que instância pode-se recorrer? Na rubrica Erramos, no Espaço do Leitor?! Quem guarda na memória os fatos envolvendo a Escola de Base, de São Paulo? E se não for provado nada contra Eduardo Jorge? E a denúncia da compra de votos? Dois renunciaram, mas a imprensa silencia quando o assunto indica para quem comprou. Ibsen Pinheiro, que presidiu o impeachment de Collor, e posteriormente cassado, teve todas as denúncias arquivadas. (Numa das primeiras participações neste Observatório escrevi que o arquivamento, por si só, não negava os fatos que lhe eram imputados.)

Hoje, Ibsen é novamente candidato ao Parlamento. Quantos sabem que as denúncias foram arquivadas? Dois políticos gaúchos, Laerte Meliga e Ronaldo Zulke, tiveram suas penas prescritas, mas, para a mídia coronelista, sempre disposta a dar carteiraço, não há distinção entre prescrição e condenação. As vítimas, como Sísifo, estão condenadas a expulsar das suas memórias e da do povo uma acusação repetida diuturnamente.

Os exemplos são cotidianos, porque a prática é cotidiana. Uma CPI aberta para tratar da Segurança Pública, na Assembléia Gaúcha, acionou outra Musa da atualidade, os holofotes. Foram ligados, sempre ao vivo, no horário nobre, em rede nacional, para lançar suspeitas sobre desafetos políticos. O Ministério Público Estadual opinou pelo arquivamento por absoluta falta de provas. A juíza Eloi Bernst Justo, no âmbito federal, igualmente determinou o arquivamento. Como os atingidos poderão ser reparados se até a informação dos arquivamentos das acusações não recebe a devida repercussão?

As Musas de hoje são reais, podem ser tocadas, dispõem de endereço e telefone. O BNDES, por exemplo, é música para os ouvidos da Globo Cabo e faz o milagre de maneirar na crítica quando se trata de fatos envolvendo o governo federal. Até virou piada. Agora, para não mais ser chamada de Globo "Serra" Cabo, resolveu mudar. Para os íntimos, Net [como já é conhecida em outras regiões do país]. A prática de mudar de nome atualiza mais uma vez a famosa tirada de Tomaso de Lampedusa: "Mudar tudo para que tudo continue como está". Qual a isenção da Globo e da RBS, sócias na "novíssima" Net, para tratar de questões como o déficit público, já que são parte deste problema?

Se a RBS estabelece uma relação comercial com a Farsul para montar o segmento rural de agronegócios, com que liberdade e isenção cobre fatos envolvendo a parceira comercial? Não haveria aí alguma forma de censura?

Outra Musa, incensada por todos os veículos, é o tal de Ibope. Que veículo não acaba acendendo uma vela para melhorar a audiência? O jornal O Sul dedica, diariamente, uma página inteira para dizer: "Pesquisa Ibope confirma a trilha sonora nos automóveis de Porto Alegre: audiência de FM em automóveis, todos os dias, das 6 às 19 horas. As duas mais ouvidas: Jovem Pan FM ? 97,5; Continental FM ? 98,3". Ao pé da página, informa que se trata das "Emissoras da Rede Pampa de Comunicação".

Nestas e outras rádios do grupo Pampa de Comunicação, O Sul dispõe de espaço para dizer que são "105 mil leitores só na Grande Porto Alegre: a última pesquisa (Olha outra musa aí!) Marplan revela que, mesmo passada a euforia do lançamento, O Sul confirma 105 mil leitores já consolidados". A RBS faz isso há muito mais tempo. Um veículo vende o outro. Na mesma trilha o grupo Correio do Povo. Um novo jornal teria uma luta inglória para conquistar espaço, tendo que disputar com outros jornais que têm ao dispor redes de rádio e TV para se promoverem.

Aí está a explicação, por exemplo, do acordo firmado entre o Grupo Bandeirantes, Band TV e Rádios, e o Grupo Editorial Sinos, que editam os Jornal NH, Jornal VS, Diário de Canoas e ABC Domingo, na Grande Porto Alegre. Isto é, sempre e cada vez mais aumenta a concentração da mídia em grandes grupos empresariais.

Quando eu morava no Menino Deus, bairro imortalizado por Caetano ("Menino Deus/De um corpo azul dourado/Um porto alegre é bem mais que um seguro…"), havia um jornal do bairro chamado OI. Morreu de morte matada, diria João Cabral de Melo Neto. Em recente entrevista ao Sindicato dos Jornalistas de Porto Alegre, entre outras informações, o jornalista Geraldo Canalli, criador do Oi, expôs mais um detalhe do perfil liberal da RBS. Lembrou que, além de quererem comprá-lo, "o editorial da Zero Hora criticou a Associação Riograndense de Imprensa por ter dado o prêmio ARI ao Oi!" O diretor do Jornal JÁ, também pequeno e restrito a Porto Alegre, poderia acrescentar mais detalhes a respeito das armas da RBS para lidar com a concorrência.

A discussão não pode ficar restrita simplesmente ao direito de meia dúzia de grupos econômicos dizerem o que bem entendam sem que tenham de assumir responsabilidade pelo que fazem. Afinal, teríamos chegado à situação atual, de censura prévia, se não houvesse tanta manipulação?

E quem se preocupa com a censura que os analfabetos sofrem por não terem acesso à informação? É importante, sim, que se debata a censura. Todos os tipos de censura, principalmente a econômica. O sucesso do Observatório é prova inconteste de que a mídia ainda tem um longo caminho a trilhar.

Que as musas nos inspirem!

(*) Funcionário público federal; <http://www.crestani.hpg.com.br/>