MÍDIA NA COPA
Ivo Lucchesi (*)
A abordagem proposta em artigo anterior [remissão abaixo] tinha a intenção explícita de suscitar desconforto naqueles que, por formação ou devoção, sempre estão dispostos a sentirem-se parceiros do senso comum. Qualquer tentativa de romper com a "lógica armada" e, muitas das vezes, alimentada pelos meios de comunicação de massa, é sumariamente repelida com a fúria de um coro que, em uníssono, ratifica o paradigma com o qual a consciência dominante assegura o caminhar da História, perpetuando-se nela.
Na verdade, o que importa não é se algo se cumpre de acordo com os desígnios previamente traçados, como se, nos bastidores da construção histórica, houvesse nebulosos engendramentos, sempre prontos a maquinarem os próximos acontecimentos. Importante sim é o esforço humano em projetar sobre o palco do mundo um jogo de luzes imprevisto, por entender que é esse movimento articulado pela ousadia da razão o fator preponderante para produzir o andamento da própria marcha histórica em ritmo diferente. Para esse fim, nenhuma força se traduz mais eficaz do que a do "pensamento livre". Claro, o mundo recortado pelos meios de comunicação de massa tende a refletir um cenário a partir da preservação de certa retaguarda na qual se articula o jogo de interesses.
Entre o certo e o duvidoso
A atmosfera crítica que perpassava o artigo anterior tencionava problematizar a atitude exageradamente ingênua e deformadora assumida pelo jornalismo esportivo, principalmente no Brasil. É inaceitável o silêncio sobre tal questão, considerando justamente a importância demasiada que o conjunto da população dedica à chamada "paixão nacional": o futebol. Se é verdade que o futebol reúne em si abrasadas torcidas, é igualmente verdadeiro que outros segmentos lidam com o mesmo esporte na condição de um macronegócio a envolver, como é o caso da Copa do Mundo, bilhões de dólares. Ao lado de um jogo disputado num campo, está outro "jogo" no qual o campo de grama é transformado em "feroz arena da grana". Não ter essa percepção significa abdicar do senso de realidade.
Todos os setores diretamente envolvidos no grandioso evento tratam-no, antes de tudo, como um "espetáculo" que deve ser capaz de retorcer emoções, produzir e alimentar discussões, levando, se possível, numerosas platéias ao delírio supremo, ao mesmo tempo que quem ganha dinheiro com isso (e não é pouco) reduza ao máximo a probabilidade de perdê-lo. São duas cenas diferentes, reguladas por intenções e lógicas igualmente distintas. Como aproximá-las criticamente, se uma é sustentada pela quase "desrazão" e a outra é gerenciada pela engenhosidade requintada? Não é fácil decidir a direção que um dado olhar deva tomar. Diria mesmo ser custosa e dolorosa a opção pela via da criticidade. Todavia, há o momento no qual a escolha se impõe. É nessa hora que o "pensamento livre" se desgarra do senso comum e envereda pelo labirinto de conjecturas, de análises, assumindo todos os riscos dessa empreitada.
Essa entrega de si à vivência do "pensamento livre" é uma experiência crítico-subjetiva tão apaixonante quanto o de alguém inebriar-se diante do que vê como, por exemplo, a beleza de uma jogada nascida do impulso inventivo de um extraordinário jogador. O brilho, porém, desse ou daquele atleta, ou mesmo do conjunto de uma equipe, não impede a existência paralela de outro quadro no qual o templo da inventividade é ocupado por altos investimentos à espera da lucratividade desejada.
Quanto mais o futebol se viu circundado por bolsas de apostas, contratos publicitários, jogos de loteria e gerenciamento de corporações, mais se intensificou a possibilidade de acomodações, de intervenções externas. De umas, com o passar do tempo, o senso comum toma ciência, pela via de uma reportagem, ou pela lenta lucidez de um olhar que, distanciado do envolvimento das emoções, finda por reconhecer algo até então oculto ou ignorado. De outras, delas se apercebem os que exercitam o pensamento em estado de vigília. Enfim, o "pensamento livre" sempre está apto para arranhar a solidez da certeza daquele, cuja crença nas coisas do mundo deriva das imagens e discursos oficiais. Não menos verdadeiro é também o fato de o senso comum, pela pressão dominante, sentenciar o silenciamento da voz discordante, ou apenas a voz da diferença. A voz, quando integrada ao senso comum, não tem sua singularidade cobrada. Conseqüentemente, dela nada se exige de especial, apenas a plena sintonia com a maioria. Consolida-se assim uma espécie de legitimidade da lógica quantitativa em oposição à marginalidade da lógica qualitativa. Nesse embate talvez resida a grande questão sobre a qual o jornalismo oficial tenha responsabilidade, cabendo, pois, a pergunta: em que medida o jornalismo oficial e, por extensão, os meios de comunicação de massa concorrem para o isolamento do "pensamento livre"?
Jornalismo esportivo em Copa globalizada
Em função de critérios adotados, e sob o compromisso de, na Nova Ordem Mundial, o mundo estar progressivamente integrado pelos ditames econômicos, todos os continentes, bem como todas as culturas, estão representados para a primeira fase. Até aí, nada a comentar, cabe inclusive registrar o fato com louvor. No maior evento do mundo, todos têm a oportunidade de se fazerem visíveis. Todavia, algo de perturbador começa a inquietar o "pensamento livre". Igualmente para a fase seguinte (oitavas-de- final), cada "fatia" do mundo continua presente. Isto significa que as "marcas esportivas" (Adidas, Nike, Umbro, Le Coq Sportiv, Atlethica, Kappa, Puma) permanecerão alimentando milhões de torcedores dos países (e respectivos continentes) cujas seleções exibem para TV e fotos de jornais e revistas em todo o mundo. O mesmo se estende para os quinze patrocinadores que engrossam as receitas da FIFA: Adidas, Budweiser, Avaya, Coca-Cola, FujiFilm, Fuji Xerox, Gillette, Hyundai, JVC, KT/NTT, MasterCard, McDonald?s, Philips, Toshiba e Yahoo!
Sim, placas ornamentam os quadrantes dos campos. Por elas, milhões de espectadores deslizam seus olhares, dividindo a cena que deveria ser única: o lance talentoso, a astúcia do atleta malabarista, a inteligência a serviço da fração mínima de tempo. Nela o jogador virtuoso tem de decidir pela força justa a dar ao pé, pelo movimento preciso a destinar ao corpo, pela velocidade perfeita a imprimir sobre o assédio do adversário. Na Copa globalizada, porém, o que menos importância tem é o momento mágico. Curiosamente, a questão mais recorrente, tanto em matérias jornalísticas quanto em conversas sobre a atual Copa é o estranhamento em relação ao flagelo das seleções que justamente teriam algo de especial a mostrar. E França? E Argentina? E Portugal? E Uruguai? E Nigéria? E Camarões? E Polônia? E Croácia? Logo, a voz do senso comum responde: "É por isso que o futebol apaixona; ele é surpreendente… nenhuma lógica dá conta diante da imprevisibilidade do futebol". Pronto, a explicação, com o carimbo de qualidade outorgado pelo senso comum, todos se aquietam, preparando-se para as próximas emocões geradas por resultados absolutamente desconectados.
Observações jornalísticas ou meras curiosidades
A lógica a orientar o modelo da "Copa globalizada" é movida por aquilo que está posto nas demais manifestações da vida contemporânea: o sucesso da "novidade" em parceria com a leveza do entretenimento. Nesse frenesi superficial, o compromisso com a tentativa de se tocar a verdade das coisas, perde-se pela ausência do sentido da narratividade histórica que, se recuperada, fica evidente que fatos de agora nada têm de novidade. Nesse mundo da "alegria inocente", fica a sensação de que o mundo foi inventado ontem. Portanto, nada melhor que, a título de lembretes com os quais cada leitor poderá atribuir-lhes o significado que bem desejar, se sigam algumas observações acerca da narratividade das Copas.
** A
situação da França, em 2002, não deve
causar tanta estranheza. Afinal de contas, os nossos tricampeões
de 70 foram atropelados pelo "carrossel holandês na Copa
de 74. Por sua vez, a Itália, que, na mesma Copa de 70 disputara
a final com o Brasil, havia sido eliminada na Copa anterior (66)
pela insólita equipe da Coréia do Norte, bem como
na Copa de 74 retornou para casa por conta da Polônia.
** Na história das Copas, o país-sede se sagra campeão ou vice (Uruguai ? 30; Itália ? 34; Brasil ? 50 [derrotado na final pelo Uruguai]; Suécia 58 ? [derrotada na final pelo Brasil] Inglaterra ? 66; Alemanha ? 74; Argentina ? 78; França ? 98). Na pior das hipóteses, o país-sede é eliminado pela seleção que disputa o título: (38 ? França é eliminada pela Itália [campeã]; 62 ? Chile é eliminado pelo Brasil [campeão]; 70 ? México é eliminado pela Itália [vice-campeã]; 82 ? Espanha é eliminada pela Alemanha [vice-campeã]; 86 ? México é eliminado pela Alemanha [vice-campeã]; 90 ? Itália é eliminada pela Argentina [vice-campeã]; 94 ? EUA são eliminados pelo Brasil [campeão];). Aguardemos, portanto, o desfecho reservado para 2002, apesar de, pela primeira vez, a competição apresentar dois anfitriões.
** Mesmo reconhecidamente a melhor seleção, tanto em 74 quanto em 78, a Holanda não obteve o título de campeã. Pior ainda o que se deu na Copa de 78, na Argentina, evento marcado por desígnios nada esportivos (hoje, esse fato já é reconhecido pelo senso comum). Ali, nasciam articulações financeiras e injunções políticas, modificando por completo o perfil do que sucederia ao longo do tempo com o "mundo do futebol" . O esquema apenas se tem aperfeiçoado, de lá para cá. Apenas isso.
** Alguém explica por que nenhuma seleção campeã olímpica, dois anos após, figura entre as três primeiras da Copa? A lógica natural apontaria para o fato de que, com mais dois anos de entrosamento e mais atleticamente amadurecidos, os jovens olímpicos estariam no auge de suas potencialidades. Que performance teve a Nigéria em 98? Como se portou a seleção dos Camarões nesta? Que fim teve a seleção da Austrália, sequer classificada para a Copa?
** Curiosamente, o tricampeonato conquistado pelo Brasil em 70, no México, contra a Itália, marcou o início do longo mandato do brasileiro João Havelange como presidente da FIFA. Durante cinco Copas Mundiais, o Brasil, embora presente em todas, jamais voltou a disputar uma final. Não menos curioso o fato de, justamente na Copa de despedida do então presidente, o Brasil (sob o patrocínio da Umbro e da Coca-Cola) haver conquistado o "tetra" em 94, nos EUA, contra a mesma Itália. É um ciclo de coincidência interessante.
** As conquistas do "tri" e do "tetra", sem demérito aos atletas que delas participaram, mereceram o apoio especial da localização e do clima. No México, a altitude e a temperatura sempre favoreceram o Brasil no segundo tempo. Isto fica evidente revendo os jogos. Em 94, por um critério de equilíbrio de forças, pelo menos das semifinais em diante, os horários dos jogos deveriam ter sido em condições menos desumanas, principalmente em respeito a adversários oriundos de clima completamente diverso. Todavia, a Copa, sob o comando dos interesses econômicos de transmissão, não tem de levar isso em conta. Apesar de tudo, somente o pênalti deu o título.
** Com a "globalização da Copa", as empresas de material esportivo entram em franca expansão. Com elas, dá-se a comercialização dos uniformes nos quais o emblema da seleção divide espaço com o da "marca", dentro e fora do campo.
** O registro anterior bem pode ser ilustrado com um quadro, digamos, interessante. O sorteio das chaves acaba redundando num loteamento de seleções por parte das empresas esportivas. Configuremos as chaves desta Copa por marcas: A) Adidas, Le Coq Sportiv, e Hummel (França, Senegal, Dinamarca [Uruguai ? sem marca]); B) Adidas, Puma e Adidas (Espanha, Paraguai, África do Sul [Eslovênia ? sem marca]); C) Nike, Adidas, Adidas e Joma (Brasil, Turquia, China e Costa Rica); D) Nike, Puma, Nike e Nike (Coréia, Polônia, EUA e Portugal); E) Adidas, Umbro, Puma (Alemanha, Irlanda, Camarões [Arábia Saudita ? sem marca]); F) Adidas, Nike, Umbro, Adidas (Argentina, Nigéria, Inglaterra e Suécia); G) Kappa, Nike, Atletica (Itália, Croácia, México [Equador ? sem marca); H) Adidas, Nike, Nike, Puma (Japão, Bélgica, Rússia e Tunísia). Percebe-se no loteamento uma intensa rivalidade entre Adidas (Europa) e Nike (EUA). O equilíbrio entre as hegemônicas concorrentes teve o requinte de a cada uma caber o patrocínio do respectivo país-sede (Japão/Adidas e Coréia/Nike).
** Com base no mapeamento anterior, observe-se a combinação das marcas em função dos que definiram o quadro para as oitavas-de-final: Hummel x Umbro (Dinamarca / Inglaterra); Nike x Nike (Brasil / Bélgica); Adidas x Le Coq Sportiv (Suécia / Senegal); Adidas x Adidas (Japão / Turquia); Adidas x Puma (Alemanha / Paraguai); Atletica x Nike (México / EUA); Adidas x Umbro (Espanha / Irlanda); Nike x Kappa (Coréia / Itália). Seis das oito partidas vão ser travadas em torno de marcas hegemônicas concorrentes. Curiosamente, as duas (Nike e Adidas) estão, em cada chave, simetricamente repetidas. Dos oito jogos, apenas um envolve uma disputa entre duas marcas não-hegemônicas (Hummel x Umbro).
** Na Copa de 98, a final se deu entre Adidas (França) e Nike (Brasil). O Brasil chegou à disputa do título, após derrotar a Holanda (em cobrança de pênaltis). A Holanda era também patrocinada pela Nike. Conseqüentemente, a Nike estava assegurada para a final. Quem venceu, como se sabe, foi a Adidas, em meio àquela cavernosa e detetivesca história da convulsão do "fenômeno" que fez a seleção inteira entrar em campo completamente estonteada. Parecia toda ela "adormecida"…
** A propósito, a atuação de Portugal, no primeiro tempo, contra os EUA bem pode relembrar (embora Figo não tenha sofrido nenhuma convulsão) o modo como o Brasil se comportou na final de 98… Aliás, a julgar pela lógica "estratégica" das substituições usada pelo técnico de Portugal, em parceria com a "enérgica" atuação do juiz, Coréia e EUA muito agradecem. Bem, curiosamente, nessa chave, as três seleções em questão têm o patrocínio da mesma empresa: Nike… É viável considerar que a alta direção da Nike preferisse manter na competição tanto o país ao qual a empresa pertence quanto um dos dois países-sede. Enfim, cada um escolha entre o "caso" e o "acaso"…
** As facilidades ofertadas à seleção brasileira, a começar pela pífia chave que lhe coube, são de tamanha ordem que quase paira a desconfiança de existir algo para além do "acaso", uma espécie de generosidade elástica por conta de alguma dívida ou injustiça anterior…
** Pelo menos soou estranho que a arbitragem responsável pelo jogo Senegal x Suécia deixasse de marcar dois claríssimos pênaltis a favor do Senegal e ainda lhe invalidasse um gol. Tudo se deu no primeiro tempo, quando a Suécia vencia por 1 x 0. Mais intrigante ainda foi o fato de os pênaltis serem incontestáveis, enquanto o impedimento, no mínimo, discutível. O olhar cirúrgico que detectou a ilegalidade com base em 20 cm de diferença não percebeu duas faltas clamorosas. Seja como for, a inventividade dos senegaleses triunfou sobre atitudes tendenciosas.
A notícia, o negócio e a festa
O brasileiro, às vezes por preguiça, outras por desconhecimento mesmo, tende a olhar domesticamente, perdendo a visão de conjunto e sistêmica, o que lhe deforma o padrão de julgamento. Esta observação obviamente inclui também grande parte do jornalismo local.
No mundo inteiro, o futebol se tornou um massacre para qualquer atleta. No Brasil, a questão é agravada em razão de o "massacre" ser parceiro de um calendário absolutamente descabido, atropelando competições, desnorteando torcedores que, no domingo, idolatram a equipe sagrada campeã numa competição, e na quarta-feira da mesma semana, vaiam a mesma equipe pela derrota em outra competição. Todavia, o modelo europeu tão decantado pela sua eficiência de organização e previsibilidade é tão ou mais extenuante para o jogador. Conseqüentemente, os "craques" chegam à Copa do Mundo literalmente quebrados.
Os clubes, gerenciados como empresas, sugaram tudo que poderiam. A esse quadro se soma o fato da alta rotatividade dos jogadores, continuamente envolvidos em transações internacionais, tornando suas vidas completamente desenraizadas, o que inviabiliza o sentido e a operacionalidade das "seleções". Esse é o "esquemão" a fabricar "surpresas" nos resultados da Copa, além dos temperos ocasionais para os quais colaboram alguns juízes, alguns médicos e, inclusive, certos técnicos, sempre que um interesse maior se apresente na "arena dos negócios". O resto é blablablá.
O quadro exposto deixa claro que, no mundo da Copa globalizada, o produto a ser vendido não é a beleza de quem a poderia proporcionar. O real produto é a excitação pela surpresa dos desfechos, associada a uma incessante e histérica gritaria dos que se encontram nas arquibancadas, numa euforia absolutamente incompatível com a realidade do que está ocorrendo em campo. As "torcidas" gritam, pulam, dançam, exibem-se em figurinos exóticos como se ali se reunissem para uma grande festa particular. Se, ao final dos jogos, essas histriônicas criaturas tivessem de analisar algo acerca do jogo, surpreender-se-iam com a incapacidade de articular qualquer pensamento lógico, afora um ou outro lance especial que a memória tenha guardado. Elas querem sonsumir o exótico, não se dando conta de que elas próprias se tornam o exótico faturado, realimentado pela efusividade do nada. As marcas faturam bilhões; alguns atletas ganham milhões e as "torcidas" gastam tudo que têm para ganharem… ganharem o quê? Sei lá, cada interessado telefone para algum 0800… e dê sua "resposta participativa", ou não…
(*) Ensaísta, doutorando em Teoria Literária pela UFRJ, professor-titular da Facha, co-editor e participante do programa Letras & Mídias (Universidade Estácio de Sá), exibido mensalmente pela UTV/RJ.