TIM LOPES, ASSASSINADO
"A morte do homem cordial", copyright No mínimo, 11/6/02
"Quem leu o Zuenir e o Flávio aqui no site, já sabe que Tim Lopes era, além de repórter fuçador e corajoso, um sujeito extremamente doce e cativante, qualidades que, aliás, ele usava na profissão, para ganhar a confiança de seus personagens, seres arredios que vivem à margem da sociedade brasileira. Pois eu gostaria, em honra ao colega trucidado por uma dessas bestas-feras que manda no Rio de Janeiro, de acrescentar mais uma característica do Tim: a de um criador de expressões. Convivi com ele no mesmo período em que Flávio e Zuenir, na redação do ?Jornal do Brasil?, meados dos anos 80 até o começo dos 90. Tanto quanto o sujeito boa-praça que ficava no banco de trás dos ônibus, à saída dos bailes funks, para conversar com e tentar entender a cabeça da garotada que promovia os arrastões (garotada que o poupava do saque), ele sempre será para mim o sujeito boa-praça que trouxe para o meu, o seu, o nosso vocabulário a palavra ?mauricinho?.
Daqui a 200 ou 300 anos, se houver sobrado alguém no Brasil, lógico, as pessoas ainda estarão usando a palavra ?mauricinho? como se ela sempre tivesse existido em português, desde Camões, desde Machado. Não, ela é coisa do Tim. Foi ele quem, na imprensa, no caderno ?Cidade? do ?JB?, batizou aquele rapaz todo arrumadinho, camisa social com a manga cuidadosamente dobrada, cabelo impecável, suéter sobre os ombros, aquele rapaz que todo mundo já conhecia, mas não sabia o nome, de ?mauricinho?. Bingo! É perfeito, prova de grande sensibilidade. A fêmea do ?mauricinho?, a ?patricinha?, surgiu pouco depois para que eles se reproduzissem, felizes, até hoje, nas noites de todas as cidades brasileiras. (Sou jornalista, vivo não só de fatos como de palavras, e por isso sou grato ao Tim, que me apresentou a essas aí, e acho que ele merece ser saudado por isso.)
A hipótese de que ele não tenha propriamente criado a palavra e sim a amplificado pelo uso jornalístico em nada desmerece seu feito. Apenas admite o seu bom ouvido para o que o povo – esse pessoal que, além de ser safo para sobreviver no fogo cruzado entre a polícia e os traficantes, também é bom de palavreado (rico não inventa palavra, importa palavra) – anda a criar, a falar e a espalhar pelos ônibus, biroscas e quadras do Rio de Janeiro. Assim, Tim Lopes continua sendo o pai dos ?mauricinhos? e das ?patricinhas?, logo ele, veja a ironia, aquele mulatão risonho que andava de camiseta e bermuda, gostava de samba, Vasco da Gama e cerveja, aquele sujeito que, talvez melhor do que ninguém, encarnasse sem querer a utopia do brasileiro ?enquanto? homem cordial. Pois bem. Esse homem cordial foi espancado, baleado, torturado, trespassado por espadas ninja e incinerado no alto de um morro de subúrbio. Não só por ser jornalista, nada disso, mas por ser, fundamentalmente, um homem de bem. Um homem que acorrera à Vila Cruzeiro porque outros homens e mulheres de bem, lá moradores, haviam desistido de insistir com a polícia para que ela aparecesse e acabasse com o bailão de sexo, drogas e funk dos traficantes.
Quer dizer que a polícia é cúmplice na morte de Tim Lopes? É. Só que, como o canalha prototípico de Chico Anysio, o Tavares, cabe emendar: ?Mas quem não é?? As autoridades dos poderes executivos que renunciaram a seu exercício – pela repressão, pela educação, pelo acompanhamento médico, pela redistribuição de renda – em muitas áreas de nossas grandes cidades. As autoridades legislativas que não se empenharam na elaboração e na aprovação de medidas – punitivas e sociais – que evitassem a proliferação da marginália. As autoridades judiciárias que devolveram às ruas – ou nunca tiraram delas – elementos nocivos ao resto da sociedade. Qualquer um de nós que compre ?maconha de cinco? ou ?pó de quinze? sem parar para pensar na sinistra engrenagem que esse simples ato põe em funcionamento. Todas, todos cúmplices na morte de Tim Lopes e de tantos outros.
Estive com Tim pela última vez no final de janeiro. Eu fora participar, com outros convidados, do programa que encerrava a vasta votação realizada pelo ?RJ TV? em urnas eletrônicas espalhadas pelos principais bairros da cidade, no encalço de quais problemas seus moradores consideravam prioritários. (A violência, claro, era a grande vencedora. Contudo, com a dengue se alastrando, a saúde também foi bem votada.) Antes e depois, passei na redação da Rede Globo para dizer alô ou tchau para alguns colegas, entre eles Tim. Quando fui embora, calhou de sair da emissora junto com ele. Fomos conversando até a portaria da Rua Von Martius. Tim estava a caminho de uma de suas apurações, mas externou o cansaço já mencionado em diferentes depoimentos de amigos desde o seu desaparecimento. Ele estava cansado não de sua profissão, pois misturar-se com o povo do qual nunca deixou de fazer parte era sua razão de viver. Mas cansado da violência que via a crescer pelas comunidades, graças a ausência do Estado – nos primeiros tempos por omissão, mais recentemente por covardia mesmo. ?A barra está ficando muito pesada?, disse-me ele, sorrindo, como quase sempre. Despedimo-nos e fomos cuidar de nossas vidas.
Bem, modo de falar. Tim, ao menos, foi cuidar da vida dos outros. Da vida de quem não tem quem zele por ela, da vida de quem teme ter um filho recrutado pelo tráfico ou uma filha amasiada com um traficante (com tudo de violência e brevidade que isso implica), da vida de quem sente o horror, o horror, da vida de quem ausculta o coração das trevas.
Tim Lopes, quem diria, morreu porque foi cuidar da vida das outros."
"Pena de morte à brasileira", copyright No mínimo, 14/6/02
"Pelas páginas que anunciaram a morte do jornalista Tim Lopes passou raspando esta semana um certo Reginaldo Guilherme, delegado da 38a DP, informando que na jurisdição do traficante Elias Maluco houve, ?nos últimos 12 meses?, 60 execuções como a do repórter. Quer dizer: com julgamentos sumários no tribunal de carrascos, sessões de tortura e sentença aplicada na hora pela mão dos juízes.
Poderia ser pura fanfarronice da polícia, que nos crimes escandalosos sempre parece saber tudo sobre assuntos que, aparentemente, não apura nem controla. Mas, como se fosse para confirmar a história de Reginaldo Guilherme, dois dias depois chegava aos jornais o exemplo do motorista de táxi Iedir Fernandes Brasileiro, executado com mais de dez tiros no Morro do Urubu.
Por que? Segundo a polícia porque, fazendo bico como taxista, ele foi reconhecido como funcionário dos presídios Frei Caneca e Hélio Gomes ao entregar uma cesta de café da manhã na boca da favela. Levava no carro sua mulher, de 21 anos. E, atravessando às dez horas da noite uma das fronteiras cada vez mais vagas que no Rio de Janeiro marcam o limite do regime civil com a ditadura armada, o casal foi preso, espancado, torturado e morto ali mesmo, cada corpo com mais de dez tiros. E ainda por cima ele se chamava Brasileiro.
Ou seja: no Brasil, dezoito anos depois que o último general saiu do Palácio do Planalto pelos fundos, existe sim tortura, corte marcial e pena de morte. O que torna plausível, quase banal, a informação do delegado Reginaldo Guilherme sobre os 60 justiçados de Elias Maluco. Tão banal que, em dezenas de páginas ocupadas nos últimos dias pela caçada ao traficante, foi registrada com singular naturalidade pela imprensa, que não gastou com ela o menor sinal de espanto.
Lá está Reginaldo Guilherme, na edição de segunda-feira do jornal O Globo, no meio da página 13, encaixado num parágrafo de 48 palavras, com os artigos, as preposições e o comentário de que ?todas as mortes foram antecedidas por sessões de torturas? e ?muitas das vítimas tiveram os corpos incinerados em fornos improvisados pelos traficantes nas partes mais altas e isoladas das favelas?. A frase seguinte já muda de assunto.
Pena que os jornais não lhe dessem a devida atenção. Nas palavras do delegado estava a resposta para a pergunta que os jornalistas começaram a fazer, quando constataram que, nos morros onde manda Elias Maluco, o martírio do repórter Tim Lopes podia ser visto com aparente naturalidade – a mesma naturalidade com que o asfalto recebeu a notícia de 60 execuções no Complexo do Alemão.
O repórter Ricardo Link, da TV Globo, ao procurar sinais de Tim Lopes no sábado passado, chocou-se com os gritos de ?cuidado, vai ter mais Tim? que o recepcionou nas bibocas da Vila Cruzeiro. Não eram ameaças de bandidos, ele escreveu. ?Foram jovens que parecem achar natural o que aconteceu?. Natural, talvez não. Banal, certamente sim. Sessenta mortes num ano são mais de uma por semana.
Antes da execução de Tim Lopes, isso era um assunto de favelados ou segredo da 38a DP. Mais ou menos como o pau-de-arara era problema de pé-rapado até atingir o resto da sociedade brasileira, quando a ditadura militar deu para torturar presos políticos. Com o repórter da TV Globo, que pagou por essa notícia um preço alto demais, o país acaba de aprender que, neste regime civil, a ditadura mora na favela, com tribunais de exceção, tortura, execuções sumárias e suspensão geral das liberdades, inclusive a de imprensa. E isso é informação demais para se desperdiçar com adjetivos indignados."
"TV errou no tom sobre Tim Lopes", copyright O Estado de S. Paulo, 16/06/02
"A execução do repórter Tim Lopes é o emblema do total descontrole do Estado sobre o crime organizado. Serviu para despertar o brasileiro da letargia diante de crimes que hoje entram na pauta diária de todos os veículos. Seqüestros e mortes por balas perdidas tornaram-se tão corriqueiros no noticiário que provoca sensação estranha.
O que deveria causar perplexidade, pela repetição parece ser ingrediente ?normal? do cardápio de notícias, tal como a previsão do tempo e as oscilações do dólar. O telespectador tem certeza de que, ao sintonizar o noticiário, vai ver a ação de cada dia: estouros de cativeiro, tiroteios noturnos, apreensão de armas pesadas, etc. O desaparecimento do jornalista da Globo deu um choque elétrico na platéia entorpecida, mas causou uma convulsão nos meios de comunicação.
A covardia dos criminosos, o injusto fim de um repórter respeitado e a consciência do poder do crime organizado – capaz de decidir o destino não somente dos concorrentes nos negócios do submundo, mas também o de uma categoria que se supunha ?protegida? por representar a instituição imprensa – baixou o moral da tropa em geral.
É natural que os colegas de Tim, profissional de uma coragem pessoal admirável, ficassem consternados e procurassem demonstrar esse sentimento na edição do noticiário. Como sempre acontece, o exagero leva a distorções. O caso Tim Lopes, retratado por todos os telejornais desde o desaparecimento, pautou outros programas (Observatório da Imprensa, da Cultura, e Globo Repórter, por exemplo) e prestou-se a uma retórica perigosa.
À TV, não bastou o horror dos fatos, extremamente chocantes por si sós.
Todas as emissoras embalaram as reportagens com textos ?comoventes?, depoimentos pungentes e interpretações para o significado do crime. Muitos foram os que interpretaram o assassinato de Tim como a tentativa do crime organizado de ?calar a voz da imprensa?, atentar contra a liberdade de expressão, etc.
Que as autoridades têm de ser energicamente cobradas, não há a menor dúvida.
O Estado deve aos brasileiros a apuração deste crime e de todos os outros que comparecem ou não ao vídeo. A TV chamou a atenção para isso, mas deixou passar algo estranho. Nenhum noticiário questionou a presença da cúpula da polícia carioca (inclusive a do secretário da Segurança Pública) no ato que jornalistas fizeram para protestar e responsabilizar as autoridades pela morte de Tim.
O que não está certo é a sacralização feita à profissão de repórter. O jornalismo, na poesia dos textos da TV, foi transformado em causa, em uma missão contra os malfeitores que procuram destruir o mundo e, por isso, coloca seus militantes em confronto constante com o perigo.
Tim Lopes (é bom repetir) foi um repórter corajoso como poucos, mas não um mártir da liberdade de imprensa. Ele antes de tudo era profissional, um jornalista que honrou seu trabalho com dedicação e competência. E cuja carreira brilhante foi interrompida por causa do caos que se instalou neste Brasil pelo descaso do poder constituído. A imagem na era do racionamento."