Na virada fria de quarta para quinta-feira (4/6), o repórter Fábio Lucas Neves, da TV Bandeirantes, produzia a típica ‘matéria de ambiente’, depois do empate sem gols que classificara o Corinthians para a final da Copa do Brasil, em São Paulo. Nas arquibancadas do estádio do Pacaembu, ao buscar os personagens para sua reportagem, percebeu que vários vascaínos estavam feridos e que alguns tinham as roupas tingidas de sangue.
Nesse momento, descobriu que algo grave ocorrera cerca de três horas antes. Segundo os torcedores, violento embate fora travado com corintianos nas proximidades da Ponte das Bandeiras, na Marginal Tietê. Os brigões recusaram-se a aparecer diante das câmeras, mas apresentaram alguns troféus da batalha, como bonés, gorros e camisas tomados dos rivais paulistas.
Logo, com orgulho selvagem, exibiram ao jornalista uma carteira de associado da Gaviões da Fiel, cuja imagem foi gravada pelo cinegrafista Alexandre Ribeiro, o ‘Cabeção’. Pertencia a um certo Clayton Ferreira de Souza, que segundo a data de nascimento deveria contar 27 anos de idade.
– Batemos muito, acabamos com ele – jactava-se um fanático cruzmaltino.
Em seguida, Neves e o cinegrafista puseram-se a documentar o incêndio que consumia um dos ônibus alugados pelos visitantes. Nesse momento, ignoravam que o corintiano Clayton, um promotor de vendas de supermercado, morador da Vila Industrial, na periferia da Zona Leste paulistana, já estivesse morto.
A causa? Traumatismo cranioencefálico provocado por agente contundente. O rapaz fora espancado até a morte. Tinha o rosto desfigurado e lhe haviam subtraído os documentos, o celular, o cartão de crédito e até as vestes.
Status de verdade
Neves teria seu esforço de reportagem valorizado na tarde de quinta-feira (4), quando o corpo do jovem foi identificado pela família. ‘De repente, eu vi que o nome era o mesmo’, relata. ‘Embora eu já cogitasse dessa hipótese, foi um choque.’
Esta é apenas uma das inúmeras pontas de uma história de horror cuja coerência escapou à polícia, à promotoria e à grande imprensa. Inúmeras versões chegaram prontamente às páginas dos jornais, às telinhas e telonas, muitas delas tolas ou inverossímeis.
Na madrugada de quinta-feira, a Gazeta Esportiva Net decretava:
‘Um ônibus da torcida do Corinthians sofreu uma emboscada. Palmeirenses e vascaínos, que possuem relação amistosa, atacaram os rivais. O tumulto culminou com a morte de um corintiano.’
Em matéria levada ao ar às 12h52, a Agência Estado, apresentava outro enredo para a tragédia, baseado em declarações à TV Globo do major Alfredo Donizete Rodrigues de Souza, subcomandante do 2º Batalhão de Choque da PM paulista:
‘O confronto começou por acaso, porque um ônibus de corintianos cruzou com o comboio de vascaínos e eles começaram a se provocar – declarou.’
Nesse momento, entretanto, uma terceira versão já fora apresentada à imprensa. Às 13h19, por exemplo, o G1 trazia matéria em que o promotor Paulo Castilho, encarregado de combater a violência nos estádios, acusava os corintianos de terem armado a emboscada. Segundo ele, cerca de 50 torcedores da facção Rua São Jorge, uma dissidência da Gaviões da Fiel, distribuídos em um ônibus e quatro carros de passeio, esperaram pelos vascaínos com barras de ferro e armas de fogo. Os cariocas eram cerca de 650, distribuídos em 15 ônibus.
‘Eles vieram em paz, mas tiveram que revidar’, declarou o promotor ao diário Lance!. Ao Observatório, afirmou que as outras versões eram fantasiosas. ‘Esse grupo da Rua São Jorge já havia provocado problemas na Baixada Santista’, disse.
A partir desse momento, a narrativa adquiriu status de verdade para a grande imprensa, em São Paulo e no Rio de Janeiro. A cobertura limitou-se a reproduzir a história do promotor e da delegada encarregada do caso. Por horas, não se encontrou nos canais de informação qualquer testemunho dos torcedores envolvidos no conflito.
Pautas e fios
O promotor Castilho adiantou-se em pedir a ‘torcida única’ nos estádios de futebol. A solicitação foi imediatamente endossada pela Polícia Militar e divulgada nos principais portais de notícias na internet.
Parecia findo o rito sumário de construção da notícia. A polícia fizera o possível. A exclusão da presença de adversários restituiria a tranquilidade ao mundo do futebol.
À noite, no entanto, a jornalista Leonor Macedo, 26 anos, que hospeda seu blog no site da revista TPM, resolveu expor os resultados de sua investigação jornalística. Depois de ouvir vários torcedores, apresentou outra versão para a ocorrência (ver aqui; outros post sobre o caso no blog eneaotil).
Retidos numa blitz da polícia, nas proximidades do Clube Espéria, os corintianos teriam sido alcançados pelo comboio vascaíno. Em ampla maioria, de dez para um, os cariocas teriam iniciado o massacre.
‘Não quero dizer que os paulistas sejam santinhos, mas não me parece razoável que mobilizassem apenas 50 pessoas para enfrentar 500’, diz Leonor. ‘Também é difícil acreditar que os policiais supostamente presentes não tenham sido capazes de impedir o conflito e evitar os linchamentos.’
Segundo a jornalista, é estarrecedor saber que a força policial tenha facultado aos assassinos assistir ao jogo, levando ainda como prêmio os pertences de Clayton. ‘Também vale questionar a razão pela qual a PM se recusou a realizar a escolta do grupo Rua São Jorge e se essa omissão não os levou a constituir a própria defesa’, afirma. ‘Tudo isso é vital à compreensão do caso, mas o que se vê é uma cobertura jornalística chapa-branca, de viés conservador e que despreza a informação divergente.’
O trabalho pessoal da repórter reacendeu o debate sobre o caso e também sobre a conduta da imprensa ao noticiar o episódio. Na sexta-feira (5/6), pela manhã, o jornalista Luciano Martins tratou do tema no programa radiofônico deste Observatório, na Rádio Cultura, considerando a hipótese de um gravíssimo erro tático da polícia. ‘A versão oficial, defendida pelo promotor encarregado do caso, é quase inverossímil, mas a imprensa compra a história sem ouvir testemunhas’, afirmou.
Na tarde desse mesmo dia, em matéria de destaque, o portal UOL reproduzia sem dissonância a tese da emboscada corintiana e do ‘potencial violento’ da dissidência da Gaviões da Fiel, repetindo informações da Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi).
A redação paulista do diário Lance!, ao contrário, agitava-se no exercício da dúvida e preparava uma matéria especial sobre os enigmas da ‘batalha da Marginal’. ‘Essa história é um quebra-cabeças em que as peças definitivamente não se encaixam’, disse Marcel Merguizo, um dos editores do jornal. ‘Se queremos fazer bom jornalismo, não podemos aceitar simplesmente a versão oficial.’
O repórter Rodrigo Vessoni, enroscado em pautas e fios de telefone, buscava escrever sobre o futebol corintiano e, simultaneamente, obter mais informações sobre o conflito. ‘A história tecida não confere com os fatos’, dizia. ‘Como é possível que a polícia tenha levado os assassinos até o estádio para assistir ao jogo?’.
Cultura subterrânea
De fato, logo após o conflito, a polícia deteve dezenas de corintianos. Um palmeirense e dois vascaínos prestaram esclarecimentos, na qualidade de testemunhas. Quarenta e oito horas depois da trágica ocorrência, não havia qualquer pista concreta do assassino de Clayton.
À hipótese do erro tático somou-se a da negligência. Segundo o promotor Castilho, 22 homens da PM escoltavam o comboio dos cariocas. Nos depoimentos colhidos pelo repórter Fabio Lucas Neves, porém, os vascaínos afirmavam ter chegado ao local do conflito sem qualquer proteção policial. ‘Acredito na hipótese da emboscada corintiana, mas é fundamental verificar se faz sentido a história contada pelos torcedores do Vasco’, afirmava Neves, no fim da tarde de sexta-feira (5). Até aquele momento, a polícia desprezara seu auxílio nas investigações.
Naquele momento, em casa, Neves se preparava para participar de uma festa junina com a família, mas ainda não havia tirado do pensamento a imagem da carteirinha transformada em troféu. Simultaneamente, na Vila Industrial, a família de Clayton Souza cogitava de processar o Corinthians e o estado de São Paulo. Nos portais de internet, o tema já desaparecera das páginas principais.
Matar e espairecer pode constituir-se em evento escandaloso, ainda que menos raro do que se imagina. Entre nós, o entretenimento sucede, com frequência, a infração grave. Não é à toa que se enxerga com certa paralisia complacente a saga do protagonista de Matou a família e foi ao cinema, de Julio Bressane, de 1969, filme cujo apelo temático rendeu um remake, em 1991, dirigido por Neville de Almeida.
Na ficção, como na realidade, nossa cultura subterrânea admite silenciosamente algum crime tido como privado, em que a vítima é o outro distante, e concede ao autor até mesmo o refresco da diversão. Alguém matou um igual e foi ao futebol. Somente isso. Resta saber se esta trama tem fim.
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Em Tempo
1. Na segunda-feira (8/6) à tarde, o repórter Fabio Lucas Neves (que gravou as imagens da carteira de Clayton nas mãos dos vascaínos) ainda não tinha sido contatado pelos responsáveis pelo inquérito.
2. Nas edições de sexta, sábado e domingo, os repórteres do diário Lance! publicaram várias reportagens que exibiam as incongruências na versão oficial. Seguiam um caminho de investigação desprezado pela grande imprensa.
3. Segundo o promotor Paulo Castilho, não teria ocorrido a visita dos vascaínos à sede dos aliados da torcida Mancha Alviverde. Em sua edição de segunda-feira (8), entretanto, o diário Lance! apresenta links para uma série de vídeos no Youtube que provam esse encontro antes do jogo.
4. Fotos do conflito, publicadas em páginas de vascaínos em sites de relacionamento, comprovavam que esses também portavam artefatos explosivos. Essas imagens também mostravam que o comboio carioca havia, sim, ultrapassado o local onde estariam os corintianos.
5. Na segunda-feira, ainda não havia qualquer pista dos assassinos de Clayton Souza.
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Jornalista, São Paulo, SP