Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Clássico que o autor já não leria, ‘As Veias’ ainda se mostra atual

Para provar que “As Veias Abertas da América Latina” é um clássico, talvez o maior deles, da esquerda latino-americana, basta saber que, na Cúpula das Américas de 2009, Hugo Chávez, então presidente da Venezuela, deu o livro de presente a seu colega Barack Obama.

A notícia fez saltar o livro do lugar 54.295 na lista dos mais vendidos da Amazon para o segundo posto, conforme lembrou o jornal espanhol “El País” no noticiário sobre a morte do escritor uruguaio.

Prova de que, como admitiria mais tarde o próprio Galeano, as veias da América Latina continuavam abertas, ao menos no sentido que lhe quis dar o escritor:

“O sistema internacional de poder faz com que a riqueza continue se alimentando da pobreza alheia. Sim, as veias da América Latina ainda continuam abertas”.

De fato, por mais que a situação social na América Latina tenha melhorado nos últimos anos, continua sendo o subcontinente de maior desigualdade no mundo e com um nível de pobreza obsceno.

Estado de crise

As veias que se fecharam, pelo menos até agora, foram, em todo caso, as do autoritarismo: quando Galeano publicou o seu clássico, em 1971, a América Latina já estava imersa em ditaduras (Brasil) ou na iminência de vê-las instaladas (Uruguai e Chile, em 1973, Argentina em 1976 e por aí vai).

Não por acaso, “Veias Abertas…” foi proibido em praticamente todo o Cone Sul, Brasil inclusive, enquanto duraram as ditaduras.

Se as veias continuam abertas, o livro deixou de interessar ao próprio autor: “Não seria capaz de lê-lo de novo. Cairia desmaiado”, disse durante visita ao Brasil para a 2ª Bienal do Livro de Brasília.

Completou: “Para mim, essa prosa da esquerda tradicional é muito chata. Meu físico não aguentaria”.

O que não se sabe é se seu físico aguentaria a visível decadência também do futebol na América Latina, especialmente Brasil e Argentina.

Política à parte, o futebol foi outro tema em que produziu um clássico (“Futebol ao Sol e à Sombra”). Nele, define o esporte como “a indústria de entretenimento mais importante do mundo”.

No mundo, de fato continua sendo, mas, na América Latina, está em tal estado de crise que seu físico talvez também não aguentasse, como dizia não aguentar o aborrecimento causado pela prosa de esquerda, exatamente a que fez dele um clássico.

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Clóvis Rossi, da Folha de S.Paulo