A decisão da Petrobras de criar um blog no qual reproduz a íntegra das perguntas enviadas à empresa pelos órgãos de mídia – seguidas, para fins comparativos, da matéria nas perguntas baseada tal como por tais veículos publicada –, além de revelar novas potencialidades para a utilização do blog como instrumento de contrainformação, intensifica a cada vez mais cruenta batalha entre a blogosfera e a mídia corporativa.
Inovação que se transforma em fenômeno nos EUA do início da presente década – e no Brasil cerca de três anos depois – a emergência de uma blogosfera politicamente ativa e majoritariamente dividida em facções políticas opostas – da qual o embate Luís Nassif versus Reinaldo Azevedo é talvez o exemplo mais ilustrativo, mas de forma alguma o único – representa, muito possivelmente, a mais relevante novidade do cenário político-comunicacional brasileiro, embora seja ainda difícil precisar seus efeitos reais em termos informativos, de formação de opinião e eleitorais.
A blogosfera política costuma se gabar por alegadamente ter acabado, na marra, com o monópolio da comunicação impressa nas mãos – e nos bolsos – de um punhado de famílias, representantes do conservadorismo em seus diversos matizes. Historicamente, essas forças da imprensa corporativa – aí incluídas as modalidades televisivas e radiofônicas – teriam sido capazes, por um longo período, de barrar ou de restringir a níveis mínimos e alcance reduzido as manifestações contra-hegemônicas no campo da comunicação, como as rádios mal chamadas ‘piratas’, a imprensa alternativa, as TVs comunitárias (que prometiam proliferar e renovar a mídia televisiva quando do advento da TV a cabo no país), entre outras manifestações. O advento da internet teria possibilitado à blogosfera não apenas apresentar-se como alternativa à essa mídia corporativa e hegemônica, mas trazer à luz suas maquinações, omissões e interesses políticos.
Serviço público
Esse novo cenário tem provocado reações irritadas nos porta-vozes da imprensa corporativa, que oscilam entre a tentativa de ignorar a blogosfera como interlocutor político, passam pela generalização grosseira de seu modus operandi – descrito como monocórdio, agressivo, inculto – e chegam à hostilidade aberta. Um dentre vários exemplos possíveis, o colunista da Folha de S.Paulo Clóvis Rossi volta e meia alfineta a blogosfera, como na coluna ‘A coalizão `do bem´’ (24/04), em que acusa a sociedade de estar ‘virtualmente comatosa’ – querendo com isso insinuar, a um tempo, uma crítica à baixa capacidade de mobilização popular e um ataque à internet que lhe rouba leitores, entulha sua caixa de emails e aponta seus erros e distorções.
(Um blogueiro poderia refutar a ironia ferina de Rossi com a provocação de que ele e os demais jornalistas da Folha de S.Paulo é que estariam ‘corporativamente necrosados’, como o demonstraria não apenas a queda vertiginosa na venda de exemplares, mas o fracasso, nas duas últimas eleições presidenciais, dos candidatos representativos do ideário político que o órgão de imprensa em que trabalham notória mas não assumidamente apóia.)
Não é possível precisar se a blogosfera despertou e incitou uma consciência contrária à ‘grande mídia’ em setores da população ou se apenas catalisou um sentimento que já se encontrava latente. Mas o certo é que – como profusamente o demonstram, por exemplo, as caixas de comentários deste Observatório – há neste momento uma insatisfação difusa contra a mídia corporativa.
‘A grande mídia precisa `ir às ruas´ e ver o que está acontecendo com ela (…) o descrédito é total (…) está em ruínas e morrendo enganada. Que continue assim até o fim’ – o comentário do comerciante Neto Novaes, de Salvador (BA), a artigo deste articulista publicado neste Observatório em 29/4/2009 é apenas um dentre vários exemplos de teor semelhante que o leitor pode facilmente encontrar nos sites e blogs jornalísticos.
Na mesma caixa de comentários, a professora universitária Sylvia Moretszohn fornece um contraponto ao desabafo de Novaes que induz a uma reflexão essencial sobre o fenômeno da crise na mídia corporativa:
‘Não dá pra deixar a grande mídia pra lá, simplesmente. Não só porque continua muito influente – certamente não os jornais impressos, mas a televisão e o rádio, sim –, porém principalmente porque são concessões públicas e, mesmo no caso de não serem (como os impressos ou as suas versões online), ocupam um espaço essencial de serviço público e têm contas a prestar. Não podem disseminar informações falsas, não podem provocar pânico, não podem fazer um monte de coisas que fazem e ficar por isso mesmo’.
Questão negligenciada
Sua intervenção toca em pontos relevantes para o debate, evitando os autoenganos frequentes na blogosfera nos embates entre mídia corporativa e jornalismo na internet. Primeiro, a excessiva valorização que os críticos da mídia corporativa fazem da imprensa escrita em detrimento do rádio e, sobretudo, da televisão – veículo cujo grau de penetração nos lares brasileiros, em comparação com o da internet e da imprensa, pertence a outra escala de valores. Segundo, a falácia – naturalizada durante o período de hegemonia do ideário neoliberal – de que, por se constituírem como empresas privadas, os órgãos de imprensa escrita não teriam contas a prestar ao poder público e à sociedade a respeito de suas práticas jornalísticas.
Tais questões juntam-se a outras que concernem especificamente aos limites do jornalismo político dito independente na internet. Contam-se nos dedos de uma só mão os blogs políticos não-corporativos em língua portuguesa que se sustentam comercialmente. Não vou elencá-los para não correr o risco de cometer injustiças, mas cabe lembrar que até mesmo Idelbar Avelar – que, mantendo o blog O Biscoito Fino e a Massa desde 2004, é chamado de ‘mestre’ por mais de uma geração de blogueiros – revelou recentemente, ao aderir por um breve período a um coletivo de blogs, que o seu é comercialmente deficitário. A conclusão é que se ele – professor numa prestigiosa universidade americana – não tivesse um ganha-pão que lhe permitisse o luxo de abrigar um blog em domínio virtual próprio, não poderia, a despeito da qualidade de suas análises, de sua militância aguerrida e do público numeroso e cativo que possui, viver de tal atividade.
Portanto, a profissionalização do jornalismo independente na internet brasileira – com raríssimas exceções – não passa, neste momento, de uma quimera. E, com o perdão da redundância, a dura realidade, na internet ou fora dela, é que jornalistas também precisam de recursos para se alimentar, morar, sobreviver. Apenas como exercício mental, imaginemos o que aconteceria no caso de derrocada da mídia corporativa – objetivo assumido de diversos blogueiros. Num cenário em que, como observa Viviane Forrester, por si só a lógica planetária já pressupõe a supressão de empregos, as dezenas de milhares de estudantes que se formam todos os anos nas faculdades de Comunicação, iriam viver de quê?
Embora eventualmente a blogosfera política atue como produtora de informação – às vezes de forma pioneira e como voz isolada, como na cobertura que os blogs RS Urgente e Cloaca News há tempos fazem dos escândalos envolvendo a governadora gaúcha Yeda Crusius (PSDB-RS) – outro paradoxo envolvendo a atividade advém do fato de que boa parte do jornalismo político ‘independente’ na internet tem a mídia corporativa como principal fonte de matéria-prima, e um montante considerável da produção blogueira destina-se justamente a criticar matérias por aquela produzida (uma vez mais, Luís Nassif e seu ‘O Caso de Veja‘ fornecem exemplo eloquente, mas de modo algum único).
As características apontadas nos dois últimos parágrafos evidenciam, a um tempo, a necessidade e a quase impossibilidade de a blogosfera, em seu projeto de substituição da mídia corporativa, criar condições materiais para satisfazer às demandas de capital, infraestrutura e recursos humanos especializados necessárias à produção industrial do jornalismo e da notícia. Trata-se de um problema que tem sido sistematicamente negligenciado pela blogosfera, que continua parecer crer na geração espontânea da notícia.
Dois eventos
Haveria ainda outros aspectos do tema a considerar – como os processos que têm permitido diferenciar a atividade blogueira mais independente daquela exercida no formato blog mas que repete procedimentos e distorções típicos da mídia corporativa (tendo Ricardo Noblat se tornado uma espécie de símbolo desta última) ou o efeito das incontornáveis idiossincrasias pessoais que marcam a atividade blogueira e que tendem a tornar-se repetitivas e irritantes com o tempo (como a insistência de Nassif em colocar Collor de Mello na lista dos melhores presidentes da história do país ou de afirmar que a batida da bossa nova foi criada, em gravações que aparentemente só ele ouviu, pelo grande violonista Garoto e não, como consideram 10 entre 10 pesquisadores, por João Gilberto). Mas, em respeito à paciência do leitor, paremos por aqui, concluindo com um importante alerta.
A revolução representada pelo advento da internet – e, no âmbito desta, da blogosfera, cuja velocidade de implantação e disseminação tem superado tremendamente a morosidade institucional do Legislativo, não só no Brasil mas em boa parte do mundo desenvolvido – apanhou as forças da mídia corporativa (e do conservadorismo de forma geral) no contrapé. No entanto, é ilusão achar que, com o poder econômico e político que têm, deixarão de fazer de tudo para reverter a situação como ora se encontra, ainda mais porque à medida que a exclusão digital deixar de ser um desafio no país a tendência, naturalmente, é o crescimento da atividade blogueira e virtual.
Dois eventos que terão lugar nos próximos meses deverão influir decisivamente no cenário acima descrito. A primeira será a votação da chamada ‘Lei Azeredo’, que propõe uma legislação ainda mais draconiana para a internet do que a ‘lei Hadopi’, recentemente aprovada na França (ver, neste Observatório, ‘Lei francesa só punirá os desinformados‘, ‘Projeto Azeredo permite aplicação arbitrária‘ e ‘Senador esconde o jogo‘). Se aprovada e se conseguir tornar-se efetiva – já que uma das características distintivas da internet tem sido a capacidade de driblar legislações nacionais com truques tecnológicos – ela representará efetivamente uma ameaça ao exercício do jornalismo ‘independente’ na internet (leia aqui a impecável análise do professor de Direito Penal e advogado Túlio Vianna sobre o tema).
O outro evento será a Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), que se realizará entre 1º e 3 de dezembro deste ano, em Brasília, e que tem tudo para se tornar uma espécie de ringue para a medição de forças entre corporações midiáticas de um lado e representantes da sociedade civil, ONGs e militantes da internet de outro. Sem a união destes, há grande chance de – como ocorreu por ocasião do projeto da Ancine – a mídia corporativa impor, uma vez mais, suas demandas.
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Jornalista e cineasta, doutorando em Comunicação pela UFF; seu blog