COPA 2002
"Crônica brasileira se perde nos sonhos", copyright O Estado de S. Paulo, 27/6/02
"Na noite anterior ao jogo da semifinal, contra a Turquia, Galvão Bueno anunciava que o Brasil poderia, se ganhasse, jogar a sua sexta final contra a Alemanha que estaria em uma final de mundial pela sétima vez. E exultava: são treze finais de copa entrando em campo. Na verdade ele só corroborava o que já havia sido dito na transmissão do jogo entre Alemanha e Coréia. Errou, não errou sozinho e, o que é pior, não se retratou. Normal.
Para a crônica esportiva brasileira a retratação é uma humilhação a que poucos se submetem.
Durante o jogo, no primeiro tempo, a equipe que transmitia o jogo pela TV Globo cansou de pedir a cabeça de Ronaldo. Ficaram espantados com a insistência do teimoso Felipão em manter o time e insistiam que a solução era Luizão. Três minutos depois, Ronaldo classificaria o Brasil para a final em jogada individual, levando quatro zagueiros turcos no bico de sua chuteira. A Fifa consagrou Ronaldo como o melhor em campo, a equipe da Globo não. Mas, pelo menos, concluíram que Luizão não era, como pregavam, a solução. Erraram e não se retrataram. Fizeram o mesmo com Ronaldinho no jogo contra a Inglaterra. Fizeram o mesmo com Edmílson, antes do golaço de bicicleta. Mas isso não é privilégio da equipe da Globo: ver um jogo que ninguém mais vê. Embora, nesta Copa, isso esteja agravado por só haver uma transmissão dos jogos.
A imprensa brasileira sofre, a meu ver, no que tange à crônica esportiva, de um mal filosófico: é platônica. O futebol que a seleção brasileira da imprensa joga nunca existiu, não existe e nem nunca existirá. Reclamaram de Telê em 82, e faziam de seu time motivo de piada para, anos depois, chegarem à conclusão de que aquele era um dos melhores times de todos os tempos.
Crucificaram o time que ganhou em 94; apedrejaram Ronaldo pela Copa de 98 – e os tapes comprovam que ele jogou muito -; crucificaram Felipão por não levar Romário e preferindo um ataque com Ronaldo e Rivaldo, respectivamente o artilheiro e o segundo artilheiro da copa até o presente momento. Ninguém vê tanto defeito em nosso time quanto a imprensa brasileira.
O futebol que a imprensa tem na cabeça, o futebol ideal, o que eles acham que é a marca legítima do futebol brasileiro é absolutamente irreal, e é como a maçã ideal de Platão, que não poderia ser colhida em nenhuma macieira. O futebol perfeito. No jogo ideal da imprensa brasileira nós sempre ganhamos de 90 a zero. Um gol por minuto, e em geral de bicicleta, ou depois de driblar o time adversário inteiro sete vezes. Nesse jogo hipotético, sobre-humano, ninguém nunca errou um passe e o Brasil sempre está com quatro jogadores a menos, expulsos injustamente pelo juiz ladrão. E o adversário é um gigante sem talento mas perverso e tenaz. E o técnico?
Nossos técnicos precisam ser monges e tolerarem tudo sem se meter com os craques que, de preferência, têm de ter as pernas tortas e ser muito mulherengos e desobedientes, jogando sempre no improviso e contra a fria e burocrática disciplina adversária. Bem, voltemos ao mundo real.
Nesta Copa o Brasil vem mostrando que está em sua melhor fase e faz aquela que pode e deve ser a sua melhor campanha em um mundial. Vai à final tendo o melhor ataque, o menor número de faltas, o artilheiro e o vice, o maior número de jogadores na ?seleção da copa?, o maior saldo de gols, etc. A equipe joga limpo, se defende muito bem e ataca com criatividade e dando margens ao talento e ao drible. Parece difícil para a nossa crônica enxergar que temos uma superioridade – mesmo não sendo como nos sonhos, mas uma superioridade real. (Leo Jaime é compositor e jornalista)"
"A Seleção real e a dos comentaristas", copyright Jornal da Tarde, 29/6/02
"Para Tostão, a seleção de 70 tinha seus defeitos
Junto duas coisas: o depoimento que Tostão deu há uns dois meses na ESPN Brasil e o artigo que o compositor Leo Jaime publicou no ?Estadão? do último dia 27.
Tostão disse que há um ?endeusamento? da Seleção de 70, ?que não corresponde à realidade?. Tostão, pivô do ataque que conquistou o tri, afirmou: ?O time tinha defeitos, tinha dificuldades, não era um time que fazia jogadas brilhantes o jogo todo.? E lembrou que, na final, contra a Itália, ?Pelé bateu duas faltas na lua, Rivelino errou vários chutes de fora da área, eu não joguei quase nada.? Lembrou que a defesa não tinha a qualidade do ataque e do meio-de-campo. Mas aquele foi, disse, ?um time individualmente espetacular e com ótimo conjunto.?
Leo Jaime, em meio a alguns exageros, fez no seu artigo um interessante desenho psicológico dos comentaristas esportivos em geral, e especialmente os da televisão, no caso desta Copa, os da Globo. Cito: ?O futebol que a imprensa tem na cabeça, o futebol ideal, o que eles acham que é a marca legítima do futebol brasileiro é absolutamente irreal.? E cito mais: ?Nesse jogo hipotético, sobre-humano, ninguém nunca errou um passe.? Disse que essa imprensa tem na cabeça ?o futebol perfeito?, o qual ?nunca existiu, não existe e nem nunca existirá?.
Percebe-se, pela leitura, que os dois falam da mesma coisa. Só que um fala que aquela não era tão boa, e o outro diz que esta não é tão ruim quanto diz a crônica. Tostão, mais exato ou mais prudente, não diz que esta é uma visão dos jornalistas esportivos, diz que ?há? um endeusamento, existe por aí, é o que se diz, é a fama. Este é o ponto que eu acho mais rico.
Futebol é mito. É epopéia. É uma narrativa em que não cabem atos banais como escovar os dentes ou comprar pão. O resumo, o sumo, o que fica na memória é a bravura, o grande gesto, a superação, o momento sublime. Assim, bolas fora, chutões, laterais, passes malfeitos não entram nessa narrativa mítica gravada na memória popular.
O interessante é que profissionais da imprensa, boleiros experientes, se contaminem por essa construção coletiva mítica. Colocam-se no nível popular. E isso é ruim? Acho que é aí que eles ficam mais próximos da alma da torcida, falhos, contraditórios, questionáveis.
A chamada crônica e o futebol se completam, como rapsodos e heróis.
A televisão traz o passado
Nesses tempos de Copa, os canais pagos de televisão Sportv e ESPN Brasil exibiram grandes jogos do passado da Seleção Brasileira. E muitas vezes exibiram os filmes oficiais das copas. No primeiro caso, o público pôde ver esses erros de que falou o Tostão e o futebol real de que fala Leo Jaime. Curiosamente, os resumos dos jogos apresentados nos filmes oficiais, nos quais só vemos os grandes momentos das partidas, correspondem à memória mítica de que falei atrás, e a reforçam.
Vimos, nas partidas completas, que as seleções brasileiras de 70 e de 82 erravam, sim. A diferença é que tinham lampejos de orquestra.
Os técnicos já estão satisfeitos
Pelas declarações dos treinadores, parece que eles já estão de barriga cheia. Durante a semana, falaram o da China, o da Turquia e o da Alemanha. Até no nosso Felipão o enviado especial do JT, Sidney Mazzoni, sentiu uma pontinha de dever cumprido nas palavras após o jogo contra a Turquia. Quando o vi falando na televisão, também tive essa fugidia sensação. Procurei nas palavras e não achei. Talvez fosse o tom. Na copa dos azares, o que vier é lucro. Não se sente que haverá um grande drama no País em caso de derrota. Parece que a torcida também acha que agora o que vier é lucro."
"As cinco estrelas", copyright O Globo, 1/7/02
"Na TV da sala, Cafu levanta a taça em Yokohama, ele próprio transformado em troféu, de pé sobre um pedestal. Pronto. O ?agora? vira ?sempre?. E tudo se torna História. Cafu repetindo Bellini em 58, Mauro em 62, Carlos Alberto em 70 e Dunga em 94. Seus companheiros de luta. Nós aqui, sofrendo, vibrando, enlouquecendo, enrouquecendo. A pixotada de Lúcio contra a Inglaterra já é História.
Cinco vezes campeões do mundo. Mesmo os brasileiros que nunca sentiram a alegria infantil de ?bater uma bolinha?, essa alegria que os melhores momentos da seleção na Ásia transmitiram para bilhões, como no segundo gol na Alemanha, até eles sentem-se, com razão, tão importantes quanto o capitão Cafu. O futebol do Brasil justifica nossa existência coletiva. Ele, aliás, continua estimulando os pobres do planeta, ao mostrar que o bem-nutrido Kahn pode sair catando cavaco diante de Ronaldo, Rivaldo e Kleberson. (Fico comovido ao pensar nas tradicionais comemorações em Bangladesh e no Haiti.)
Somos os vencedores, dizem os jogadores, dizemos os brasileiros, ecoam os bengalis, os haitianos. Alguns, porém, são mais vencedores que outros, claro. Não me refiro nem à Família Scolari como um todo, mas a alguns de seus rebentos. Para começar, o próprio técnico. Ranheta, teimoso, sem saco para fazer média com a mídia paulistana e carioca, ele triunfou completamente. Não apenas por ter levado a seleção a um belo penta, mas por ter levado à sua maneira: sem Romário, com três zagueiros, confiando em nomes execrados (inclusive por mim), como Marcos e Roque Júnior, dois leões na hora agá.
Scolari é, portanto, um pouco mais vencedor que os outros. Há quatro integrantes de seu grupo que também podem bater no peito ainda com mais orgulho que seus briosos colegas e convencidos torcedores. Eles formam duas duplas, cujos membros são semelhantes entre si por talento e experiência: Ronaldo e Rivaldo; Kleberson e Gilberto Silva.
Os dois primeiros, craques reconhecidos, haviam sido desenganados pelos médicos do Internazionale e do Barcelona. Os psicólogos de botequim já haviam desistido deles, considerando-os frouxos em momentos capitais. Pois, na Coréia e no Japão, Ronaldo e Rivaldo foram tudo, menos frouxos. A decisão contra os alemães foi perfeita, inclusive sob esse ponto-de-vista: o centroavante meteu dois gols no melhor guarda-metas do certame, sendo que a jogada do primeiro começou numa roubada de bola sua; o camisa 10 estava apagado, como quase sempre antes da Copa, mas iluminou-se justamente nos dois lances, o chute traiçoeiro que Kahn não conseguiu agarrar e o abrir de pernas genial.
Kleberson e Gilberto Silva foram as grandes descobertas de Scolari para a seleção. Jovens e discretos, pareciam carecer do tutano necessário a uma Copa do Mundo. Quá. Foram mortais no desarme – a comparação com abelhas agressivas, feita antes da final por um auxiliar de Rudi Völler, lhes fez justiça – e muito mais espertos na ligação com o ataque do que Emerson ou Vampeta, mais experientes, jamais foram. Para mim, inclusive, Kleberson foi o melhor em campo ontem. Roubou bola, passou, chutou na trave.
A esses cinco brasileiros, Scolari, Ronaldo, Rivaldo, Kleberson e Gilberto Silva, um quinteto tão heterogêneo quanto tendem a ser quaisquer quintetos de brasileiros, nós devemos o penta e algo mais. Eles foram as cinco estrelas na nossa camisa."