Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Salve, símbolo augusto da paz!

A CAMBALHOTA DE VAMPETA

Paulo José Cunha (*)

O instante inesquecível em que Vampeta deu aquela cambalhota na rampa do Palácio do Planalto, depois de ser condecorado pelo presidente, devia ser congelado e exibido no futuro como o marco da assunção popular de um símbolo nacional até ali "protegido" do povo, senhor autêntico e seguro da praça onde foi erguido, do palácio de que faz parte, mas que até ali não tinha sido informado disso. A rampa ? assim como a praça, a bandeira, o próprio palácio, o revoar dos pombos, o Hino Nacional e a alegria das crianças ? é do povo, como o céu é do condor. Só que até então todo mundo ainda tinha receio de assumir porque, de geração em geração, vimos sendo adestrados a respeitar os símbolos em si mesmos, tomando-os pela substância do que representam, numa tenebrosa e proposital confusão entre significante e significado.

Foi preciso que um irreverente jogador de futebol desse uma cambalhota para, chaplinianamente, nos resgatar a rampa e o que ela significa. Vampeta nos ensinou a ver o óbvio: símbolos existem para ser usados e, assim, cumprirem a função para a qual foram criados. E é bom lembrar que a rampa sequer foi criada para ser símbolo, mas assim se tornou por conta da ritualização de seu uso por alguns ocupantes do Palácio do Planalto. (No governo Collor, subir a rampa na companhia do presidente transformou-se em honraria disputada a tapa).

Somente nas religiões os símbolos valem efetivamente pelo que representam, o significante se equivalendo ao significado, o representante significando o representado. No Cristianismo, o pão e o vinho não "simbolizam" o corpo e o sangue de Jesus Cristo: "são" mesmo, em sua integralidade e substância, o corpo e o sangue do Messias, após a consagração pelo oficiante. Na umbanda, um patuá de Oxóssi tem o poder mágico de efetivamente proteger o portador, e não apenas de simbolizar essa proteção. O símbolo, ao se confundir com o simbolizado, justifica o respeito que se deve devotar a ele, devidamente capitulado no próprio texto constitucional, na parte que se ocupa das confissões religiosas.

Coisas diversas, de dimensão diametralmente oposta e inferior, são os símbolos temporais, entre os quais símbolos cívicos como a bandeira, as Armas da República e o Hino Nacional. A estes a legislação impõe a obrigatoriedade do respeito, definido em regras rígidas sobre seu uso. Ainda assim, permanecem símbolos, isto é, não merecem respeito pela própria substância de que são feitos, mas, tão somente, pelo que representam, e por força da legislação que os regula. Durante o período revolucionário, o fanatismo nacionalóide dos militares que empalmaram o poder produziu como um de seus mais deletérios efeitos no imaginário popular a convicção de que os símbolos cívicos exigiam tratamento idêntico aos símbolos religiosos.

E assim, durante décadas, o povo brasileiro foi proibido de entoar seu hino em ritmo diverso do "oficial" (a interpretação a capela de Fafá de Belém quase provoca uma convulsão nacional, à época). A bandeira, envolta em odor de santidade, restringia-se aos mastros das instituições e, vista a distância, projetava a idéia de uma pátria distante, longínqua, quase inatingível. Somente em ocasiões especiais ? como a própria conquista do tri, em 70 ? o povo pôde reconquistar sua bandeira. Sob seu manto, numa imagem que virou ícone dos novos tempos, o povo se protegeu da chuva no dia em que os caras-pintadas ocuparam a Esplanada dos Ministérios exigindo a expulsão de Fernando Collor.

Em países como a Inglaterra, o principal símbolo do país, como a conhecidíssima bandeira inglesa, independentemente da estação do ano ou da temporada esportiva, está presente em toda parte, inclusive em buttons, sutiãs e calcinhas. É o símbolo em uso, massificado, tornado em marca, disseminado, levando aos rincões mais afastados do mundo o recado de que existe um país alegre e próspero, onde se pratica a liberdade e a democracia. E nem pelo fato de sua bandeira vir gloriosamente estampada na abundância de uma bem dotada modelo inglesa, ela perde sua majestade. Ao contrário, glorifica-a.

Paulatinamente, ao longo da história, vimos dessacralizando certos símbolos que caíram em desuso por anacronismo, como o anel de doutor e o ato de pendurar o diploma na parede do escritório. Estamos reaprendendo a usar os nossos símbolos de maneira mais relaxada, mais honesta, mais alegre, mais feliz. Na copa do penta, nossos designers fizeram a festa com as cores do pendão da esperança, enchendo as ruas com a alegria do verde e do amarelo, do branco e do azul. Quem dera continuássemos vida afora, não só em época de Copa do Mundo, a exibir nosso orgulho em bonés, bandanas e, por que não?, em calcinhas e sutiãs…

Vampeta deu a deixa: está na hora de darmos cambalhotas de alegria, celebrando com sagrada irreverência os nossos símbolos. Não sei se assim iremos resolver os nossos problemas, nem se trata disso. Mas, com certeza, vamos ficar mais donos do nosso próprio país. Não sei bem como nem por que, mas tenho certeza de que este é o caminho correto.

Outro dia, um motorista de táxi, senhor de certa idade, ao me deixar em casa apontou para uma enorme bandeira brasileira que as crianças pintaram no asfalto da minha quadra, em Brasília, e comentou, com ar de quem queria mandar as crianças arderem no fogo do inferno: "Absurdo, o senhor não acha? Pintar nossa bandeira no chão, onde todo mundo pisa… Que desrespeito!" Calei-me por conveniência, resmunguei qualquer coisa, paguei a corrida e raspei-me pra casa, como medo de que lesse meus pensamentos. Como ele reagiria se soubesse que eu não tenho nada contra a exibição das gloriosas cores nacionais num portentoso bumbum de mulata, quanto mais no asfalto das ruas? Para esses que confundem significado com significante, só vejo um jeito: mandar gravar milhões de fitas de vídeo e distribuir pelas escolas com a aula de civismo contida na cambalhota que o Vampeta deu na rampa do Planalto. Aquilo ali é alegria, a cara da gente, o resto é ritual. Nossa irreverência é o que nos salva.

(*) Jornalista, pesquisador, professor de Telejornalismo, diretor do Centro de Produção de Cinema e Televisão da Universidade de Brasília. Este artigo é parte do projeto acadêmico "Telejornalismo em Close", coluna semanal de análise de mídia distribuída por e-mail. Pedidos para <pjcunha@unb.br>