ERA DE GUTENBERG
Ivo Lucchesi (*)
Em recente entrevista concedida por Zuenir Ventura ao programa Letras & Mídias (o compreensivo leitor saberá desculpar essa auto-referenciação que logo terá justificativa), em dado momento, o consagrado jornalista e cronista fazia uma observação própria de quem acompanha atentamente as transformações em curso. Em tom de alerta, Zuenir afirmou que uma das questões presentes na atual atividade jornalística é o enfrentamento de um efetivo problema à espera de solução: o jornalismo e o público estão sendo inundados pela excessiva carga de informação, sem o suporte da não menos necessária explicação.
Sim, ali no fluxo da conversa, acabara de vir à tona um dado da realidade atual que, pelo seu perfil, tende a transformar-se num crescente impasse, diante do qual os profissionais de comunicação haverão de se sentir impelidos a uma revisão de suas próprias funções. Ao tecer esse registro, estou, na verdade, procurando desenhar um quadro já perceptível, principalmente nos jornalistas mais jovens. Já formados sob o impacto das transformações político-econômico-culturais das últimas décadas, eles acusam certo estado de estonteamento com reflexos imediatos no resultado final de suas matérias e coberturas.
Como folhetim de suspense
De um lado, amplia-se assustadoramente o nível de sofisticação em todos os campos da inteligência; de outro, simplifica-se o modo de noticiar os acontecimentos urdidos por essa mesma inteligência. Na outra ponta, encontram-se leitores (ou telespectadores), em sua maioria, portadores dessa igual defasagem que, no fundo, é da ordem do conhecimento. Ao focar tal aspecto, não estou afirmando que a defasagem se confunda com ignorância. Se assim o fosse, estaria duplamente errado, tanto pela grosseria quanto pela prepotência. A rigor, pretendo apenas acusar a existência de uma gama desproporcional de informações em relação à capacidade de organização. O que produz o aturdimento não provém jamais da ignorância, e sim da desarrumação de múltiplos conteúdos (ou estímulos). Assim, o desafio que se apresenta a produtores e consumidores de notícias é o desenvolvimento de uma percepção compatível com a configuração de mundo.
Há, sem dúvida, na mecânica dos operadores de informação, um conflito que não se resolve, dada a incompatibilidade entre os termos da seguinte equação: armazenamento x filtragem + concatenação = compreensão. Esta seria a equação produtiva para o aperfeiçoamento do saber. Todavia, na prática cotidiana, não é assim que os termos são operados. Há nela uma sucessão de desconexões, cujo resultado final redunda em subtração na estocagem de conhecimento: armazenamento ? filtragem x concatenação = perturbação cognitiva.
Sucedem-se matérias informativas a respeito das falsificadas contabilidades de grandes corporações americanas. Noticiar os fatos em nada esclarece a lógica que os produziu. Sem fazer emergir a explicação das tramas responsáveis por tais procedimentos delituosos, a realidade na qual elas se deram permanece recoberta por algum tipo de mistério a alimentar uma modalidade jornalística que, cada vez mais, se confunde com folhetim de suspense. Agrava-se a situação porque o mistério não se restringe apenas ao campo do capitalismo financeiro. Pelo contrário, espraia-se por todas as áreas. O noticiário sobre descobertas científicas não é diferente. O que, sinceramente, a maioria dos leitores compreende acerca do que lê, ouve e/ou vê? Se o ofício jornalístico não se entregar rapidamente à elaboração de uma nova política de comunicação, temo pela própria sobrevivência do jornalismo, pelo menos nos moldes em que nos habituamos, desde as origens da Era de Gutenberg, a reconhecê-lo. Uma "nova didática" para os meios de comunicação passará a ser demandada, independentemente da querência ou não dos atuais defensores do modelo oferecido.
Contradição do capitalismo
A velha máxima ("comunicação é informação") que fez perdurar o casamento entre complexo midiático e público pode estar à beira da dissolução. Mesmo o advento do "jornalismo online", anunciado com alarde e investimentos esperançosos, não tem, até aqui, alimentado sinais promissores, a exemplo da fracassada expectativa na parceria entre vendas e internet. Talvez, os profissionais à frente de tais modalidades não estejam computando a real necessidade que, na outra ponta, se encontra. Há sinais de perturbador esgotamento ante o "vazio" que segmentos letrados começam a manifestar, no tocante à frustração das "novas ofertas". Tudo satura, inclusive a massa de informações e, pior ainda, se elas tendem a ser desencontradas.
Pesquisas recentes dão conta de que tem havido um aumento de entradas em chat, porém também foi constatado que tem decrescido o tempo de permanência nele. Ora, a junção desses dados permite ao analista deduzir que a "ferramenta" produz apelo, enquanto a experiência revela desencanto. O "vazio" dos contatos faz o usuário deslizar para outros e outros mais. Essa reiterada tentativa leva à exaustão e ao progressivo desinteresse. Desconfio que igual sintoma esteja a rondar os ânimos dos consumidores de notícias. Em sendo verdade, é a essência do jornalismo a estar em jogo.
Se por um lado a tecnologia vem sofisticando processos de simulação do real, também é verdade que a mesma tecnologia vem propiciando processos crescentes, em vários setores, de autonomização. Por ora, a indústria fonográfica tem sido o foco mais visível. Crescem selos alternativos e produções independentes. Em breve, também o fenômeno atingirá editoras e outros ramos da Indústria Cultural. A única possibilidade de ação inibidora por parte dos meios de comunicação haverá de ser pelo caminho da qualidade dos conteúdos, sob pena de os habituais usuários migrarem para outras ofertas que, inevitavelmente, em futuro próximo, estarão disponíveis.
Esta é uma contradição interna da própria espiral do capitalismo. Persistir, pois, na simplificação de conteúdos pode resultar na fragilização de todo o processo responsável pela difusão da informação. Quem fizer pouco caso acerca desse risco poderá amargar graves conseqüências. Afinal de contas, nada na história da civilização se mostrou eterno. Quem, portanto, poderá assegurar a eternidade da Era de Gutenberg, entendida aqui como "jornalismo industrial"? Zuenir Ventura terá lá sua alta dose de razão…
(*) Ensaísta, doutorando em Teoria Literária pela UFRJ, professor-titular da Facha, co-editor e participante do programa Letras & Mídias (Universidade Estácio de Sá), exibido mensalmente pela UTV