CIRO NA BERLINDA
Gilson Caroni Filho (*)
Por que Ciro Gomes assusta tanto as Organizações Globo? Ao contrário de Lula, não tem uma trajetória política no campo democrático-popular. Com DNA arenista, sua própria condição de usineiro não parece predispô-lo a mudanças estruturais. Não é por insatisfação difusa que conta com apoio de velhas oligarquias nordestinas e a simpatia do ex-presidente da UDR Ronaldo Caiado. Já foi destacado quadro dirigente do PSDB. À frente do Ministério da Fazenda, ainda na gestão Itamar, incrementou a política de abertura desenfreada do mercado. O real foi absurdamente sobrevalorizado durante sua permanência na pasta. Vale lembrar que foi indicado para o cargo em verdadeira operação-abafa. Buscava-se minimizar os eventuais estragos provocados na campanha de FHC pelo antigo ministro Rubens Ricúpero que, em momento de descontração nas dependências da Globo teria dito que o governo só mostrava o que lhe convinha eleitoralmente. O famoso “o que é bom a gente mostra” foi captado por parabólicas. Ricúpero caiu, Ciro assumiu prestimoso e FHC se elegeu.
Em suma, trata-se, para usar demarcação que ficou famosa no livro de Thomas Skidmore sobre o sistema político getulista (Brasil: de Getúlio a Castelo), de um “de dentro”. A opção transformista que sempre estará disponível para obstar a ascensão de um projeto efetivamente alternativo ao modelo dominante. De perfil conservador e gestos voluntaristas, tem inequívoca vocação bonapartista. Uma candidatura que empolga o eleitorado que deseja desvios de rota sem rupturas. A famosa “continuidade sem continuísmo”.O anti-Lula que a classe média pediu aos céus. Tão carismático como presdigitador, Ciro é o sonho de mauricinhos e patricinhas (incluindo a Gomes e a Pillar), e evoca boas recordações na memória das mal-amadas de Lacerda. Aquele que, indo para o segundo turno, aglutinaria todo o eleitorado de direita. E, uma vez empossado, supostamente não teria problemas para compor com o atual governo e o modelo econômico vigente.
No entanto, como destacamos em outro artigo nesta mesma edição, o candidato da Frente Trabalhista é o alvo preferencial das Organizações Globo no atual momento eleitoral. Em matéria de capa, a revista Época desta semana trata de investigações que estariam sendo feitas pelo Ministério Público Federal sobre seu vice, Paulo Pereira de Souza, o Paulinho da Força Sindical. As acusações vão do uso irregular de dinheiro público na aquisição de uma fazenda para a entidade sindical, no interior de São Paulo, à cobrança de taxas a empresários em troca de acordos lesivos aos interesses dos trabalhadores. A matéria faz explícitas críticas ao outrora incensado sindicalismo de resultados.
É um festival de imposturas. O presidente da central que disputa com a CUT a hegemonia no movimento sindical e, até bem pouco tempo, foi solícito a todas as demandas do governo, é reprovado “eticamente” pelo mesmo esquema que ajudou a sustentar. Seria o caso de dizer “bem-feito” mas, convenhamos, há algo de podre no vice-reino de Pindorama. Empresários condenando a ação de aliado recente, Ministério Público apurando negociatas ? o que é bom, mas só ganha magnitude à medida que os envolvidos possam ameaçar a candidatura tucana ? e Época revelando estar em campo investigando o mesmo personagem formam uma curiosa tríade. Quem medianamente informado não conhecia o modus operandi da Força Sindical? Quem não ouviu falar de seus inúmeros acordos espúrios com o capital e o governo em detrimento dos interesses dos “representados”? Quem desconhece qual fração sindical legitimou as ações do Planalto para protelar o pagamento de parcela do FGTS, confiscada por planos econômicos de governos anteriores? Mera advertência
Pois bem, a revista das Organizações Globo, levou 219 edições para revelar ao mundo o telhado de vidro de um sindicalismo que só beneficiava os patrões. No corpo da matéria as contradições se avolumam e dão ao leitor a sensação de trabalho de encomenda. Cotejando parágrafos que se sucedem, tem-se a impressão de um texto feito de afogadilho. Algo para ser divulgado no mais curto prazo possível.
Inicialmente, registra-se a indignação do presidente da Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp), Horácio Láfer Piva, contra a ação de um sindicalista que prejudicou os interesses da categoria que representava. Fúria moral que teria chegado às barras da Justiça.
“Na área sindical, na qual fez uma carreira meteórica como sucessor de Luiz Antonio de Medeiros, hoje deputado do PL, Paulinho é denunciado por selar acordos em que trocava benefícios históricos dos trabalhadores por comissões em dinheiro destinadas às entidades que dirigia. São cláusulas tão aberrantes que, em função de aspectos éticos e legais, até a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) decidiu condená-las através de ações na Justiça.”
Em troca de uma comissão destinada aos sindicatos, calculada em R$ 30 milhões, os empresários se veriam desobrigados a pagar menos encargos de INSS e FGTS. A prática lesiva aos trabalhadores estaria sendo realizada desde o dissídio salarial de 1999. Curioso é que o Sr. Piva tenha se mostrado surpreso pois, como informa a revista algumas linhas adiante, “…o acordo foi desenhado depois de reuniões entre patrões e a Força na sede do Sindicato da Indústria de Lâmpadas e Aparelhos Elétricos de Iluminação no Estado de São Paulo (Sindilux), que fica no 9? andar do prédio da Fiesp.” É bem verdade que não sabemos o andar em que fica o gabinete da presidência, e certamente acordos dessa monta não devem ultrapassar as quatro paredes do local onde foram urdidos.
O interessante é o estilo adotado pela revista para acusar o vice de Ciro. Não sabemos se, por autocrítica ou ironia, a revista revaloriza as “conquistas históricas dos trabalhadores”. Os mesmos benefícios que, há alguns meses, se chamavam Custo-Brasil” e deveriam ser removidos para o incremento de produtividade, agora são reapresentados como direitos vilipendiados por um sindicalista inescrupuloso. A semântica anda de mãos dadas com os interesses de ocasião.
Claro que Época não se esqueceu de Martinez. Faz até um esforço de conjectura que não poderíamos deixar em branco. Sob o título “Martinez, amigo de PC Farias, continua na campanha de Ciro”, o leitor é instado a imaginar o que ocorreria se “o coordenador de campanha do candidato José Serra, Pimenta da Veiga, tem uma dívida com Paulo César Farias, o ex-tesoureiro da campanha de Fernando Collor. Ou de que o deputado José Dirceu, presidente do PT, paga à família de PC um empréstimo, contraído durante o período que o ex-tesoureiro reinava no mundo da corrupção. Os dois casos são rigorosamente falsos. Do contrário, configurariam um escândalo.” Interessante proposta, já que estamos trabalhando com fato anterior à atual campanha, seria substituirmos Pimenta da Veiga por Ricardo Sérgio.
Talvez a resposta à questão formulada na abertura deste artigo esteja em lições apreendidas no passado. Sem coonestarmos a associação de Ciro ao ex-presidente Collor, cremos que as Organizações Globo temem um segundo turno sem José Serra. Se tal ocorresse, novamente não lhe restaria alternativa a não ser apoiar uma personalidade política que deseja trafegar desenvolta fora de máquinas partidárias. Embora conservadora, tem perfil intempestivo e um claro viés bonapartista, o que não dá ao mercado financeiro a tranqüilidade proporcionada pelo “cordato” Serra. De volátil, todos sabem, a família Marinho só aprecia o capital e este, paradoxalmente, solicita cenário político previsível. Onde, quem sabe, futuros aportes já estejam acertados? Por que negociar com “um de dentro”, que pode pretender uma indesejável autonomia? Com um olho no padre outro na missa, o móvel de todos os lances continua sendo o candidato petista. Caso se afigure inevitável a inviabilidade de Serra, o apoio a Ciro será balizado pela reprise de Anos rebeldes. Mera advertência de quem, como avalista, tem arrependimento recente no prontuário.
(*) Professor-titular da Facha