Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Jornalismo na arapuca do mercado

LEITOR-CLIENTE

Luciano Martins Costa (*)

Depois de quebrar a cara muitas vezes, indispondo-me com amigos por tentar fazer análises mais ou menos ponderadas da política nacional e de outros temas diários da imprensa, acho que entendi o sentido da armadilha em que se meteu o jornalismo.

Vamos ver se consigo me explicar: um dos paradoxos da sociedade hipermediada em que vivemos é que a mediação ? celebrização ? quase sempre produz juízos de valor que dissimulam o valor da obra ou pessoa em si, ou dão a ela um valor que de fato não tem. O mesmo acontece quando uma tese alcança o grau de best seller, reduzindo-se em torno dela o nível de exigência e o senso crítico, porque ninguém quer ser tido como alheio ao que é de conhecimento e apreciação geral. Nem mesmo, e principalmente, os jornalistas.

Lembro de uma das primeiras entrevistas do escritor Paulo Coelho, publicada no Jornal do Brasil, anos atrás. A repórter gastou boa parte do espaço para descrever, assombrada, como as folhas de uma plantinha se mexiam quando o homem falava. A moça realmente acreditava que PC tivesse o dom de mover folhinhas. Chamou-o de Mago, e a partir daí o manipulador de crendices virou mago para toda a imprensa, ganhando seção de mago em revista de domingo, sem que o leitor fosse informado sobre o que é que um mago faz além de ganhar dinheiro vendendo milhões de livros. Levita? Cura Aids? Move folhinhas? Faz o dólar baixar?

A imprensa trata de dar ao leitor comum apenas o suficiente para ele se inteirar de que tal fato aconteceu ou que tal pessoa disse tal coisa, situando-o mais ou menos no contexto dos eventos, apenas o suficiente para que ele possa emitir uma opinião. Daí, o sujeito dirige-se ao boteco e comenta com o amigo: "Já leu o livro daquele mago?".

O mesmo fenômeno acontece com as jovens cheias de energia que transam com um jogador famoso, exibem suas genitalidades em revistas ou engravidam de roqueiros, e por essas expressões de talento e de relevância social ganham o direito de analisar a obra de Avicena na TV, afirmando que todo muçulmano é um perigo para a civilização. Quando elas ganham a mídia, ninguém mais se lembra como é que foram parar ali. Há quase uma década, uma dessas jovens cheias de energia queria sair na capa do Estado de S.Paulo por haver tomado umas bolachas do gentleman que a imprensa chama de "craque Edmundo", no bar de Wanderley Luxemburgo. Encaminhei-a ao falecido Notícias Populares e lhe dei a glória.

Pergunta certa

Por que isso é uma armadilha para o jornalismo? Porque, assim como as empresas jornalísticas se tornaram reféns do mercado quando assumiram o mito segundo o qual é preciso "satisfazer o cliente", também os jornalistas, pessoas físicas, assumiram o mito segundo o qual é preciso satisfazer o leitor. Isso quer dizer dar sempre a ele aquilo que ele possa reconhecer, ou seja, evitar a qualquer custo correr o risco de ter um leitor que se sinta excluído da pauta. Por isso, todos temos de saber os nomes, hábitos, vícios, defeitos e disponibilidade para o sexo daqueles patéticos indivíduos que passam semanas trancados numa casa com câmeras por todo lado.

Aos poucos, o padrão limítrofe que se estabelece para o leitor passa para dentro das redações, e no pequeno mundo dos jornalistas dispara a corrida pelos 15 segundos de fama, que implica estar sempre no lado certo da corrente. Quebrei a cara em discussões com amigos jornalistas, todos de excelente estirpe e com brilhantes carreiras, por tentar me contrapor à onda anti-FHC com observações pontuais a respeito de alguns sucessos do governo ? mesmo não sendo tucano.

Essa intolerância com o contraditório fica progressivamente mais marcante no ambiente da imprensa. Talvez seja a causa de algumas avalanches de denuncismo que assolam o país ? ninguém quer ser o primeiro a deixar a pedra no chão e fazer a pergunta certa. Quando a denúncia realmente merece as manchetes, falta o traquejo para a investigação. Afinal, não foi sempre tão fácil simplesmente repetir declarações?

(*) Jornalista