CASO TIM LOPES
"Jornalista não é James Bond", copyright Jornal da Segunda in Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 31/7/02
"Todo o radicalismo intelectual imobiliza a inteligência e agride o bom senso. A mídia cria um cárcere intelectual nas pessoas, impedindo-as de alcançarem a liberdade até no território das emoções. Choramos o que a tevê nos manda chorar. Ao invés de nos expor idéias, ela as nos impõe, e nem nos permite o momento cartesiano do cogito ergo sum.
Na verdade, nem mesmo pensamos nos mistérios da vida, pois somos exigidos a refletir, debater e até mesmo tomar partido em relação aos mistérios fabricados pelas indústrias cinematográfica e televisiva. Assim, interessa-nos mais saber e torcer pelo futuro da promíscua Manuela, do tal Big Brother Brasil, do que a promiscuidade dos políticos e a maior das promiscuidades – a da mídia com o poder e com os poderosos.
Eis uma das causas da nossa crescente regressão intelectual. Vivemos na era da informação e da informatização, mas as funções fundamentais da nossa inteligência não estão sendo desenvolvidas. Ao sabor da mídia que, sem regras e parâmetros, nos aliena, eis que vos afirmo com certeza, pelo muito que conheço dos meandros deste falso e perigoso Quarto Poder: o homem deste século será menos criativo do que o do século passado.
Será, porque é produto de idéias prontas, capaz de dar respostas lógicas nos shows de milhões e de milhos menores, mas com capacidade interior de dar respostas para a vida, pois este novo homem, distante do cartesiano (cogito ergo sum), será mero repetidor de informações, mas nunca um pensador.
Tomemos, como exemplo uma dessas ações simbólicas que buscam atrair a atenção para fatos que são de natureza a interessar a todo mundo – as chamadas notícias omnibus, isto é, para todo mundo.
Os fatos-ônibus são aqueles que não devem chocar ninguém, que não envolvem disputa, que não dividem, que formam consenso, que interessam a todo mundo, mas tratados de um modo tal que não tocam em nada importante.
A televisão, por exemplo, reúne, em uma noite, diante do Jornal Nacional, mais pessoas que a soma dos leitores de todos os jornais impressos que circulam pela manhã, em todo o País. Se a informação projetada para tal meio se torna uma informação-ônibus, sem aspereza, homogeinezada, vêem-se os efeitos políticos e culturais que podem resultar disso.
Quanto mais um jornal estende sua difusão, mais caminha para os tais assuntos-ônibus que não levantam problemas, que não nos exige o pensar, o refletir. É o que faz com que todo o trabalho coletivo que tende a homogeinezar e a banalizar, a ?conformizar? e a despolitizar, convenha, perfeitamente, aos interesses de alguém, embora ninguém, porque a metodologia assim o previne, lhe seja o sujeito.
Isso pode ser muito observado, com freqüência, no mundo social, onde se vê ocorrer coisas que ninguém quer e que, no entanto, podem parecer ter sido desejadas.
É neste aspecto que a crítica simplista é perigosa. Tal crítica dispensa todo o trabalho que é preciso fazer para compreender fenômenos, com o fato de que, sem que ninguém o tenha pretendido rlamente, sem que as pessoas que financiam tenham tido de intervir tanto, tenha-se esse produto muito estranho que é o ?jornal televisivo?, que convém a todo mundo, que confirma coisas já sobejamente conhecidas e, sobretudo, que deixa inertes, intactas, engessadas, as estruturas mentais.
A idiotização à distância
Há revoluções que atingem as bases materiais de uma sociedade – como esta, bem recente, da privatização das estatais nacionais – como há, também, revoluções simbólicas, desencadeadas pelos artistas, cientistas ou grandes profetas religiosos, ou por vezes, raramente, pelos não menos raros grandes políticos, que atingem as nossas estruturas mentais, mudando as nossas maneiras de ver e pensar.
Ora, se um instrumento tão poderoso quanto a televisão se orientasse, um pouco que fosse, para uma revolução simbólica desse tipo, como a TV pública que estamos montando em Goiás, não tenham dúvida de que os plutocratas (a economia de domínio) e a teórica democracia enganosa logo se apressariam em silenciá-la.
Mas nem a esse trabalho se dão os tais senhores, pois, movida pela lógica da concorrência e plea audiência a qualquer custo, a própria tevê não faz nada de semelhante a esse nosso imaginário. Ela está adrede, intencional, perfeitamente ajustada às estruturas mentais do público que ela própria construiu, numa alienação que ela própria cuidou de formatar. Pensar para quê, se todas as coisas já nos chegam pensadas, inclusive com a nossa suposta indignação?
Não a educação, mas temos a idiotização à distância. Notícias prontas, mascadas e analisadas, prontas para consumo imediato, de repetição instantânea. E os telefones que nos oferecem para ligações gratuitas só funcionam para os games que disseminam a esperança, esta velha cilada.
Daí os telethon (tele + thon, de marathon, maratona: longos programas, como os nossos domingões, e os especialmente beneficientes, vide Criança Esperança), onde, com bons sentimentos, faz-se o fundamental que a televisão busca: os índices de audiência, astuciosamente escudados por uma fraternidade artificial. Sim, pois, se verdadeira, com alguns dos tais programas já teríamos erradicado a miséria que assola o País.
Fariseus arrogantes da Nova Ordem
Agora, mais do que nunca, precisamos refletir sobre o moralismo das pessoas de televisão. Freqüentemente cínicas, proferem um discurso de um conformismo moral absolutamente fantástico, prodigioso.
Nossos apresentadores de jornais televisivos, nossos mediadores de debates, nossos comentaristas esportivos (Luiz Felipe Scolari que o diga) tornaram-se prepotentes ou incultos, pequenos diretores de consciências e até se fazem, se depender de muito esforço, os porta-vozes de uma moral tipicamente pequeno-burguesa, que dizem ?o que se deve pensar? sobre o que chamam de ?os problemas da sociedade?, as agressões nos morros ou a violência na escola.
A filosofia é, simultaneamente, uma concepção do Eu e uma concepção do universo, ao passo que a filosofia desses Platões televisivos da periferia, ao invés do livre pensar, decorre de doutrinas coercitivas e pragmáticas publicadas em vistosas edições – os chamados Manuais de Redação -, as bíblicas desses apóstolos eletrônicos a programar o Evangelho de marcos de audiência pela salvação de empregos.
Os jornalistas falam em liberdade de expressão, só não sabem que esta, sem a liberdade de pensamento, resulta em sérias distorções, entre as quais a discriminação, o pré-conceito, o pré-juízo. Fariseus da Nova Ordem, eles condenam a censura, mas são, eles próprios, os censores já a partir da elaboração da pauta, onde prevalece o fato que dê audiência e não o que seja de interesse público.
Espionar, dedurar: nada a ver
Falam em jornalismo investigativo, mas não o fazem dentro dos prescritos éticos, de buscar as fontes oficiais, documentos, provas irrefutáveis, onde os envolvidos têm todo o direito de saber com quem estão falando e de dizer se querem ou não ser filmados ou fotografados.
Um bom exemplo de péssimo jornalismo investigativo nos foi dado, recentemente, pela nossa maior e principal rede de televisão e que resultou no assassinato de Tim Lopes, repórter da TV Globo, morto por um dos chefes do tráfico, numa das favelas cariocas.
Estivesse o jornalista a serviço de um jornalismo sério, ele ainda estaria na redação, e nós, telespectadores, quem sabe, mais bem informados. Uma coisa a escolha não lhe ensinou, e muito menos a emissora em que trabalha, óbvio que em nome da sagrada audiência: repórter não é polícia e reportagem investigativa em nada se assemelha a missões de agentes secretos.
A matéria séria dispensa imagens bombásticas. Coletar informações, levantar nomes, não implica em grampear telefones, empregar câmeras secretas, entre outras atividades. Temos uma áurea ilusão que nos foi dada por Woodward e Bernstein, no episódio Watergate. No caso de Tim, bastaria um trabalho de médio prazo e uma coleta de dados eficaz, pertinente e bem concebida, uma série de entrevistas com traficantes, policiais e autoridades, e teríamos uma matéria mais explicativa e menos sensacionalista.
É do dever e da ética que todo profissional deve se identificar, obter o consentimento daquele que será fotografado e/ou filmado, qualquer que seja a situação. O profissional sério inspira e transpira confiança, e assim, com algum tempo de trabalho, ele pode obter informações valiosas de um traficantes e até mesmo fotografá-lo com o seu consentimento.
O jornalismo responsável não provoca mortes inúteis. A Rede Globo de Televisão, tal qual o Big Brother, da obra de Orwell, 1984, e nunca esse pop trash apelativo, atribui a si o direito de recorrer a câmeras escondidas para a espetacularização da notícia, e, por extensão, maior audiência. Este seu pendão, ab initio, pelo sensacionalismo é a causa da morte do seu jornalista.
A lei tem medo da Globo
Permitam, mas o meu lamento primeiro não o é pela morte de Tim Lopes, mas pela sua falta de profissionalismo, pela ausência de compromisso com a ética, pela busca do ?furo? a qualquer preço, pela submissão a uma pauta que fere princípios até mesmo constitucionais. Fama e bom salário não justificam tais ações.
O meu maior lamento, na verdade, é pelo silêncio conformado da família e pela omissão do Ministério Público carioca, que, com o mesmo empenho que trabalha pela prisão e condenação dos assassinos de Tim, deveria, primeiro, imputar responsabilidade ao cúmplice mais próximo, identificado, de endereço conhecido e também diretamente implicado na execução sumária da imprudente vítima: a Rede Globo de Televisão.
O jornalismo é função pública e a Globo pode, sim, ser responsabilizada, criminalmente, por colocar, deliberadamente, um profissional, seu funcionário, em situação de clandestinidade e com risco de vida, numa investigação policial e não na alegada reportagem investigativa. Isso não é jornalismo. A Globo sabe disso e não poderia sair imune desta sua irresponsabilidade.
Difícil será achar um promotor destemido para acusar e um judiciário intocável para julgar e condenar tão poderoso acusado. Afinal, quem, manipulando, elege presidente, é capaz de instaurar a ditadura.
Post Scriptum – Ao matar o jornalista, o bando nã quis dizer, como enfatizou a Globo, que também a imprensa não seria bem-vinda aos morros da cidade, e, sim, que ?dedos-duros? ou ?alcagüetes? eletrônicos, com suas câmeras ocultas, a exemplo do ?X-9? (bandidos informantes da polícia), jamais permanecerão impunes.
A esta observação, acrescento uma pergunta e a coloco, alvo mais direto, paa os professores de jornalismo e seus alunos: deve um jornalista se submeter a tal trabalho de produção, mesmo que o patrão seja a Globo e o salário seja bom? Gostaria de saber o que pensam os senhores."
"2002, o ano em que fizemos contato conosco", copyright Folha de S. Paulo, 4/8/02
"O ano de 2002 já pode ser considerado, na minha modesta opinião, um marco para os jornalistas brasileiros. Em seu decorrer, três questões, ligadas entre si, botaram em xeque o conceito que a sociedade e os próprios jornalistas têm da profissão e de sua inserção no corpo social. Os três eventos foram: o assassinato de Tim Lopes; a liminar que desobriga a ter curso superior para quem praticar o jornalismo, e o início da campanha pela criação do Conselho Federal de Jornalismo e suas seções regionais. Vamos por partes, como diria Joãozinho Estripador.
Caso Tim Lopes – Só agora, dois meses após o assassinato de nosso colega, vamos começar a discutir seriamente as causas interna corpore do assassinato de nosso colega e ver o que este fato trouxe – ou deveria trazer – de mudança para o nosso trabalho do dia-a-dia. Esta discussão vai começar no Fórum Tim Lopes, Nunca Mais!, organizado pela ABI e que se desenrolará de segunda, dia 5, até sexta, 9.
Os temas do Fórum, como eu disse aqui há poucas semanas, me parecem os mais corretos. Teremos entre eles desde os limites do jornalismo investigativo até as novas formas contratuais (como a transformação de profissionais em pessoas jurídicas) que tiram do trabalhador todas as garantias trabalhistas, passando pelo aumento da segurança no cotidiano de quem trabalha em jornal, rádio e TV. Infelizmente, não vai dar para eu ir devido ao trabalho, mas dou força para quem puder se inscrever e dar um chega lá. Aliás, uma idéia para os organizadores (tá, deveria ter dado antes, mas só me ocorreu agora): criar um blog para botar um resumo diário do Fórum.
O Diploma – O fim da obrigatoriedade de se ter diploma de curso superior (qualquer um) para se exercer a profissão de jornalista aconteceu em fins de 2001, mas a inação da Fenaj fez com que numa decisão relativamente simples de ser obstada por uma liminar (afinal, poderia, como está ocorrendo) provocar prejuízos irreparáveis a uma parte legítima do processo) não tenha sido derrubada até agora.
Mas, dando uma de Poliana, pelo menos isso despertou letargia da categoria para a discussão sobre este assunto (e que espero seja a última, afinal a lei já tem 33 anos e não dá para ficar discutindo-a ad eternum). Como esta coluna é uma panorâmica – e mesmo porque já explicitei minhas idéias em outras – não vou me alongar no assunto, mas creio que a Fenaj tem a obrigação de pelo menos montar uma discussão organizada e aberta sobre o que os jornalistas querem para a sua profissão agora e no futuro.
O Conselho – Dentro destas discussões, a Fenaj aproveitaria para pôr na roda a existência do Conselho Federal e dos Conselhos Regionais do Jornalismo. Como é sabido, esta bandeira deveria ter sido erguida lá pelo fim dos anos 80, mas a miopia política da Federação, receosa de ver outra instância de poder se levantar no terreiro que considerava dela, impediu isso. A resistência era tão grande que, mesmo tendo sido aprovado em congresso em 1997, só este ano é que a Fenaj resolveu se mover.
Este atraso fará com que a tramitação da proposta certamente seja muito retardada. Afinal, se os ?contras? já se mobilizam tanto contra um diploma que apenas disciplina um pouco de nada a entrada de aventureiros na profissão, o que não farão para impedir um órgão que teria o poder de tirar os bandidos do nosso meio usando até a Justiça e a polícia? Que nem a Fenaj, nem ninguém, se engane: por trás de um ?contra? há, em 99,9% dos casos, interesses financeiros e/ou de poder, grandes ou pequenos. Raríssimos, contam-se nos dedos, as ?pessoas com necessidades especiais? que se opõem à existência de qualificação superior para o exercício da profissão de jornalista por realmente acreditarem que o fim de qualquer entrave ajudaria a melhorar a qualidade do jornalismo no Bananão.
Assim, como dá para se ver, neste ano, mais do que qualquer outro de que eu tenha memória ou notícia, é essencial a participação dos jornalistas em congressos, assembléias, reuniões e bate-papos em sindicatos, faculdades, associações, em qualquer lugar que se discuta a nossa categoria, o nosso trabalho e o nosso lugar no mundo. É bom atuar agora para que, num futuro não muito distante, não fiquemos perdidos no espaço e no tempo.
Irritação – Para você ver como é importante a discussão sobre as relações trabalhistas entre empresas e jornalistas, veja o que está acontecendo com o pessoal que é pessoa jurídica na Band São Paulo. Eles dizem que a empresa até hoje está devendo os 7% de reposição salarial referentes ao período 2000/2001 e já souberam informalmente que não receberão em agosto o reajuste de 2001/2002. A reposição é prevista nos contratos, mas a direção da empresa, segundo os coleguinhas, simplesmente resolveu ignorá-los. A revolta aumenta quando eles vêem que a emissora gasta os tubos para contratar apresentadores que quase nunca agregam audiência ou prestígio à grade de programação.
Dois pesos – Bom, tenho que admitir que até mesmo os ?contras? são engraçados às vezes. Neste caso da faxineira que se tornou jornalista em Minas, por exemplo. Quando a Rede Globo mostrou que até um analfabeto pode passar nas provas de acesso em algumas faculdades ?drive-thru? do Rio, eles, como todo mundo, acharam fantástico (com trocadilho, por favor) e clamaram por um controle mais rígido de acesso ao ensino superior. Agora, quando matéria do Luiz Otávio, correspondente do Comunique-se em BH, demonstra que é tão fácil ser jornalista em Minas quanto universitário no Rio, eles ficam histéricos. Hilário, não?"