RUSSEL BAKER / RESENHA
"Jornais em busca de um dono", copyright Jornal do Brasil, 3/8/02
"A queda de qualidade do jornalismo é tema talvez tão velho quanto a própria imprensa. Mas, de vez em quando, a discussão do assunto produz uma novidade. A última delas está sintetizada em artigo que Russel Baker, talentoso repórter e ex-colunista do New York Times, escreveu para a edição de 18 de julho da New York Review of Books examinando cinco livros recém-lançados sobre o jornalismo americano. Escorado em sua experiência e no conteúdo dos livros resenhados, ele argumenta que organizações jornalísticas tornam-se importantes não necessariamente pela qualidade de seus jornalistas ou o quilate de seu caixa.
?A história do jornalismo é totalmente clara sobre o que diferencia os jornais importantes dos medíocres: é a qualidade de sua propriedade?, escreve Baker. ?Repórteres e editores podem discordar, mas não importa o quão esplêndida seja uma equipe editorial, um dono muito tímido ou muito indiferente ou muito pão-duro produzirá um jornal, na melhor das hipóteses, mediano.? Por aqui, onde a discussão sobre a queda da qualidade na imprensa parece confinada à falta de dinheiro, frases como a de Baker podem parecer heresia.
Afinal, faz muito pouco tempo que em nome do crescimento, em busca de investimentos para melhorar seus produtos e serviços, a imprensa brasileira começou a substituir seus lendários barões por executivos profissionais e a associar-se a capitais institucionais. A moda nas empresas é a reestruturação financeira e a reorganização guiadas pelos escritórios de direito societário. Para seus profissionais, a discussão de rigueur versa sobre a entrada do capital estrangeiro no setor. Dinheiro, ou investimento, como ele prefere ser chamado, faria muito bem ao negócio. Pode ser até que melhore a qualidade do jornalismo. Isso é coisa para o futuro dizer.
Enquanto ele não chega, não custa nada, nem que seja para melhorar a qualidade da conversa, debruçar-se sobre o artigo de Baker. Ele tem o benefício de escrever com a autoridade de quem viveu esta história. Ao contrário daqui, onde a chegada desse dinheiro focado na rentabilidade e preocupado com as oscilações de ações no mercado é recente, nos Estados Unidos o processo que empurrou as velhas dinastias jornalísticas para fora de seus impérios começou há pouco mais de 40 anos. Baker afirma que o resultado dessas quatro décadas foi ótimo para algumas emissoras de TV locais, ruim para o negócio como um todo e péssimo para a qualidade do jornalismo americano.
Da safra editorial que examina, Baker se impressiona mais com dois dos cinco livros. The last editor (Prometheus, 392 páginas), de Jim Bellows, é uma memória desse tempo em que jornalistas conviviam com patrões mercuriais, evitavam relações promíscuas com políticos e celebridades e, sobretudo, divertiam-se na profissão. The news about the news: american journalism in peril (Knopf, 292 páginas), escrito por Robert Kaiser e Leonard Downie, examina num extenso trabalho de reportagem o que aconteceu com a qualidade do jornalismo americano depois que os Pulitzer, Hearst, Chandler e Paley entregaram suas cadeias de rádio, TV e jornais a profissionais gestados nas melhores escolas de negócios dos Estados Unidos ou aderiram aos seus conceitos de administração. Como Baker, os três autores viveram intensamente as últimas décadas do jornalismo americano.
Bellows, descobridor de talentos jornalísticos como Tom Wolfe, dirigiu a redação do Washington Star, fechado por seus proprietários em 1978, em nome da rentabilidade, quando disputava cabeça a cabeça a liderança na capital americana com o Washington Post. Downie é o atual editor do próprio Post. Kaiser, um de seus mais próximos colaboradores. Ambos trabalharam sob a caneta de Ben Bradley, o lendário editor-chefe do jornal que fez fama dirigindo a cobertura do caso Watergate. Com base no que lê nos livros e na sua própria experiência, Baker diz que o jornalismo entrou na era da melancolia.
Ele descreve uma situação em que a profissão de jornalista não só perdeu seus encantos como foi profundamente modificada. ?Seu dever maior não é mais manter a república na condição de bem informada – ou confortar os aflitos e afligir os confortáveis, como diz o velho ditado – mas servir ao mercado de ações com um bom relatório sobre ganhos a cada três meses, ou em outras palavras, confortar os confortáveis?, diz. ?Os velhos barões da imprensa podiam ser plutocratas, excêntricos e tirânicos, mas eram estadistas se comparados aos executivos que se movem pelas chicotadas do mercado. A velha-guarda se preocupava com seus jornais e com o que a opinião pública falava deles. Ela era formada por pessoas que amavam seus jornais e vibravam com o poder sobre a vida pública que sua propriedade lhes dava. Eles podiam esquecer os balanços quando tinham grandes histórias a serem cobertas.?
Segundo Baker, o Post, onde trabalham Downie e Kaiser, alcançou o Olimpo do jornalismo não pela presença de Bradley e outros grandes nomes na sua redação, mas porque Katharine Graham, morta no ano passado, era a sua dona naquele momento. Anos atrás, o próprio Bradley reconheceu isso em suas memórias. Graham arriscou perder o jornal e o resto do seu império jornalístico, mas publicou cada linha do que seus jornalistas descobriam sobre o escândalo de Watergate. À época, estava prestes a lançar ações da empresa no mercado de capitais. Seus diretores achavam que tocar em Watergate poderia levar a empresa a breca.
Antes dela, Arthur Sulzberger, no New York Times, desafiou tribunais, a Casa Branca e o Pentágono. Mas em nenhum momento, apesar do pedido de demissão do advogado do jornal, contrário à decisão de seu dono, impediu o New York Times de publicar reportagens sobre os Pentagon Papers, relatórios internos dos militares americanos que comprovavam a manipulação dos resultados nos campos de batalha do Vietnam.
Nos anos 80, bem antes de vender sua cadeia de jornais a outra cadeia maior ainda que a sua, Otis Chandler insistiu para que o seu Los Angeles Times não recuasse um milímetro na cobertura que fazia sobre a poluição da cidade. Algumas dessas reportagens geraram prejuízos para os negócios do próprio Chandler.
Baker diz, com a ajuda de Kaiser e Downie, que donos de jornais deste calibre estão desaparecendo sem deixar herdeiros e, junto com eles, a qualidade do jornalismo americano. Faz apenas exceção a quatro antigas dinastias da imprensa. Os McClatchy, que entregaram a gestão de sua cadeia de jornais a executivos que incorporaram o espírito de seus donos. Os Graham, ainda firmes no timão do Post. Os Newhouse, que, depois de passarem décadas destruindo a excelência editorial dos jornais que a família engolia, compraram a editora Conde Nast, dona de uma das jóias raras do jornalismo americano, a revista The New Yorker, mudaram de rumo e voltaram a investir na qualidade. E, finalmente, os Sulbergers, do New York Times."
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"Imprensa hoje ganha em lucro o que perde em importância para seus leitores", copyright Jornal do Brasil, 3/8/02
"Arthur Sulzberger Jr., atual comandante do Times, durante as semanas seguintes aos ataques ao World Trade Center no ano passado, deixou que sua redação editasse a cobertura em páginas que não continham qualquer anúncio. Também não tremeu ao saber que num movimento quase que espontâneo, de raro brilho jornalístico, sua redação mobilizou 300 repórteres para escrever obituários de todos, anônimos e famosos, que morreram no atentado. Os Estados Unidos se comoveram. Coisas assim, diz Baker, vem ficando menos freqüentes no jornalismo, ?degradado pela pressão do topo para espremer margens de lucro irrealistas?.
Os novos executivos, acusa ele, têm como traço comum o total desinteresse pela prática jornalística. Na verdade, nesse universo onde rentabilidade, custos e movimentos de ações importam mais do que notícias, eles nem precisam entender de jornalismo. No cômputo geral, aponta Baker, produzem balanços espetaculares no curto prazo, produtos e empresas decadentes com o correr dos anos. Em 1995, os Chandler do Los Angeles Times, sem sucessores na família, sucumbiram aos encantos da profissionalização e contrataram um sujeito que jamais havia pisado num jornal. Seu nome era Mark Wiles, ex-aluno de Wharton e Columbia, que, no emprego antigo, dirigia uma fábrica de cereais; aliás, uma das maiores do mundo, a General Mills. Como primeira medida, fechou o Newsday de Nova Iorque, jornal onde os Chandler investiram US$ 100 milhões. A medida, oficializada como corte de custos, fez as ações da cadeia de jornais da família subirem imediatamente. Hoje, ela pode ser qualificada como uma bobagem. O Newsday, à época de seu fechamento, estava prestes a se descolar de seus dois competidores nova-iorquinos, o New York Post e o Daily News, controlando um filé num dos mercados mais importantes do país. Não foi a única bobagem de Wiles no emprego. Com as ações em baixa, a empresa em polvorosa e a credibilidade editorial abalada, a cadeia liderada pelo LA Times foi vendida à Tribune Company, uma potência da mídia cuja cadeia de jornais tem no Chicago Tribune a sua nau capitânia. Foi dele que se gerou o atual conglomerado.
O Trib, como é conhecido pelos leitores, era um sonolento jornal até ser comprado em 1911 pelo coronel Robert McCormick, um conservador radical, porém aguerrido defensor da liberdade de imprensa. Vinte anos mais tarde, era o maior dos Estados Unidos. Foi um dos primeiros a ser dirigido por executivos profissionais. Seu desempenho financeiro, diga-se de passagem, é estupendo. Teve margem de lucro de 29% em 1999 e é considerado, há muito, uma das empresas jornalísticas mais rentáveis dos Estados Unidos. A qualidade de seu jornalismo, no entanto, não faz jus aos números.
Ele é um bom jornal, mas há muito não faz parte da constelação de grandes produtos jornalísticos americanos. Seus executivos reconhecem o problema e lamentam sua situação, conta Baker. O editor-chefe do jornal, um dos entrevistados do livro de Downie e Kaiser, diz que paga um preço alto por manter um olho na rentabilidade e o outro no controle de custos. Acha o jornal raso e admite que cada vez mais imprime erros. Seu chefe, Jack Fuller, que dirige a cadeia da qual o Trib faz parte, concorda, mas diz que não tem planos, apesar dos excelentes resultados do negócio, de colocar mais dinheiro no jornalismo. Tem medo de investir no produto e por qualquer razão se ver pressionado pelo mercado a manter ou crescer sua rentabilidade. O único anabolizante conhecido para conseguir isto seria aprofundar o controle e o corte nos custos. Melhor deixar como está.
O problema, como insinua Baker, é que este tipo de gestão de empresas jornalísticas é ruim não apenas para o jornalismo, mas a longo prazo também para o negócio. O Trib é rentabilíssimo, mas seu futuro é sombrio. Perdendo importância, o jornal tem dificuldade de atrair novos leitores e manter os antigos. De 1978 para cá, a circulação caiu de 800 mil exemplares diários para pouco mais de 600 mil.
É fácil acusar os velhos barões da imprensa de serem homens de negócio erráticos, perdulários, que freqüentemente levam suas empresas, por mais brilhantes que sejam, à falência. A verdade é que em comparação com os atuais executivos profissionais que comandam o jornalismo americano, os barões é que eram os exímios ganhadores de dinheiro. Com raras e honrosas exceções, foram suas empresas, e a reputação do jornalismo que elas praticavam, que serviram de alicerces para a construção dos grandes conglomerados de mídia americanos.
Kay Graham, ao mandar seu jornal publicar tudo o que descobria sobre Watergate, tinha um olho na excelência editorial e outro no lançamento de ações de sua empresa no mercado. Ela sabia que, se seu jornal se tornasse absolutamente relevante, isso só ajudaria a elevar o preço das ações. Não deu outra. Graham abriu o capital da empresa em plena confusão de Watergate com um estrondoso sucesso. Hoje, The Washington Post Company figura entre as 500 maiores empresas dos Estados Unidos. The New York Times Company tem emissoras de rádio e TV e uma das importantes cadeias de jornais dos Estados Unidos. O Times faturou US$ 3 bilhões no ano passado. Seu site na internet está entre os mais visitados do mundo. Os Newhouse também não têm do que reclamar. Suas revistas são as únicas que apresentaram crescimento de circulação em 2001.
Em contraste com as agruras enfrentadas por companhias como a AOL-TimeWarner, Vivendi ou CBS, o que sobrou do baronato da mídia americana vai indo muito bem, obrigado. Num universo onde é raro encontrar alguém que não esteja em situação desesperadora, as exceções empresariais, como na prática jornalística, continuam sendo os Sulzberger, os Newhouse e os Graham. Seguem ganhando muito dinheiro e, de quebra, informando bem à república."