TELEJORNALISMO
Paulo José Cunha (*)
No meio das mensagens comentando o artigo sobre o "jornalismo confirmatório" chegou-me um desafio: "Poderia contar alguma experiência pessoal em que o senhor teve de ?virar a pauta? e conseguiu um bom resultado?"
Tenho umas duas ou três historinhas boas nesta área. Gosto de uma, em particular. Aconteceu num sábado, durante plantão de fim de semana, na sucursal da Globo em Brasília. Frisei o fato de ser dia de plantão porque pauta de plantão é sistematicamente repetitiva, limitando-se, quase sempre, às chamadas efemérides ou às amenidades comuns a dias sonolentos como costumam ser os sábados e domingos. Cheguei meio atrasado (resquício da bela noitada de sexta com bons amigos, bons queijos e bons vinhos), quando me deparei com uma pauta recorrente: o aniversário das cidades-satélites de Brasília. Desta vez, a aniversariante era a explosiva Ceilândia, dona de elevadas taxas de violência, abarrotada de problemas de urbanização, educação, saúde e tantos outros muito comuns aos aglomerados urbanos habitados por populações de baixa renda que se expandem com sérias deficiências de planejamento e ação do poder público. A pauta refletia tudo isso. Falava dos índices de homicídios, roubos, furtos, estupros. O produtor havia caprichado nos dados relativos aos problemas nos setores de saúde, habitação, educação e lazer, tudo revelando aspectos de uma cidade-problema, palco de doenças, crimes terríveis, antro de facínoras.
"Mas não é o aniversário da cidade?", indaguei ao chefe de reportagem. E acrescentei: "E isso lá é presente de aniversário que se dê a alguém, falar só das coisas ruins, violência, assassinatos, mortes?" O chefe de reportagem alegou que não participara da elaboração da pauta. E que a mim cabia apenas cumpri-la, pois as pautas, desde tempos imemoriais, foram feitas para isso. Dobrei o papel, chamei o cinegrafista e o auxiliar e entramos no carro, rumo à Ceilândia. Embolei a pauta até o papel virar uma bolota e fiz uma bela cesta na primeira lixeira que encontrei pelo caminho, propondo desafiadoramente ao cinegrafista: "Vamos virar esta pauta? Vamos fazer exatamente o contrário do que tem sido feito todo ano? Vamos dar um belo aniversário pra Ceilândia?" Ele concordou, não sem antes lembrar que ia ficar difícil explicar ao editor que a pauta real repousava naquele instante no fundo de uma lixeira em algum ponto da cidade… "Tudo bem, a gente omite esse detalhinho sórdido", comentei com sagrada maldade na voz.
Pacto firmado, tocamos o barco. No primeiro ponto da Ceilândia onde paramos, desci do carro e perguntei a algumas pessoas numa praça: "Onde estão as pessoas bacanas da Ceilândia, as belas moças, os rapazes bonitos? Será que existe alguém que possa nos orientar e nos contar onde está a parte boa da Ceilândia, os aspectos da cidade que orgulham as pessoas que moram nela, que cresceram com ela, que gostam do lugar onde moram?" Não demorou e alguns engraxates, barbeiros e outras pessoas reunidas na praça central, de início receosas, nos deram o mapa da mina.
O primeiro local que nos indicaram foi a Casa do Cantador, uma edificação que serve de abrigo para as centenas de violeiros e repentistas oriundos do Nordeste. Um belo aspecto da inteligência e da criatividade do povo da Ceilândia. Caímos de boca. Depois, fomos ouvir as pessoas na rua. A pergunta era bem simples: "Por que você gosta de Ceilândia?" Provavelmente foi a primeira vez que uma equipe de tevê fez aquela pergunta àquela gente, porque dava para sentir a perplexidade nas feições. Por último, fomos a alguns clubes, onde rapazes atléticos exibiam sua boa forma em partidas de futebol e basquete. Ótimas imagens. Em cada beira de piscina gravamos generosos planos das belas ceilandenses apanhando sol, belos rostos, coxas torneadas. No início, tímidas, as garotas até procuravam se esconder. Depois, mais desinibidas, concordaram em posar para a câmera (a idéia era do tipo calça de veludo ou bunda de fora, por isso decidimos botar pra quebrar, terminando a matéria com um clipe recheado de belas imagens da alegria da cidade, com seus velhos, suas crianças, seus jovens, suas mulheres bonitas).
Elas também nos deram entrevistas sobre a o amor que sentiam pela cidade onde moravam. Como a matéria estava prevista para o jornal da noite e a outra pauta que tínhamos de cumprir era uma entrevistinha rápida, bem mais tarde, nem nos preocupamos em retornar logo à redação. Almoçamos por lá mesmo, aproveitando para mostrar que em Ceilândia come-se uma honesta comida caseira com sotaque nordestino, outro traço positivo da "cidade-problema".
Barriga cheia, com aquele ar de beatitude que esconde os grandes pecadores, voltamos à redação, preparados para uma bronca monumental pela travessura. "Bom, o máximo que vai acontecer é não aceitarem a matéria e ela ir pro lixo. Mas acho meio difícil porque em fim de semana a pauta é do tipo ?se não tem tu vai tu mesmo?, já que o número de equipes é bem menor do que nos outros dias. Eles não vão ter mesmo o que botar no ar". Mas o impacto foi menor do que esperávamos. Claro que o editor começou sem entender muita coisa, mas tão logo as imagens foram aparecendo ele foi se animando. No final, já era um dos grandes entusiastas da travessura. A matéria, com clipe e tudo, encerrou o DF-TV naquele sábado, com os créditos subindo sobre as belas e inacreditáveis imagens da Ceilândia, a aniversariante do dia, toda prosa e risonha, pela primeira vez apresentada sob um prisma positivo na tevê.
Logo após o jornal ter ido ao ar, pipocaram telefonemas na redação. No domingo e durante toda a semana, mais telefonemas acompanhados de cartas e telegramas (alguns deles ainda guardo com carinho). Todos agradecendo a injeção de auto-estima que os moradores da Ceilândia haviam recebido com a matéria. Muitos, emocionados, falavam que, pela primeira vez, pelo menos em um dia do ano, a Ceilândia aparecia na imprensa pelo seu lado bom.
Esta é a historinha. Se tenho mais alguma coisa pra dizer? Ah, tenho, sim: aquele sábado foi legal pra caramba.
(*) Jornalista, pesquisador, professor de Telejornalismo, diretor do Centro de Produção de Cinema e Televisão da Universidade de Brasília. Este artigo é parte do projeto acadêmico "Telejornalismo em Close", coluna semanal distribuída por e-mail. Pedidos para <pjcunha@unb.br>