VOTOS FLORAIS
Deonísio da Silva (*)
Mihi maxime, debetur Brasiliae incrementur (o crescimento do Brasil deve-se principalmente a mim). (Divisa da cidade de Vassouras, RJ).
A quem eles pensam que enganam? Não há povo mais escolado em televisão do que o brasileiro. Mas os marqueteiros insistem em suplantar a palavra com a imagem. A verba no lugar do verbo. A palavra é baratinha, é bem público e está ao alcance de todos. Já os ternos deles, as gravatas, as camisas, as abotoaduras, os óculos, os cortes de cabelo e demais cuidados com a aparência estão longe do poder aquisitivo da maioria da população brasileira, a mesma que irá eleger o futuro presidente da República no próximo dia 6 de outubro.
Não surgiu até agora, pelo menos não na televisão, alguém capaz de arrebatar pelo verbo. Os mais velhos lembram-se de Carlos Lacerda, apesar de o grande orador ter, ao contrário do apóstolo São Paulo, combatido o mau combate, conspirando contra a democracia. Entraram para o folclore político certas refregas que teve, de que é exemplo o insólito diálogo travado com um desafeto na Câmara Federal. O discurso de Vossa Excelência é um purgante, teria dito o aparteador. E Vossa Excelência é o efeito, teria retrucado Lacerda. Flores da Cunha, já fora da política, recorrendo a um gerente de banco para pequeno empréstimo, à pergunta sobre o que acontecera com o seu patrimônio, resume: "mulheres ligeiras e cavalos lerdos".
E então? Para os antigos políticos, nada do que era humano lhes era estranho completamente? Nossos candidatos conhecem o povo a quem querem servir? Por que então desconhecem o preço do pão? Isto para não aludir "à utilidade fúnebre da corda/ que arrasta a rês, depois que a rês engorda/ à morte desgraçada nos açougues" (Augusto dos Anjos). Ou aos versos da conhecida canção: "porque gado a gente marca/ tange, ferra, engorda e mata/ mas com gente é diferente" (Geraldo Vandré).
Nuvem de monotonia
Os candidatos andam todos sérios demais, artificialmente sérios. O povo a quem querem servir é mais alegre. Faz do humor arma de resistência. Nas enchentes de Blumenau, a indefectível pergunta do repórter: "Aquela casa levada pelo rio é a sua?" "Sim", diz rindo aquele que não pôde ser Noé. "A enchente levou tudo, quá-quá-quá!" Bravo povo brasileiro, que consegue rir da própria desgraça e faz do riso o recomeço. Poetas como Ascenso Ferreira souberam, ao contrário dos candidatos, auscultar-lhe a alma: "Hora de comer ? comer! Hora de dormir ? dormir! Hora de vadiar ? vadiar! Hora de trabalhar? ? Pernas pro ar que ninguém é de ferro!"
Talvez os marqueteiros de Lula, deixando de lado um pouco os manuais, pudessem reler Cassiano Ricardo: "Espelho, sub-reptício espelho,/ meu professor de disfarce./ Quem poderá disfarçar-se/ sem recorrer ao seu conselho?/ É diante dele que componho; não são a gravata, meu enfeite,/ mas o meu jeito de rir, tristonho,/ para que o mundo me aceite".
E os de José Serra poderiam inspirar-se em Cecília Meireles: "Eu não tinha este rosto de hoje,/ assim calmo, assim triste, assim magro,/ nem estes olhos tão vazios,/ nem o lábio amargo./ Eu não tinha estas mãos sem força,/ tão paradas e frias e mortas;/ eu não tinha este coração/ que nem se mostra./ Eu não dei por esta mudança,/ tão simples, tão certa, tão fácil:/ em que espelho ficou perdida/ a minha face?"
Para Anthony Garotinho soltar-se um pouco e refletir, que tal os versos de Affonso Romano de Sant?Anna? "A polícia nos dispersa/ e o futebol nos conclama,/ cantamos salve-rainhas/ e salve-se quem puder,/ pois Jesus Cristo nos mata/ num carnaval de mulatas".
Para Ciro Gomes, ficam bem os versos de Eduardo Alves da Costa, atribuídos erroneamente a Maiakóvski por citadores jejunos: "Tu sabes,/ conheces melhor do que eu/ a velha história./ Na primeira noite eles se aproximam/ e roubam uma flor/ do nosso jardim./ E não dizemos nada./ Na segunda noite/ já não se escondem;/ pisam as flores,/ matam nosso cão,/ e não dizemos nada./ Até que um dia,/ o mais frágil deles/ entra sozinho em nossa casa,/rouba-nos a luz e,/ conhecendo nosso medo,/ arranca-nos a voz da garganta./ E já não podemos dizer nada".
Os presidenciáveis querem o poder para eles para mudar o Brasil para nós. Que é o poder, Ivan Junqueira? "O poder é aquele pássaro/ que te aguarda sob os galhos./ Tudo o que ele dá, perdulário./ De ti quer apenas a alma./ Por inteiro. Ou a retalho". Poderá o eleito tecer sozinho a manhã que nos promete, João Cabral de Melo Neto? "Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos".
E para terminar, os versos de Zé da Luz, elogiados por Manuel Bandeira e José Lins do Rego, extraídos de Brasil Caboclo: o Sertão em Carne e Osso, e trazidos para a antologia Os Cem Melhores Poetas Brasileiros do Século, selecionados por José Nêumane Pinto: "Brasí Cabôco não sabe/ Falá ingrês nem francês,/ Munto meno o purtuguês/ Qui os outro fala imprestádo…/Brasil Cabôco não iscreve;/ Muntomá assína o nome/ Prá votá, prumóde os hôme/ Sê Guverno e Diputádo".
Aguardemos o horário eleitoral gratuito. Por enquanto, a cada programa ou debate, de novo, irrompe pela sala, com sua nuvem de monotonia que tudo envolve, o tédio. É uma pena que sejamos levados pelo tédio ao único dia de nossas vidas em que seremos todos iguais, em que a palavra do patrão e a do empregado têm o mesmo peso, o mesmo valor, a mesma serventia, em que ricos e pobres, se não são iguais perante a lei, serão iguais perante a urna.
(*) Escritor e professor da UFSCar; seus livros mais recentes são De onde vêm as palavras e o romance Os guerreiros do campo