CÂMERAS OCULTAS
Antônio Brasil (*)
Tive o privilégio de participar de uma das mesas do Fórum Tim Lopes, Nunca Mais, organizado pela Associação Brasileira de Imprensa (ABI) de 5 a 9 de agosto, no Rio. Os debates geraram muitas discussões, mas não estou certo sobre as "conclusões". Se é que temos alguma.
Apesar dos fatos recentes, diversos jornalistas continuam defendendo a utilização das câmeras ocultas ou, o que parece ainda mais perigoso, procurando descaracterizar a discussão. Eles insistem que as microcâmeras seriam um instrumento essencial para o novo jornalismo investigativo na televisão. É claro que procuram justificar sua utilização dizendo que não deveriam ser banalizadas, mas utilizadas somente com muito critério. O problema é estabelecer esses critérios e as situações justificáveis. Ninguém parece estar disposto a estabelecer ou explicar nada. Jornalista adora cobrar transparência… dos outros.
A discussão nesses debates sempre descamba para questões genéricas sobre as maldades do capitalismo, do mercado, de lutas inevitáveis entre patrões versus trabalhadores e, no final da discussão, tudo continua na mesma. Tudo se justifica pela segurança de um emprego em jornalismo.
Não fazemos nada. Tudo é sempre muito nebuloso. O discurso ideológico contraria a prática do cotidiano profissional e ninguém parece disposto a criticar os poderosos que um dia ainda podem nos oferecer um bom emprego na TV.
Para minha surpresa, os procedimentos de segurança para jornalista de TV que utiliza as câmeras ocultas precisam ser "sigilosos" ? e ninguém considera isso um absurdo. Aqui entre nós, deve ser realmente muito difícil fazer inquérito policial sério num país onde quase tudo é considerado restrito ou "sigiloso". Investigação de crimes, no Brasil, só mesmo com auxílio divino. Assim como há jornalista que adora bancar o policial, há inspetor de polícia que se acha escritor ou jornalista. Acabam não fazendo bom jornalismo nem investigação policial conclusiva. Mas tudo se justifica e nada se explica.
Alguns jornalistas insistem que a discussão sobre as câmeras ocultas é um tema ultrapassado, coisa de subdesenvolvido, irrelevante e até mesmo patética. Não existe nada de errado com utilização de câmeras ocultas, quando for necessário, argumentam. Temos que acreditar nas boas intenções dos editores de TV, no bom senso, no faro jornalístico e coisas do gênero. Todo o mundo usa microcâmeras, e essa tecnologia já prestou grandes serviços ao jornalismo. É inevitável. Afinal, tecnologia e bomba atômica nunca fizeram mal a ninguém. Os jornalistas de TV jamais utilizariam este recurso de jornalismo investigativo contra os valores supremo da profissão. Jamais!
Se não tem jeito e jornalista tem mesmo que utilizar câmeras ocultas, pergunto: então o jornalista pode… mentir? Se pode, quais os limites dessas "boas" mentiras. Não se trata de uma discussão filosófica sobre a essência da verdade. A questão é muito simples. Eu pergunto o seu nome e você me diz…
? Meu nome é … deixa eu pensar… Zé das Couves.
? O que você está fazendo aqui nesta comunidade?
? Eu? Estou passeando
…ou qualquer outra coisa.
? Você, por acaso, não seria um jornalista?
A resposta é automática.
? Claro que não. Acha que eu seria maluco?
? Você, por acaso, não estaria com uma câmera escondida aí nesta sua bolsa?
Já podemos imaginar a resposta e o desfecho da história.
Este diálogo, tão surpreendente e tão comum para quem já tentou, sem sucesso, utilizar uma câmera oculta é significativo para ilustrar a discussão sobre os limites do jornalismo investigativo. Se autorizo um jornalista a utilizar uma câmera oculta eu também o estaria autorizando a mentir. A justificativa para esta "mentirinha" bem-intencionada é que "não tem outro jeito mesmo". Ou é assim ou não se consegue fazer essa pauta importante que pode mudar esse mundo tão injusto. É isso ou nada!
Recomendo a leitura de artigos e livros que relatam como os jornalistas do Washington Post conseguiram derrubar um presidente. Muitos jovens talvez não saibam o que foi o escândalo Watergate, mas com certeza ainda se lembram do Collor.
Jornalistas trabalharam com afinco durante meses, foram ameaçados, tiveram o apoio de seus editores, gastaram muito dinheiro, enfrentaram riscos mas mudaram o mundo. De verdade. Tudo sem gravadores escondidos e muito menos câmeras ocultas. Utilizaram tecnologias como o telefone ou os computadores, mas não foram "obrigados" a mentir.
E as investigações com câmeras ocultas de políticos corruptos em São Gonçalo (RJ)? A própria Globo reconheceu em matéria recente que tudo acabou em pizza. A culpa, é claro, é somente dos políticos. Os bons e dedicados jornalistas de TV tentaram. Tudo bem. Partimos para outras pautas. Denúncias de corrupção não faltam no Brasil.
O problema é que produzir bom jornalismo investigativo, principalmente na TV, é muito diferente. Dá mais trabalho, requer tempo, exige enorme dedicação e pode ser frustrante. Requer continuidade e consistência no acompanhamento dos temas. Mas quando o interesse é limitado e pautado pelos índices de audiência, aí fica difícil.
Bichinhos em perigo
A questão é simples: as câmeras ocultas e a mentira andam juntas. Cobramos a verdade dos políticos, mas admitimos concessões aos jornalistas. Alguns políticos utilizam essas concessões à verdade de forma compulsiva e nós os criticamos com virulência. Eles se acostumaram a mentir.
A imprensa tem descrito mentirosos famosos, como o presidente americano Nixon. Quando ele mentiu sobre o seu envolvimento no caso Watergate, ao vivo pela TV, também acreditava que estava fazendo algo "necessário" para a segurança do povo americano; acreditava no direito de estar acima das leis e da ética política; afinal, precisava salvar o povo americano dos inimigos do Estado.
Com o presidente Clinton, outro mentiroso convicto, não deve ter sido muito diferente. O mentiroso bem-intencionado tem sempre uma boa desculpa. A presidência, a família e a democracia americanas não poderiam ser "manchadas" por um mero deslize sexual. Bem sabemos que a carne e a verdade são fracas.
O jornalista tem o direito legítimo de dizer não a pautas duvidosas ou perigosas e à mentira. Mente somente quem quer ou quem gosta, não quem é obrigado pelo patrão. O jornalista deve ser protegido e valorizado nessa escolha. O futuro do jornalismo depende de evitar essas "exceções". "Mas não adianta, vai ter sempre um outro jornalista que aceitará fazer aquela matéria no meu lugar e eu não posso me arriscar a perder esse empregão." Tudo bem. É sempre uma decisão pessoal.
A verdade deveria ser apoiada e protegida pelos órgãos da nossa categoria. Se são omisso, devemos cobrar uma participação mais efetiva. Se ainda assim nada acontece, insistimos. Os fins e as desculpas não justificam os meios. Se você aceita, concorda, compactua e acredita tanto nas câmeras ocultas como na propriedade de algumas "mentirinhas", tudo bem. Vá em frente e sucesso. Tenho certeza de que muitos jornalistas não perderam a capacidade de indignação, continuam se rebelando contra todas as injustiças e procuram fazer alguma coisa a respeito. Outros, preferem manter ou sonhar com um bom emprego, de preferência em televisão.
É importante lutar por objetivos maiores, mas não se pode perder a perspectiva específica dos acontecimentos recentes. É preciso insistir para mudar os rumos do nosso jornalismo mas não podemos deixar de exigir esclarecimentos claros e menos "sigilosos" sobre os procedimentos profissionais das empresas de jornalismo quando um colega é morto. Buscar os assassinos de Tim Lopes é fundamental. É trabalho para a polícia. Mas procurar saber os detalhes sobre a morte de um colega em trabalho, investigar o que aconteceu logo após o seu "desaparecimento", é pauta fundamental para um jornalismo investigativo sério. Quem sabe um bom tema para documentário de TV ? o que, certamente, daria um alívio nos programas que se limitam a mostrar a vida dos bichinhos em perigo ou as curiosidades internacionais.
Aproveito o título do fórum dedicado a Tim Lopes para um desafio: "Câmeras ocultas, nunca mais!"
(*) Jornalista, coordenador do Laboratório de TV, professor de Telejornalismo da Uerj e doutorando em Ciência da Informação pelo convênio IBICT/UFRJ