Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Nenhuma reportagem vale uma vida

 

TIM LOPES

Juliana Hack (*)

O torpe assassinato do jornalista Tim Lopes reabriu, com muita dramaticidade, a polêmica em torno do uso de microcâmeras na prática do chamado jornalismo investigativo. Que reportagem vale uma vida? Esta é uma das patéticas perguntas a serem respondidas, ao lado de uma outra delicada questão: em casos de reportagens de alto risco, que precauções, proteções e salvaguardas devem ser adotadas? Outro questionamento gira em torno da legalidade e da legitimidade de se lançar mão de recursos eticamente questionáveis, como equipamentos ocultos e ocultamento da identidade de jornalista.

Pode-se dizer que, em pleno século 21, a câmera oculta é só mais um dos avanços tecnológicos para auxiliar profissionais ? e não apenas o jornalista ? no estrito cumprimento do dever. Na TV Globo, que faz questão de anunciar quando as reportagens foram feitas com câmera oculta, a posição defendida pelo diretor da Central Globo de Jornalismo, Carlos Henrique Schroeder, é de que o uso deve ser moderado e seguir rígidas normas de segurança. Em artigo publicado no Jornal do Brasil de 6/8/2002, Schroeder negou que tal prática esteja banalizada e também não admitiu que a emissora trate com pouco caso os riscos que os jornalistas pautados estejam correndo com suas reportagens investigativas, mas, opinou também no sentido de que correr riscos é inerente à profissão de jornalista.

Provas irrefutáveis

Equipamentos caros e raros, como as microcâmeras, representam uma tentação para quem deles dispõe. Imagine-se um aparelho cuja objetiva é do tamanho da ponta de uma caneta esferográfica. Ou um gravador que pode se passar por um botton. Ou seja, tem-se hoje mais do que nunca condições para que o jornalista atue como espião, araponga e sabe-se lá mais o quê. Algumas redações, no entanto, têm adotado o princípio de só publicar fotos ou imagens que tenham sido obtidas por meios lícitos e éticos. Entretanto, é forçoso admitir que, em certas situações, se o repórter se apresentar como tal não conseguirá cumprir sua missão. Terá, portanto, que se passar por um personagem qualquer, menos o de jornalista, e lograr obter boas imagens e boas gravações caso queira "arrebentar".

É preciso considerar diferentes situações. Uma coisa é cobertura de guerras, crimes, corrupção e outras contingências em que vidas estejam ameaçadas, inclusive a do próprio repórter. Em certos casos, se um tiroteio, um fogo cruzado etc. pode ser coberto com filmadora oculta ou máquina fotográfica oculta, não faz sentido o repórter colocar sua cabeça entre os alvos. Há, portanto, contextos e contextos. O recurso à câmera oculta pode se tornar abusivo, por exemplo, em casos de invasão de privacidade.

Outro aspecto a ser considerado é a fidedignidade da imagem fílmica ou fotográfica, propriedade que o texto escrito não tem, pelo menos em tão elevado nível. Por mais que seja banal a informação de que funcionários públicos aceitam propina em troca de favorecimento, uma gravação dá à reportagem mais veracidade, mais emoção, mais aceitação do fato como "jornalístico". A câmera mostra imagens que ninguém pode negar, estão de fato ali, e trazem uma credibilidade que a palavra do jornalista não alcançaria. Ela vai além da câmera visível, ela revela fatos, serve como uma lente de aumento.

Tal como já foi explorada no cinema e tal como o é no âmbito dos programas de "pegadinhas", a filmagem por debaixo dos panos agrega valor-notícia à reportagem, como se apenas dessa forma fosse possível praticar o "jornalismo verdade", tal e qual aconteceu, sem que as pessoas ponham imediatamente uma "máscara" quando descobrem que estão sendo filmadas ou gravadas.

Ao que tudo indica, o melhor argumento para o uso da câmera oculta não está no instrumental e na tecnologia em si, mas no preceito-princípio de que se não fosse assim não se teria feito jornalismo investigativo, ou seja, o público e o interesse público sairiam perdendo. Contra imagens não há argumentos. Já um texto escrito pode perfeitamente ser desmentido por uma pessoa inescrupulosa. Casos como o de crianças que sofrem abusos em casa por parte de babás ou mesmo de parentes seriam desvendados pelas câmeras, sendo elas de grande utilidade e produzindo provas irrefutáveis.

Sorriso público

Todos esses pontos, favoráveis ao uso da câmera oculta, levantam contrapontos. Levam o debate a mostrar o lado desfavorável e antiético de seu uso. Que jornalista teria direito de usá-la? Seria esse direito cabível a qualquer cidadão, então? Pela ética, o jornalista deveria se identificar como tal. Quem fala a uma reportagem deveria ter o direito de saber o que está fazendo. É muito fácil ser pego desprevenido e falar palavras impensadas. É de direito que a pessoa se prepare para aparecer diante de milhares de espectadores, pois é muito fácil julgar e analisar os atos alheios quando se está diante da televisão, na calma e no conforto. Outro ponto contra o uso da câmera oculta é que ela seria um mecanismo ilegal, igual ao grampo telefônico ou à violação de correspondência. Seria mesmo ilegal seu uso, ou seria justificável? Para isso seria necessário um mandado judicial, como no uso dos grampos telefônicos ou da violação de correspondência? Quando a câmera é usada em casos como o de médicos que praticam abuso sexual, principalmente, seria certo utilizar a tecnologia? Quem se disponibilizaria para o flagrante? Seria ético enviar um repórter? Mesmo quando essas câmeras têm seu uso notificado tendem a invadir a privacidade das pessoas, acabam sendo ostensivas. Muitos reclamam de que se sentem invadidos, outros já poderiam alegar que se sentem mais seguros. Mas será que o simples fato de ela estar notificada garantiria a legalidade de seu uso?

Muitas são as perguntas lançadas, e por isso esse debate não é simples e nem facilmente esgotável. As pessoas, quando contraventoras, não são mais donas da sua imagem? Quando o fato ocorre diante da comunidade impotente, como acontece com o tráfico de drogas, o direito de imagem seria público? O que mais se fala é que a câmera oculta, já que é uma tecnologia disponível, deveria ser usada quando o interesse é de alta relevância ao público e quando o jornalista não tiver outro meio de conseguir tais imagens e declarações. Mas caberia ao jornalista fazer investigações ou caberia à polícia? O Estado que não cumpre com suas funções abre brechas para que outros o façam. Quando as comunidades se vêem impotentes perante os problemas de ordem social o jornalista se vê instigado a mostrar as barbáries que acontecem.

O sensacionalismo é chamativo, faz despertar o lado investigativo. Erro da polícia que não cumpriu seu dever. Erro da Central Globo de Jornalismo, que não soube frear o jornalista. Quanto a Tim Lopes, não podemos dizer se esta foi sua verdadeira opção, ou se faltou alguém que lhe abrisse os olhos. Como foi dito, as perguntas são muitas. E enquanto se buscam respostas, sorria, você pode estar sendo filmado.

(*) Estudante de Jornalismo da UnB, participante, como bolsista de extensão, do projeto SOS-Imprensa