Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Joaquim Ferreira dos Santos

 

MTV

“Videoclipe agora é coisa de bandido”, copyright No Mínimo (www.nominimo.com.br), 16/08/02

“Ver videoclipe da MTV, para quem não tem tempo de conversar com os filhos, é a maneira mais prática do papai dar uma geral no que a molecada anda escondendo na mochila.

Fala sério. Pelos 17 clipes que a audiência escolheu para concorrer semana que vem ao melhor do ano na festa do Video Music Brasil, a galera anda mais irada do que Ciro Gomes diante da Ana Paula Padrão. É tiro e sangue para tudo que é lado. Quando um clipe dos Engenheiro do Havaí incorpora a estética suja dos vídeos amadores que os seqüestradores mandam para os parentes de suas vítimas, é sinal que até a MTV, a penúltima ilha da fantasia, também caiu na real. Tosco é pouco. Se o mundo anda mesmo como mostra o Charlie Brown Jr, espirrando sangue na cara da gente, a segurança será redobrada na próxima temporada da Ilha de Caras.

Para não dizer que não falou de amor, a escolha da audiência relacionou um KLB, uma Kelly Key, um Titãs – mas até isso parece que foi propositadamente maligno, para acentuar o contraste e tornar mais violentos ainda os outros clipes. Os garotos da MTV andam com ódio no coração e querem acertar as contas com alguém. Dois anos atrás eu vi um Disk-MTV desses e fiquei impressionado porque os artistas estavam todos de branco, como o piano do Lennon, e se agarrando em alguma mensagem de paz. Já era. Perdeu-se a paciência com o Viva Rio, o Viva-Tio. Está todo mundo armado na MTV e tocando o terror.

Para não ser identificado, o herói-bandido do Rappa, representante da periferia carioca, aparece com o rosto encoberto por uma camiseta. Como se tivesse acabado de ser resgatado de um motim penitenciário na Frei Caneca.

Se é denúncia ou apologia, se é a cobra ou a vacina, se é o Belo ou o Guarda Belo, não fica claro. Isso também é escolha da audiência. Se os psicólogos acham que a pancadaria do Tom e Jerry não estimula crianças violentas, o videoclipe, uma espécie de desenho animado dos adolescentes, também não faz efeito diferente. É possível sair de uma exibição do clipe dos Raimundos, onde homens amarrados são submetidos a torturas com alicates diversos, e se sentir motivado a assinar o manifesto para salvar os bichos do zôo de Praga. Há no entanto quem veja a cena do sujeito arrancando a frio a unha do outro e saia dali balbuciando: ?grande idéia, mermão, grande idéia?. Você decide, consultando o videoclipe que já está instalado – por papai, mamãe, professores, boas e más companhias – no seu psi-soci-hardware.

A notícia é de que ninguém beija mais na boca de ninguém nos videoclipes da MTV. Madonna saturou o mundo chupando o gargalo da garrafa, transando com o Cristo negro e sendo estuprada por uma bailarina coreana. As pessoas andam com preguiça de trepar, não sabem mais conjugar o verbo eu te amo. A sonoridade escolhida pela audiência é o dialeto nonsense da bandidagem, algo tão incompreensível que no vídeo do Xis, representante da periferia paulista, precisa vir legendado no vídeo. Parece que trata dos porcos contra o timão. Briga, não tem outro assunto. ?Chapa o coco?, repete Xis.

Há uma surubada no clipe do Engenheiros, mas o diretor fica visivelmente mais excitado naquela parte dos seqüestradores com as armas. O Surto, um grupo pernambucano, ainda tenta um despiste. O vocalista Bolo, coitado, assim chamado porque é enorme de gordo, finge que faz uma declaração de amor em Veneno (?bateu como veneno/ entrou na minha mente e me descontrolou?). Mas está na cara que essa heroína é alguma Maria Joana de Recife. Há escorpiões e outros bichos nojentos pendurados. Bolo, suado, mal cabe no porão-estúdio. O fascínio – menos para Sandy e Júnior, que gravaram suas cenas num terraço de um arranha céu em Miami – é pelo submundo, tá ligado?

O clipe do Charlie Brown Jr. parece um mostruário de armamentos. Evidentemente inspirado na carnificina descontrolada do filme Cães de Aluguel, do Tarantino, é um show de pistolas, fuzis, ARs e metralhadoras. Mostra de passagem o que parece ser o cabo de algo muito próximo da espada ninja usada para tortura nos morros do Rio. A letra fala de um sujeito que acordou feliz, pensando em matar o presidente – e esse é até um desejo que se consegue compreender. De resto, não me perguntem o que faz ali a cena em que um cara decepa a mão de outro cara com o auxílio luxuoso de um (lá vem sangue na lente!) machado. Também não me venham com ingenuidades. Se o bem vence o mal no final? Ora, mano, fala sério!! Na nova safra de videoclipe é bandido contra bandido o tempo todo. Não há outra opção a não ser a escolha a que comando vermelho se filiar. É de chapar o coco. A polícia não aparece nem para pegar a caixinha.”

 

OS NORMAIS

“Governo suspende incentivo a ?Os Normais?”, copyright O Estado de S. Paulo, 16/08/02

“O Ministério da Cultura decidiu suspender, ?para reexame?, a aprovação do projeto ?Os Normais?, que transformaria o seriado da TV Globo em filme de cinema. Assim, os produtores perdem o direito de captar, por meio das leis do Audiovisual e Rouanet, de incentivos fiscais, R$ 3,34 milhões -o que corresponde à quase totalidade do orçamento do filme, de R$ 4,1 milhões.

O ministério tomou a decisão depois de ter sido procurado pela Folha, na terça-feira, para detalhar informações sobre os responsáveis formais pelo projeto.

De acordo com as regras, a Globo Filmes, que participa do empreendimento, não pode ser beneficiada por leis de incentivo fiscal, reservadas apenas a produtores independentes.

Nos registros do ministério, a Globo Filmes não aparecia como a proponente do projeto.

A responsável formal pelo pedido era a Missão Impossível Cinco Produções Artísticas Ltda. A produtora é de um executivo da TV Globo, Eduardo Figueira. Seu endereço é, na verdade, o da própria casa de Figueira. Ao ser procurado anteontem pela Folha para falar sobre sua produtora independente, Figueira informou que só a assessoria da TV Globo poderia se manifestar.

Os vínculos do executivo com a TV e o fato de sua produtora não estar instalada num endereço comercial chamaram a atenção para a possibilidade de a Globo estar usando um artifício para conseguir autorização para captar recursos pelas leis de incentivo.

Carlos Eduardo Rodrigues, diretor da Globo Filmes, rechaça a hipótese. ?O ministério se assustou com a ligação da Folha, e tomou uma decisão sem nexo. Vamos recorrer para regularizar a situação e proteger o investimento que já fizemos no filme?, diz ele.

?A TV Globo permite que seus recursos artísticos e de produção tenham projetos independentes nas áreas de cinema, teatro e shows. As pessoas têm liberdade de desenvolver projetos próprios e oferecer, como parceiros, para a própria Globo.?

Segundo ele, foi isso o que aconteceu com ?Os Normais?: a iniciativa de transformar o seriado em filme teria partido do próprio Eduardo Figueira. A Globo Filmes, garante, terá participação minoritária no projeto.

?Figueira tem uma ampla experiência. Foi o produtor executivo do ?Auto da Compadecida?, o maior sucesso de bilheteria de 2000, e de ?Caramuru?, que levou 300 mil pessoas ao cinema. Ele tem mais experiência do que 95% dos que estão no mercado.?

O currículo de Figueira, acredita o executivo da Globo Filmes, seria suficiente para que o ministério concedesse a ele a autorização para captar o dinheiro. O ministério só autoriza a captação de valores mais altos -no caso, R$ 3 milhões- para ?proponente que tenha, comprovadamente, produzido (…) pelo menos dois longas-metragens?, o que não é o caso da produtora Missão Impossível. Mas pode levar também em consideração o currículo dos sócios da produtora, como o de Figueira.

O projeto havia sido aprovado no mês passado. De acordo com o ?Diário Oficial da União? de 15 de julho, a Missão Impossível foi autorizada a captar R$ 3 milhões pela Lei do Audiovisual e outros R$ 349 mil pela Lei Rouanet. A contrapartida exigida era de R$ 837 mil.”

 

TV PINEL

“Ética versus loucura”, copyright Folha de S. Paulo, 18/08/02

“Esta edição do TV Folha traz uma ótima reportagem de Carla Meneghini sobre a TV Pinel, uma luz de saúde mental na escuridão insana da televisão brasileira. A TV Pinel é um projeto do hospital psiquiátrico Philippe Pinel, em Botafogo (zona sul do Rio), que funciona há seis anos. Os programas, produzidos pelos pacientes, tematizam a própria loucura. E é por isso mesmo, por serem realizados segundo o olhar dos ?loucos? sobre o universo dos ?loucos?, que esses programas representam uma luz de saúde mental em meio à doideira desgovernada que dá o tom da programação da TV comercial que nos confina.

?Loucura?, sabemos todos, é uma noção mais cultural do que médica; são chamados ?loucos? aqueles cujo comportamento escapa ao que as instituições sociais são capazes de absorver dentro do que entendem por padrões de ?normalidade?. Os ?loucos?, lamentavelmente, acabam padecendo sob o preconceito, são tratados como párias. Até outro dia, eram aprisionados nas clínicas, sem esperanças de ?recuperação? ou de cidadania. O projeto da TV Pinel é parte de um grande esforço que vem acontecendo no Brasil para amenizar essa visão conservadora e segregacionista da ?doença mental?. Antes de tudo, procura livrar os usuários do Hospital Philippe Pinel do estigma de párias. Fazer TV, para eles, é ao mesmo tempo um canal de expressão (e de inclusão social) e um exercício de cura. O que mais chama a atenção nesse projeto, mais que o seu resultado estético ou prático, é a intenção declarada de seus autores de fazer TV dentro de parâmetros éticos muito claros, parâmetros que têm, como valor mais alto, o respeito à pessoa.

Chega a ser irônico: os únicos razoáveis nesse grande mundo do espetáculo são os loucos clínicos. Quanto à TV dos sãos, esta mais parece um festival de surtos psicóticos (no sentido de que desconhecem os limites postos pela realidade externa, e só se subordinam à realidade psíquica daquele que delira). Atenção: não é um filme isolado ou um comercial específico que lembra um surto psicótico, é a TV comercial como um todo. Tente mudar de canal aleatoriamente, zapeando sem rumo. Uma sucessão de imagens vai se processar diante dos seus olhos: cenas de sexo, explosões, armas de fogo, gritos, perversões inofensivas e agressões visuais, uma paisagem bucólica, um cadáver. Essa sucessão se aproxima fortemente da linguagem dos sonhos ou, mais exatamente, dos pesadelos, ou, mais exatamente ainda, de um pesadelo anárquico, sem autor definido. A televisão, vista assim mais de longe, nos mostra apenas sexo e violência não por acaso, os vetores fundamentais do inconsciente.

A televisão pode ser vista como o desnudamento do inconsciente que gostaríamos de ocultar. Em outras palavras, a violência do inconsciente que, no plano individual e racional, todos nós preferimos negar mostra-se inteira e totalitária no plano coletivo e ingovernável do espetáculo. Por princípio, a TV comercial escancara o que nos envergonha. Por ser antes de tudo uma máquina de vender e, mais que isso, de vender o prazer do consumo e o consumo do prazer, ela atira contra nós mesmos o nosso desejo de consumir ao máximo (e de gozar desse consumo), de ter o que o outro não tem, de privar o nosso semelhante do consumo que nos torna mais exclusivos do que ele. Por um estranho paradoxo da atualidade, a televisão, proeza da tecnologia e do avanço da divisão de trabalho, trai o atraso e o barbarismo das relações selvagens que nos desagregam. A televisão revelou, sem querer, o avesso da civilização: se a civilização seria a vitória da convivência pacífica sobre a selva, ela descortina a inviabilidade da convivência porque se tornou um veículo incapaz de pôr o respeito à pessoa acima dos imperativos do mercado e do consumo.

Depois, loucos são os que falam em ética.”