Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Bernardo Kucinski

CRÍTICA DIÁRIA

“Cartas Ácidas”, copyright Agência Carta Maior (www.agenciacartamaior.com.br)

“19/8/2002

A verdade sobre o acordo com o FMI

Nas primeiras manchetes venceu a mentira: o acordo com o FMI recebeu o tratamento triunfalista: ?Mercado comemora o acordo? foi a manchete do ?Estadão?. Os outros jornais seguiram o mesmo tom, algo como ?Brasil conseguiu o melhor acordo de toda a história com o FMI.

Mas os dólares continuaram fugindo e neste final de semana ?Veja? registrou perplexa: ?Analistas quebravam a cabeça para entender por que o anúncio do empréstimo de 30 bilhões de dólares do Fundo Monetário Internacional (FMI) não teve o esperado e imediato efeito apaziguador sobre os mercados.?

Muito simples: não teve porque a idéia era bem outra. Este acordo foi uma das maiores tramóias da história econômica do Brasil: assumimos dessa vez mais US$ 30 bilhões de dívidas, só para dar tempo aos bancos estrangeiros tirarem seu dinheiro do Brasil. Só agora o verdadeiro significado desse acordo está aparecendo nos jornais.

Bancos deram o golpe com a ajuda de O?Neill

Tudo aconteceu na noite da terça-feira, dia 6 de agosto, quando o secretário do Tesouro norte-americano, Paul O?Neill, e seu adjunto, John Taylor, reuniram-se em São Paulo com os pesos pesados da banca internacional. O?Neill havia dito dias antes que não se deveria emprestar dinheiro do contribuinte americano ao Brasil porque ?ia tudo parar na Suíça?. Sua declaração jogou lenha na fogueira estimulando ainda mais a saída de dólares do Brasil.

Pois bem, esse O?Neill, na reunião fechada com os banqueiros, concordou não apenas em emprestar mais dinheiro ao Brasil, mas em emprestar mais do que Malan vinha pedindo: US$ 30 bilhões, e não apenas US$ 20 bilhões. Por que tanta generosidade?

A notícia fora de foco

O encontro só foi noticiado dois dias depois , mesmo assim por poucos jornais e de modo fragmentado e incorreto. Na quinta feira, dia 8, a ?Gazeta Mercantil? dizia a partir de ?relatos de quem esteve com O?Neill e Taylor?, que ?o encaixe natural das peças do jogo deve resultar numa volta natural das linhas de crédito internacional ao Brasil.?

Tudo cascata. O objetivo do novo empréstimo foi exatamente o oposto: o de permitir aos bancos irem tirando seu rico dinheirinho, pois faziam o prognóstico pessimista de que o Brasil iria quebrar mais cedo ou mais tarde, e teria de haver uma renegociação da dívida externa. E o que é pior, essa renegociação poderia ter do outro lado da mesa gente com Mantega ou Mercadante, e não os amigos Malan e Fraga. Por isso, o anúncio dos novos recursos do FMI não deteve a fuga de dólares e os bancos não reabriram suas linhas de crédito.

A informação nas entrelinhas

No domingo, dia 11, surgiram alguns relatos divergentes do triunfalismo oficial, mas ainda nas entrelinhas. Numa entrevista à ?Folha?, Kenneth Mawwell, economista inglês de renome, dizia que o Brasil caminhava quase certamente para uma crise de pagamentos do tipo que exigiria uma reestruturação geral. E que o acordo com o FMI só adiou esse dia. Maxwell responsabilizou FHC pela crise e comparou-o a Alfonsin. O convite de FHC aos candidatos confirma essa percepção: o medo de um final a la Alfonsin é o motivo principal do convite – nisso concorda a mídia deste início de semana.

Nova revelação sobre o boicote ao Brasil

Na quinta, dia 15, ?Valor? trouxe declarações do representante do banco inglês Standard Chartered, Lauro Vallejo, de que foi o próprio Banco Central da Inglaterra que recomendou aos bancos ingleses reduzirem suas linhas de crédito no Brasil. O vice-presidente do Bank of Boston, Alex Zornig, praticamente confirmou essa informação, recomendando o governo a contatar os bancos centrais dos países desenvolvidos e o BIS, para pedir que relaxem as exigências nas operações com o Brasil. Neste domingo, o ?Estadão? trouxe esta frase de O?Neill, já posterior ao anúncio do acordo: ?Não considero que seja uma boa idéia que os governos peçam às empresas para fazer algo que não esteja dentro de seus interesses econômicos.?

Moratória, a palavra proibida

Neste final de semana, foi proferida abertamente a palavra proibida, mas pela imprensa internacional. Com exceção de ?Valor?, que mesmo assim foi relativamente discreto, a nossa mídia escondeu o assunto em espaços menores. A ?Folha? nem deu. O ?Estadão? deu num pé de página. O fato é que o ?Financial Times? e ?The Economist?, dois veículos que dão o tom à mídia em questões de economia internacional., anunciaram que o Brasil muito provavelmente vai quebrar. Isso explicaria a determinação dos bancos de retirarem seu dinheiro do Brasil e a ordem dos bancos centrais para que reduzam sua exposição. O ?Financial Times? disse que para o Brasil ?O jogo acabou?. ?The Economist? falou na probabilidade de uma moratória e até deu a receita de quanto o Brasil economizaria com uma renegociação da dívida a juros mais baixos.

O mesmo golpe dos tempos coloniais

?Carta Capital? desta semana restabelece o verdadeiro sentido do acordo: ?Os reais beneficiários do programa de US$ 30 bilhões ficam em Nova York e Washington?. A revista fez as contas do volume de empréstimos que teriam que ser renovados, pelo menos US$ 32 bilhões este ano e US$ 24 bilhões no ano que vem, e diz: ?O que o FMI oferece é para o Brasil trocar dívidas com bancos privados por dívidas com o FMI.?

Este acordo com o FMI só é comparável ao do acordo da Coroa portuguesa com o governo britânico. Dom João VI fugiu de Portugal acossado pelas tropas de Napoleão. Em pagamento do apoio britânico na fuga, os portugueses transferiram para sua colônia chamada Brasil a responsabilidade pela dívida que tinham com os banqueiros ingleses. Salvou-se a Coroa portuguesa e salvaram-se os bancos ingleses. Os brasileiros ficaram com a dívida, como agora.

12/8/2002

E agora: a operação Armínio Fraga

De repente, não mais que de repente, os jornalões começaram a dar a notícia de que o PT quer manter o Armínio Fraga na direção do Banco Central, caso ganhe a eleição. No sábado, a ?Folha? deu título bombástico de página inteira: ?PT quer ajuda de Armínio em governo Lula?. A reportagem trata-se de uma grande uma invenção e ?informa? que Armínio ?é tido, inclusive por Lula, como técnico competente, que se preocupa mais com economia do que com posicionamentos partidários?. No domingo foi a vez do Estadão fazer elogio rasgado a Armínio em matéria de página inteira, com o título: ?Fraga, de raposa do mercado a político modelo?.

A estranha narrativa da ?Folha?

Fábio Zanini, da ?Folha?, abre sua matéria dizendo que integrantes do alto escalão da campanha de Lula defendem a colaboração de Armínio em um eventual governo do PT, ?no mínimo como consultor informal?. E mais: ?(…) há até quem defenda a criação de uma espécie de conselho para assessorar o governo, do qual Armínio poderia constar?. E mais essa: ?segundo a ?Folha? apurou junto ao alto escalão petista, existe pontualmente no partido o desejo de que Armínio permaneça à frente do BC pelo menos no início do governo Lula?.

A arte da cascata no jornalismo brasileiro

Isso é o que se chama no jargão jornalístico de ?cascata?. A cascata é basicamente uma invenção, uma fantasia jornalística. Em primeiro lugar o repórter sugere ao leitor que conseguiu um furo de reportagem, já que ?apurou junto ao alto escalão? a sua história. Mentira: um único membro do alto escalão do PT de fato defendeu a manutenção de Armínio, mas fez isso de público e há muito tempo: o ex-governador de Brasília, Cristóvão Buarque.

Nenhum dos membros que efetivamente dirigem a campanha do PT, ou que tem grande influência na definição das diretrizes econômicas da campanha, defende a tese da manutenção de Armínio. A ela se opõe José Dirceu, Guido Mantega, Aloísio Mercadante e Antonio Palocci. E o próprio Lula, que disse isso em alto e bom tom em discurso no final da semana passada. A rigor, não existe essa tese dentro do comando da campanha. É pura cascata.

E ?Estadão? faz uma plástica na imagem de Armínio

De repente o nosso maior jornal esqueceu a seqüência de erros de Armínio na condução da política monetária, que o próprio jornal vinha apontando. ?Fraga, de raposa do mercado a político modelo? é um elogio rasgado a Armínio Fraga que ignora o que vem acontecendo no país e tenta recriar a imagem de Armínio, quando ninguém o conhecia direito e ele apareceu assim do nada como o menino dos dedos de ouro que gerenciava todos os fundos do genial mega-especulador George Soros.

Mas o Armínio, que realmente existe para todos nós, é outro, um ser humano inteligente, simpático, articulado, mas que cometeu muitos erros. Começou com a desastrosa decis&atiatilde;o de não baixar os juros em abril, desencadeando uma onda de pessimismo no mercado, que foi o início da crise atual. Em junho, veio o erro da remarcação inoportuna dos títulos de fundos de investimento, transmitindo à sociedade a sensação de um confisco. E, agora, o novo erro de anunciar antecipadamente que não vai mais alimentar o mercado com a reação diária de US$ 50 milhões, anúncio desnecessário, mesmo porque em matéria de câmbio, quanto menos se fala o que se vai fazer, melhor.

Origens da operação Armínio Fraga

As duas reportagens, da ?Folha? e do ?Estado?, fazem parte obviamente de uma tentativa de manter um membro importante da equipe de Malan no próximo governo e, como não pode ser o próprio Malan, que adotou uma atitude de militância ativa contra o PT, por que não Armínio? Por isso o Armínio é apresentado nas duas reportagens como mais flexível, propenso ao diálogo, um técnico acima de tudo.

Quem lançou esse lobby midiático foi o tucano Luiz Carlos Mendonça de Barros, no seu site Primeira Leitura, no dia 7. Foi ele que pautou a ?Folha? e depois ao ?Estado?. Zanini praticamente copia a matéria do site de Mendonça. Ali está escrito que o ?grupo do PT que considera prioridade a governabilidade pressiona a cúpula para convidar Armínio Fraga a ficar no BC por um ano, caso Lula seja eleito?.

É tudo cascata. Mais adiante, está auto-explicada a manobra, quando Mendonça diz que ?acenos de tucanos de apoio ao PT num segundo turno contra Ciro fazem crescer as chances de um entendimento?. Então é isso: os tucanos é que estão propondo e não um grupo dentro do PT. Mendonça ainda se resguarda um pouco dizendo que ?a oposição a essa idéia (dentro do PT) também é vigorosa?. A ?Folha? nem essa ressalva fez.

O modo brasileiro de construir a notícia

A teoria do jornalismo mostra que nem todos os fatos viram notícia. Como o número de fatos é em tese infinito e apenas alguns podem ser escolhidos para virar notícia, a escolha é feita segundo alguns critérios e sofre algumas influências. Há todo um processo social, que sofre influências mercantis, ideológicas, culturais e outras.

A ?cascata? é uma contribuição brasileira a essa teoria. Com a cascata o jornalista brasileiro consegue a façanha de criar a notícia sem precisar partir de algum fato importante. Basta, por exemplo, uma pequena declaração de alguém, e está aberto o campo para a grande fantasia jornalística, a ?cascata?. Nesse caso, a notícia não foi selecionada de um conjunto da fatos importantes. Ela nasceu do desejo de criar um fato importante.”