Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Primeira Leitura

ELEIÇÕES 2002

“A máquina do mundo”, copyright Primeira Leitura, 31/08/02

“Como a imprensa, um dos pilares da democracia, acaba, muitas vezes, tomada pela mistificação e pela empulhação militante e se converte num dos maiores algozes do regime das liberdades públicas

O que era passado a ser superado ganhou o peso de uma determinação, tábua da lei das impossibilidades. Juntos, Raízes do Brasil, Casa Grande & Senzala e Os Donos do Poder tornaram-se a prova-dos-noves teórica de uma congênita inviabilidade

Não existe sociedade democrática sem imprensa livre. E não há imprensa verdadeiramente livre se esta não zelar cotidianamente pela democracia como valor fundamental. Não há dúvida de que, neste capítulo, a imprensa brasileira tem um currículo dos mais vistosos. Mas comete também muitos erros e, com alguma freqüência, se descola da sociedade, como se lhe coubesse o papel de um verdadeiro Poder Moderador. Esse equívoco têm história e não se plasma no vácuo Para tanto, concorrem alguns fatores sobre os quais vale a pena pensar, especialmente neste 2002, com o país a caminho de uma das eleições mais importantes de sua história. É o que faz o jornalista Reinaldo Azevedo, diretor de redação do site e da revista Primeira Leitura, no texto que segue. Para Azevedo, algumas das distorções que precisam ser corrigidas nascem nos bancos escolares e fazem fortuna acrítica nos jornais, TVs, sites e revistas.

As eleições de outubro e as campanhas políticas em curso oferecem uma excelente oportunidade de discutir o papel da imprensa no aperfeiçoamento da democracia, cuja história ela ajudou a escrever. Dessa imprensa se diz, num clichê já desgastado, ser o Quarto Poder. Aí começam os problemas, e cumpre fazer algumas perguntas: até onde esse Quarto Poder se arvora no papel de um verdadeiro Poder Moderador? Não se comportaria essa imprensa, às vezes, como um seqüestrador da reputação alheia, devendo o acusado pagar, com a prova da inocência, por sua liberdade de ir e vir de cabeça erguida – numa inversão completa da mais comezinha noção de Justiça, herdeira ainda do Direito Romano? Alguns anos de militância contra o regime autoritário e a censura não teriam tornado essa imprensa um pouco nostálgica de um passado em que, supostamente, deteve o monopólio da moralidade e da ética? Estará ela cumprindo a contento o seu papel nas eleições deste 2002?

Embora o passado registre muitas interrupções na ordem constituída, é longa a relação do Brasil com a tentação democrática. Como lembra o historiador e jornalista Jorge Caldeira, o Brasil realiza eleições regulares desde 1826, e menos de 10% das mais de 50 legislaturas não se concluíram. Há aí algo como uma vocação, que é história vivida. Até mesmo o afinco com que o velho coronelismo fraudava os votos é a evidência de que, sem eles, o poder passava por discricionário. Quem, no entanto, ler o Brasil segundo a pena de muitos de seus historiadores e jornalistas contemporâneos terá a firme impressão de que o país é um arremedo de nação, de que as elites nativas nada mais fizeram e fazem do que se dedicar à contínua rapinagem, de que o povo se agarra a seu algoz num pacto de servidão voluntária. A performance da imprensa, neste período de consolidação dos valores democráticos e de aprimoramento da prática política, é modesta. O substrato palidamente teórico de que nascem esses preconceitos está, se permitem o neologismo, num conjunto de ?desleituras? da realidade brasileira operado em três movimentos, que se plasmaram numa concepção de país cínica, regressiva ou mesmo reacionária.

Primeiro Movimento. A primeira desleitura foi buscar nos anos de ouro da sociologia brasileira a comprovação teórica de que este país é fruto do erro. Aprendemos a ?desler? em Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, o homem cordial, atribuindo ao autor o que nunca dissera. Os vínculos de pessoalidade nas relações sociais e políticas logo se firmaram como a evidência de que esse homem cordial não inaugurava uma maneira – nem se julga aqui se boa ou má – de entender o espaço público, mas revelava apenas ao mundo um ser avesso à distinção entre o público e o privado. A tal ?cordialidade? virou sinônimo de fraqueza e de raquitismo político.

Em Casa Grande & Senzala, desleu-se a crônica da servidão voluntária. Que Gilberto Freyre tenha sido, ele próprio, um homem conservador, não resta dúvida; que sua obra tenha sido satanizada como aquela que buscou ?poetizar? as relações servis é uma dessas estultices que ainda embalam o ensino universitário. Em Os Donos do Poder, de Raymundo Faoro, aprendeu-se a desler o peso da herança portuguesa, especialmente a sua vertente burocrática e cartorial, na formação do Estado patrimonialista brasileiro. O que era passado a ser superado ganhou o peso de uma determinação, tábua da lei das impossibilidades. Juntos, tais livros seriam a prova-dos-noves teórica de uma congênita inviabilidade.

Outra frente. O segundo movimento coube ao marxismo universitário, refém de lentes modestas, especialmente em razão do exílio de muitos de seus mestres, tangidos a vara pelos golpes de 1964 e 1968. O expurgo do pensamento de ponta e a decadência do ensino superior formaram o pântano de uma crítica intelectual rudimentarmente de esquerda, em que a militância se sobrepunha à formação; a pregação ideológica, à reflexão e ao estudo; o desespero, à esperança. Essa formação toscamente engajada alastrou-se por meio da expansão desordenada do ensino universitário e da decadência do ensino médio, cuja deterioração sucessivos governos estaduais eleitos não conseguiram evitar.

O tal ?materialismo dialético? marxista, sempre pobremente compreendido, converte-se em bula que explica a mecânica do mundo. Você que lê este texto e se lembra de seus dias de estudante ou acompanha os filhos na escola conhece a tal ?linha do tempo?, segundo a qual as ?contradições? da Antiguidade conduziram à idade Média, que, por sua vez, tomada de contradições converteu-se em Idade Moderna, que, claro!, corroída por ?contradições?, resultou na Idade Contemporânea, que, por sua vez, sabe-se lá… Como vêem, a tal ?contradição? estaria para a história assim como os radicais livres estariam para o envelhecimento das células. Ou, numa outra metáfora, seria assim uma espécie de catapora transformadora…

A história do Brasil, por sua vez, é ensinada (quando ensinada) nos bancos escolares – em escolas públicas e privadas, tanto faz – como uma sucessão de conspirações perfeitamente previsíveis. Ao lado daquele mecanicismo arbitrário, está o ?militantismo? chulo, a chamada ?visão crítica da história? – em oposição a uma outra, factual, de datas, fatos e personagens À ?versão oficial dos vencedores e dos heróis?, opôs-se a suposta ?história crítica dos vencidos?, que acabou por nos vender um país formado por degredados, malandros, idiotas, rainhas loucas e adúlteras, príncipes priápicos, farsescos ou pederastas. Dom João 6? é o parvo das coxinhas de frango no bolso ensebado da veste real; Dom Pedro 1? declarou a independência entre uma crise e outra de diarréia por conta de uma feijoada mal digerida. A independência do país, a regência e a maioridade são ensinados como meros golpes contra a vontade popular. É claro que um marxista não-indigente perguntaria quem era, afinal, ?o povo? golpeado e qual o projeto de sociedade que esposava… Essa gente não quer rigor, mas adesão a uma causa; supõe que o contínuo exercício de baixa auto-estima vá, um dia, conduzir os brasileiros à revolta e à contestação contra os poderes constituídos. As palavras de Karl Kraus servem como emblema: ?O segredo do demagogo é se fazer passar por tão estúpido quanto sua platéia, para que esta imagine ser tão esperta quanto ele.?

Terceiro Movimento. O terceiro movimento, finalmente, é aquele realizado pela imprensa, produto e, ao mesmo tempo, fator dos dois outros. O jornalista que chega às redações não difere muito de um Lucien de Rubempré, o jovem poeta e escritor das Ilusões Perdidas, de Honoré de Balzac, que encontra no jornalismo o caminho para o sucesso, o brilho, a consagração, até cair em desgraça. Publicado em 1843, é, de todos os livros da vastíssima obra de Balzac, o mais terrivelmente moderno. Cabe uma ressalva: o grand monde que pôs a perder o provinciano Rubempré não chega a ser o ambiente em que o jornalismo contemporâneo se enreda. Aquela consciência militante rudimentar de que se falava há pouco constitui, ela sim, uma espécie de província mental, arraigadamente moralista, predisposta a ver o crime e o embuste mesmo onde eles não existem. Jornalistas, em Ilusões Perdidas, são chamados de ?espadachins de reputações?.

Feitas tais considerações, cumpre perguntar: qual seria a função social da imprensa ou, mais amplamente, da mídia? Parece que a elas caberia servir de âncora da razão em meio ao mar de suposições e hipóteses toscas que prosperam nas ruas, nas escolas, na Justiça, no Executivo ou até no Congresso. Infelizmente, não é o que se tem lido, visto, ouvido. E aqui cabe lembrar: a mídia espetaculosa, aquela já dissecada por Edgar Morin há décadas, permanece onde sempre esteve, agora dominando novos meios técnicos e atualizando sua agenda de consumo. Não tem importância nesta análise. Ainda que venda milhões de exemplares ou fale a milhões de pessoas, é pequena a sua interferência nas instituições. Vale dizer: se ela é um termômetro para indicar a temperatura da opinião pública, não exerce qualquer influência nas causas do mal. O que interessa ver de perto é a mídia que se sabe formadora de opinião, que muda a qualidade do debate nos Poderes constituídos.

Aí, com efeito, as coisas não caminham lá muito bem. O Brasil vai eleger o novo presidente, e é quase certo que o leitor-eleitor não terá como responder a algumas questões relevantes: afinal, o que querem os candidatos? Que modelo de Brasil eles propõem? Quais são seus marcos de economia política? Com Fulano, teremos mais ou menos Estado do que com Beltrano? Com quais setores da sociedade Sicrano se propõe a governar? O acordo partidário de Fulano compromete alguns pontos centrais de sua agenda? As contradições de um tal ajuntamento político buscam apenas vencer as eleições ou terão solução de continuidade, depois, na chamada governabilidade? Como cada um deles vê a inserção do Brasil na chamada economia global? Há, de fato, um candidato da continuidade nas eleições de 2002? O desmantelamento de um certo eixo de poder, pelo menos na forma em que vigorou entre 1995 e 2001, guarda alguma relação com a mudança de humores do cenário político internacional?

Ora, poder-se-á objetar, eis aí questões a ser respondidas pelos departamentos de ciências políticas das universidades, não pela imprensa. Será mesmo? É bom que se diga: este texto não está aqui a pôr em evidência a pouca importância reservada a tais temas, mas sim o silêncio quase criminoso em que se sufocam essas indagações. O autor destas mal traçadas pretende, é claro, que o site e a revista Primeira Leitura, ao lado de algumas poucas publicações, sejam exceções no conjunto. E se pode assegurar aqui que é bastante alto o preço a pagar por caminhar na contramão de certas verdades estabelecidas e de certas práticas consagradas. Aponta-se aqui falta de apuração, de espírito de investigação, de, se quiserem, luta? Não! Até sobrou! Mas, com uma freqüência irritante, seu alvo era a fofoca; sua busca constante, o deslize; sua convicção quase exclusiva, a de que se conspirava contra o interesse público e a vontade popular.

Nos meses de março e abril, por exemplo, enquanto o tucano José Serra buscava se consolidar como candidato do governo e enquanto o PT operava a mais espetacular guinada ideológica jamais havida no país, repórteres especializados em política dedicavam-se à tarefa de buscar os vasos comunicantes secretos que ligavam a decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) aos interesses do candidato tucano. Dois dias antes de o STF julgar improcedente a Ação Direita de Inconstitucionalidade (Adin) contra a decisão do TSE de verticalizar as eleições, um grande jornal chegou a antecipar o resultado: o Supremo acataria a Adin, e a verticalização seria derrubada. Não havia ali apenas erro de apuração. Havia a convicção de que o TSE tinha exorbitado de suas funções (até aí, tudo bem: jornais não precisam concordar com os tribunais), de que a decisão se assentava numa inconstitucionalidade e de que a única coisa razoável a fazer era mudar o que estava decidido. Ou seja: havia uma só maneira de ser livre!!! Outra tese exótica do período foi a proclamada ameaça de mexicanização das eleições brasileiras, de que a decisão do TSE seria um capítulo. Quando o tribunal optou pela verticalização, Lula tinha, então, o triplo das intenções de voto de Serra; três semanas depois, o quádruplo… Se esse placar se moveu depois, terá sido mesmo por causa do TSE?

Quando se abrem na cabeça do jornalismo político as portas da conspiração, fecham-se as da razão e as do bom senso. A imprensa, que poderia ser, então, uma espécie de ilha iluminista no mar dos interesses específicos dos políticos, torna-se, ela também, parte do problema. Por que não lembrar aqui os esforços dos ?conspiracionistas? para provar o uso da máquina do governo em favor da candidatura de Serra? Atentemos para quatro fatos ocorridos num único mês, em abril: 1) a Petrobras mandou às favas os escrúpulos, disse que tinha compromisso com seus acionistas e, com a anuência de FHC, aumentou o preço dos combustíveis; 2) o BC, naquele mês, interrompeu a trajetória de queda da taxa de juros, embora a inflação dos alimentos ficasse na casa dos centésimos, flertando com a deflação; o vilão da pressão inflacionária eram os preços administrados, combustível da Petrobras à frente; 3) um alto funcionário do BC partiu para o confronto com a Anatel, ameaçando criar uma crise imensa no setor de telefonia, que já dispunha dos marcos regulatórios adequados para resolver seus próprios problemas; 4) Pedro Malan antecipou ao FMI, sem necessidade, uma parcela de US$ 4,2 bilhões para demonstrar ser um bom moço de Wall Street e dava uma boa facada nas reservas. Que diabo de governo é esse, afinal, que resolve ?pôr a máquina? a serviço de Serra agindo, digamos, como Ariel Sharon em Jenin? Não seria mais útil especular sobre uma possível indisposição de parte da equipe econômica com o candidato tucano?

A montanha dos abutres. O caso da telefonia, a propósito, serve de exemplo para uma outra questão levantada neste texto e ainda não devidamente tratada: o seqüestro da reputação, só resgatada caso o acusado prove a sua inocência. Não custa lembrar que as autoridades responsáveis pela privatização da Telebrás, até então tidas por ?vendilhões da pátria?, começaram a ser acusados, agora, de ter vendido muito caro a estatal e de ter imposto metas duras demais às empresas privadas que entraram no mercado. E ninguém cora de vergonha… Compararam-se aqui alguns jornalistas a Lucien, de Ilusões Perdidas. Não custa lembrar o que disse sobre ele seu amigo Daniel d?Arthez em carta a Eva, irmã do primeiro: ?Lucien não teria forças para cometer um crime, mas aceitaria um crime já consumado, participaria dos seus proveitos sem ter participado dos perigos?.

Ora, o que se fez com o tal escândalo da privatização da Telebrás ou com as contas secretas do Dossiê Cayman? Em ambos os casos, supostas ?provas? criminosas, forjadas por criminosos – é bom lembrar que uma parte da imprensa participou dos ?proveitos? do crime sem participar dos ?perigos? -, foram assacadas contra ministros, governadores e o próprio presidente da República. Não se colheu um miserável indício de crime em nenhum dos dois casos. Mas quanto tudo aquilo terá custado aos supostos envolvidos na tramóia que nunca existiu? Como se opera a reparação nesses casos? O autor deste texto já ouviu de um figurão da mídia que algumas injustiças são inevitáveis e que são os danos colaterais para manter o jornalismo atento e vigilante. Balzac…

Os acusados no caso Cayman e Telebrás, aliás, ficariam bem no papel de mineiro Leo Minosa, no filme A Montanha dos Sete Abutres (1951), do genial Billy Wilder, morto neste 2002. Charles Tatum, um jornalista sem escrúpulos, emprega-se num jornaleco na pequena Albuquerque, no Estado do Novo México. Espirrado dos grandes centros por conta de sua ética, digamos, elástica, aborrecia-se com os pequenos problemas da província. Até que Minosa fica preso nas velhas ruínas indígenas (a tal Montanha dos Sete Abutres). O fato chega a despertar a atenção dos grandes jornais, e Tatum – cujo lema era ?I can handle big news and little news. And if there?s no news, I?ll go out and bite a dog.? (Eu posso cuidar de pequenas e grandes notícias; se não houver notícias, eu vou lá fora e mordo um cachorro) – decide, então, interferir no fato. Manipula as personagens envolvidas no conflito (a empresa encarregada do resgate, o xerife, a mulher e o pai de Minosa) para prolongar o resgate, já que, por razões várias, tem acesso exclusivo às informações que dizem respeito ao acidentado. Seus colegas jornalistas ficam furiosos, mas não com seus métodos heterodoxos, e sim porque ele é o detentor das ?informações exclusivas?. Em torno da montanha e da casa de Minosa forma-se um verdadeiro carnaval de curiosos – o filme ficou conhecido, aliás, pelo subtítulo The Big Carnival.

Boot, o editor do jornal de Albuquerque, que Tatum despreza, tem impressas num quadro as palavras ?Tell the Truth? (Diga a verdade). Era a sua crença honesta, provinciana, bem-intencionada na existência de uma verdade a ser perseguida pelo jornalismo, pela mídia. Tatum só acreditava na notícia como produto, como mercadoria. Se Lucien de Rubempré representava, por assim dizer, o florescer da sociedade de massa (que horrorizava o nobre Balzac), quando os jornalistas eram os ?espadachins de reputações?, Tatum já é o Rubempré que subsistiu a si mesmo; o que Balzac nos mostra como ameaça, Wilder exibe como fato consumado e triunfante.

São ambas visões extremas e pessimistas da mídia. Talvez não seja a do autor deste texto, que não crê, como mr. Boot, que haja uma ?verdade? a ser dita. Fora do acontecimento científico já plenamente verificado e descrito, qualquer noção de verdade se mostra sempre precária, íntima da ilusão, do engodo, da crença metafísica. Ainda assim, parece que o relativismo excessivo, a falta de critérios objetivos e a ausência de nortes conceituais não constituem realidade muito mais acolhedora.

Talvez fosse o caso de a imprensa, especialmente na cobertura da política e da economia, voltar-se um pouco para os critérios que têm orientado a sua percepção do que é notícia; talvez deva avocar para si o papel que lhe cabe no aperfeiçoamento do jogo democrático e não ter qualquer receio em ser programática, propositiva, mas reconhecendo sempre que os atores da política e da economia, como afirmou o professor José Arthur Giannotti em artigo intitulado Jornalismo e Amoralidade (Folha de S.Paulo, 17 de maio de 2001), se movem num espaço de uma certa amoralidade. Uma coisa é fraudar regras estabelecidas; outra é se aproveitar de interstícios e brechas legais para inaugurar o espaço da invenção – que poderá ser boa ou má, e o púbico há de julgar.

Caso se venha a compreender esse caráter necessariamente elástico da política, pode-se começar a ver de outra maneira um país cujo Parlamento, enfim, demonstra uma saudável coragem até mesmo em expulsar os seus. Que outro país na América Latina ou que outra democracia ocidental cassou ou levou a renúncia um tal número de deputados e senadores? Víssemos com olhos um pouco menos turvados pela baixa auto-estima – aquela pacientemente fabricada nos ?três movimentos? aqui abordados -, seria o caso de saudar o sistema político brasileiro, que, imperfeito sim, foi, em 2002, a âncora da relativa estabilidade vivida pelo Brasil, enquanto o entorno sul-americano via derreter suas instituições.

Finalmente, não custa lembrar, com Giannotti, no já citado artigo, que ?desde Platão, o político é acusado de ser camaleão, de viver da aparência, de precisar mais aparecer do que ser. Quando o aparecer é mero reflexo do ser, não existe política possível. Por isso Platão, adversário da democracia, imaginava a pólis sendo regida por um filósofo. Mas é totalmente imoral ao mesmo tempo querer a democracia e igualmente querer a transparência de todas as manifestações da ação coletiva, posto que age imoralmente quem, sabendo que a ação resulta em conseqüências indesejáveis, acusa o outro como responsável por essa situação?.”