VENTOS DO SUL
Gilmar Antonio Crestani (*)
Na Odisséia, Homero registra um dos primeiros relatos de viagem. Leva para o plano ficcional os limites, as fronteiras do mundo conhecido, fixando certas idéias dos gregos a respeito de além do "vinoso mar". O geógrafo grego Estrabão (c. 64 a.C.- 25 d.C.), se comparado a Pausânias (110-180 d.C.), não passa de um burocrata de boas leituras. Com sua monumental obra, Descrição da Grécia, ainda a merecer uma edição em português, traduz com propriedade o que na Odisséia reside apenas no plano ficcional, com exceção apenas para Heinrich Schliemann (1822-1890). Este banqueiro alemão tomou a Odisséia como roteiro de viagem e seguiu as pegadas.
Escavou o que entendeu por Tróia, uma dentre tantas, e as jóias que descobriu e que hoje estão no Museu Pushkin, de Moscou, nominou-as "tesouros de Príamo". As diferenças começam pelo enfoque dos autores. Homero fala da viagem de Ulisses, enquanto Pausânias registra as impressões de lugares por onde de fato passou. Além disso, Ulisses é um viajante que trilha roteiro desconhecido e alheio a sua vontade, enquanto Pausânias cumpre um trajeto estudado e revisado.
Na Renascença, Dante traduz o sentimento de Homero segundo o qual Ulisses tinha intenção de conhecer o mundo, em que pese o sofrimento da personagem. Saliente-se que Dante teve a guiá-lo em sua "viagem" nada menos que Virgílio, autor da Eneida, que por sua vez também narra as vicissitudes do navegante Enéias. Outras obras tratam de viagens, como o Anabase, de Xenofonte, a respeito do retorno dos 10 mil mercenários gregos que haviam se juntado ao exército de Ciro, da Pérsia. Heródoto, por exemplo, em sua História, diz ter viajado pela maioria dos lugares que intenta retratar. Algumas passagens são tidas como meramente ficcionais e outras, também consideradas fruto de sua imaginação, acabaram comprovadas por escavações arqueológicas recentes. A Bíblia, no Êxodo (exit, saída), igualmente fala da viagem dos hebreus do Egito para Canaã.
Como os sem-terra, os hebreus vagaram pelo deserto contando apenas com as palavras orientadoras do líder Moisés e a promessa de Javé de que receberiam uma terra onde corria leite e mel. O livro sagrado da civilização judaico-cristã ensina que um serviu para ser condutor, e o outro para instalar o povo. Naquele tempo a História não só não havia acabado como também garantia ao viajante compenetrado com a "verdade" um futuro promissor.
Os ciclopes e seus bordões
Mesmo sendo um viajante a contragosto, Ulisses não perde a oportunidade de tirar dela proveito. É assim quando deseja "ver" o Ciclope e "ouvir" as sereias. Algum gaiato talvez queira ver aí a origem da máxima que manda a estuprada relaxar e, se possível, também gozar, pois assemelha-se às sereias devoradoras de políticos, que alçam vôo no Brasil, sobrevoam a Suíça para só então pousar nas paradisíacas águas das Ilhas Jersey, pelo menos enquanto algum viajante incansável do Ministério Público não se decida a seguir-lhes os passos. Mais do que um oráculo de Delfos, é a determinação a única capaz de decifrar a esfinge do enigma contábil.
Hoje, faltaria imaginação até a Homero caso resolvesse peregrinar pelas sedutoras Ilhas Caymán. Fosse possível, registraria outras espécies de sereias, cujo poder de sedução já não atraem apenas forasteiros desatentos, mas principalmente empresas do coronelismo eletrônico de todos os ramos.
Além do engenho e da arte, Camões registrou as viagens portuguesas dispondo de fontes mais seguras das que nos oferece a imprensa brasileira atual.
Senão, vejamos: a se crer na chamada grande (em tamanho) imprensa brasileira, a Argentina deveria ficar fora de qualquer roteiro turístico. Contudo, o caos econômico de que tanto se fala está muito longe de causar transtorno a um turista brasileiro. A sucessiva troca de mandatários argentinos, derrubados pela pressão popular, o estilhaçamento das bolsas, que ocupa bolsos, corações e mentes, está longe de determinar o destino de um país que se olha no espelho e se vê como anão diante do grande irmão do Norte. Veja-se o brilhante Clovis Rossi, da Folha de S. Paulo, que não viu na situação argentina o princípio do apocalipse, mas não consegue evitar que o jornal onde trabalha seja o exemplo mais acabado da prática que Menem logrou introduzir na política argentina. Desde que a campanha eleitoral começou, não há dia que a Pandora paulista não saque uma maldade contra Ciro Gomes, talvez não com o objetivo de atacá-lo, mas visando proteger seus interesses, melhor traduzidos por José Serra.
E se hoje nos encontramos de joelhos diante do FMI, como está a Argentina, é porque o modelo foi vendido pelo coronelismo eletrônico como a tábua de salvação para cucarachas. A ficção por vezes pode operar milagres nas mãos de um banqueiro alemão, enquanto o pretenso registro factual revela-se tão verossimilhante quanto a História Universal da Infâmia, escrita por Borges, a mesma infâmia que a imprensa coronelista do Sul utiliza para deslegitimar e demonizar seus adversários políticos. Nesta gangorra, enquanto sataniza quem não se ajoelha, eleva à beatificação os frutos de seu ventre, fazendo da política uma barca de Noé para nela embarcar seus ex e atuais funcionários. Como Narciso, acha feio tudo o que não é espelho.
A correlação de métodos políticos entre os dois países se resume no predomínio de currais eleitorais no Brasil, legitimados pelo coronelismo eletrônico, sem que mesmo o mais hegeliano dos filósofos consiga entender sem cair na tentação de os justificar para se locupletar, enquanto os argentinos já vivem tempos de corralitos, uma das sete pragas que já caíram também sobre nós ainda nos idos tempos do caçador de marajás, ele igualmente ungido pela nossa mídia unânime.
Os ciclopes da imprensa bordoneiam apenas as questões macroeconômicas, que interessam aos que movimentam capitais. Por isso, os transtornos se relacionam mais ao quesito credibilidade das instituições financeiras (cartões de crédito) locais, mas que são as mesmas em qualquer lugar neste mundo globalizado, do que com a miséria escandalosa que o Brasil só viu aumentar no último reinado do príncipe dos sociólogos.
A media luz
Os cafés portenhos continuam cheios, os táxis também. A vida cultural é de fazer inveja, com opções as mais variadas, todos os dias da semana. Só na Avenida Corrientes há mais livrarias do que em todo o Rio Grande do Sul. E cheias! Claro, os preços são convidativos, e as opções ainda melhores…
Em que pesem os preconceitos que ambas as imprensas vendem, boa parte fruto do mais alienante dos esportes, o futebol, nós brasileiros somos muito bem tratados. Encontramos pessoas cultas, educadas, prestativas. Vendedor e balconista em regra têm boa formação, viajam e dominam mais de um idioma.
Temos muita coisa em comum, principalmente o divórcio com a imprensa. A mídia argentina carece de credibilidade tanto quanto a brasileira. E se as coisas têm se tornado mais difíceis aos argentinos, a mídia leva a maior parcela de culpa, a da manipulação interessada. A unanimidade das pessoas com que conversei afirma que 80% da imprensa argentina se locupletam com os interesses da classe política.
Por quê? Porque patrocinou a euforia, aproveitou-se dela e com os que com ela lucraram. As migalhas do banquete também aumentaram a sensação do paraíso, inebriando até os que estavam na ante-sala do festim. Agora a ressaca deixa o gosto amargo. E melhor análise política sempre vem da classe cultural, jamais do jornalismo dito político ou de opinião. Os colunistas ditos de opinião as vendem em balaios com a mesma variedade das "facturas" oferecidas pelos cafés argentinos.
Por falta de espinha dorsal, embora digam-se independentes, sedizentes imparciais, metidos a bem pensantes, sucumbem às tentações do bezerro de ouro. Aí casa o raciocínio do músico argentino Leon Gieco, autor de canções imortalizadas por Mercedes Sosa (Canción para Carito, Solo le pido a Dios), que também firmou parceria com o músico gaúcho lá exilado Raul Ellwanger, em entrevista ao jornal Nueva Sion: "Como combaterias a corrupção na política organizada?" Respondeu Gieco: "É muito difícil, porque estou convencido de que é um sintoma da falta de nossos 30 mil desaparecidos. Justo agora estamos sentindo a ausência desta geração porque deveriam ser os dirigentes do presente. Se queremos começar pelo princípio, a pergunta é por que não temos políticos respeitáveis. Porque os mataram a todos." Isto é, ao contrário do que afirma o coronelismo eletrônico, há que se registrar o passado, gravá-lo para que aprendamos a distinguir o bajulador do amigo.
E se hoje temos uma geração de políticos medíocres, é a mesma que faz jornalismo, e ambos são frutos de uma ditadura que só os que com ela se locupletaram fazem questão de esquecer. É por isso sintomático que postulantes a cargos públicos dizem se lixar com os erros passados, coisa que o coronelismo eletrônico corre a endossar. Isso lhes convém. Enquanto os antigos viajantes estabeleciam critérios de civilidade pelo consumo do pão, em oposição à ausência do manejo humano do campo, os tempos atuais estão a indicar que a oferta de pão quentinho depende de informações igualmente quentes. E se o capital é volátil e gira como na letra do tango, também é verdade que o roteiro foi idealizado "a media luz", pelo Consenso de Washington, e interpretado por marionetes sem jogo de cintura para improvisações. Os passos foram ensaiados no escuro e a imprensa não soube ou não quis trazê-los à luz.
Governo dos sonhos, denúncia-pesadelo
Conhecendo os métodos do coronelismo eletrônico gaúcho, que se traveste de modernidade com a mesma desenvoltura com que o Arlequim vestia sua máscara, não precisava ser profeta para saber que a fanfarronada homérica, transmitida ao vivo aos seus currais, a respeito das denúncias que deram origem à chamada CPI da Segurança, estava cercada de sórdidos interesses. Em mais de uma oportunidade apontei neste Observatório as ardilosas manipulações entre políticos e o coronelismo eletrônico gaudério, conluiados para, ao mesmo tempo que atacavam o governo do estado, na outra ponta favorecer os testas de ferro do jornalismo desvairado.
Não foi por outro motivo que empunharam com ferocidade o ditado latino que ensina que "a melhor defesa é o ataque". Construíram um castelo de areia momentos antes de a onda bater nele, em cima de fatos potencializados pelas luzes dos holofotes, e assim muito jornal foi vendido, e o ibope talvez lhes tenha garantido boa audiência. Investiram contra o Poder Judiciário e contra quem dele fizesse uso com o único intuito de criar suspeição quanto a eventuais condenações futuras.
Quem investigava, julgava e condenava incontinenti, na mesma edição, sonegava à vítima o direito de se socorrer de um dos pilares da democracia. O Poder Judiciário foi subtraído da repartição clássica de Montesquieu para, no lugar dele, erigiram tribunais de exceção fundados apenas em "manifestos" publicados "apedido" e repercutidos pelo coronéis signatários. As súmulas editadas sob os auspícios de Hegel eram tidas como mais sagradas que as leis do Corão muçulmano.
Até a Folha, sempre com comichões para exercitar seu macarthismo, entrou na onda e criou a rubrica "Bicho do PT" para tratar das denúncias que os derrotados das últimas eleições fabricaram juntos à banda podre da polícia, que aliás foram presos. Todas as den&uauacute;ncias contra o governo do estado foram arquivadas. O principal personagem, sob a qual estavam estribadas as acusações, acaba de ser inocentado de mais uma acusação, mas em que veículo pode ser lida com a mesma ênfase com que tripudiaram as aleivosias?
A mesma RBS que gastou seu latim vulgar para cercar e atacar faz-se de ouvidos moucos para divulgar a improcedência de denúncias que ajudou a construir. Talvez purgando a precipitação anterior, ou sabe-se lá por quais outros motivos, na mesma semana em que a Justiça inocenta uma de suas vítimas também esquece de informar que o governo de seus sonhos está sendo denunciado pelo Ministério Público Federal por sonegação. A se acreditar na imprensa do Centro do país, já que a local parece não ter tido acesso às informações, o secretário do governo que a RBS reputa exemplar, o mesmo que conduziu o processo de privatização da CRT, de que a RBS teve a felicidade de abocanhar parte, acabou constituindo ou fazendo parte de empresas que passaram a prestar serviços à administradora da ex-CRT. São estas empresas que estão sob investigação.
Memória seletiva ou tartaruga voadora
Coincidentemente, na mesma semana Ciro Gomes, talvez prevendo a saia justa que seu correligionário estava metido no RS, condenou os políticos que transitam com desenvoltura entre as esferas públicas e privadas. Mais coincidência ainda quando se verifica que o ex-governador foi prestar assessoria ao Banco Opportunity, administrador da ex-CRT, e que seu ex-secretário, responsável pela privatização, encontrou exatamente na empresa privatizada a segurança contra o desemprego… Vá ter sorte assim em outro lugar!?
O que seriam dos gaúchos se não existisse a pluralidade de informações… fora do Rio Grande! Chegamos ao ponto de que, para sabermos das excelências da política baiana, temos de consultar os coronéis gaudérios, mas se queremos ter informações a respeito do que ocorre nos pagos gaúchos temos de ler o Jornal do Brasil. O que sobra para o cidadão que tem acesso apenas aos produtos de tais coronéis?
Coincidentemente, na mesma semana que a imprensa do Centro do país repercutia tais fatos, o jornal Zero Hora saía com mais uma pérola digna do Barão de Itararé: "Tartaruga é vítima de bala perdida." O laudo jornalístico conclui: "A mais recente vítima da guerra do tráfico de drogas no bairro Vila Jardim, zona norte da Capital, tem uma carapaça robusta, quatro patas, mede 15 centímetros, pesa três quilos, é um réptil e atende por Tarta." Infelizmente, como estou na Argentina, não pude acompanhar se os demais veículos do grupo disponibilizaram alguma entrevista póstuma com a vítima…
Numa hora dessas, como não lembrar daquele ex-ministro do Collor, Magri, e sua humana afirmação de que cachorro também é gente?! Enquanto sobrava criatividade para tratar do necrológio da tartaruga, as denúncias de improbidade no governo anterior recebiam tratamento burocrático de um anúncio imobiliário.
A bem da verdade, parece que o divórcio entre realidade e informação jornalística não é de todo sem sentido. Estou quase me convencendo disso. Não é por acaso também que o realismo mágico na literatura tenha encontrado um ambiente adequado na América Latina, prova o modo com que os do Norte nos tratam: por exemplo, o pedido de imunidade diplomática para os soldados americanos participarem de manobras militares na Argentina, e a condescendência dos anfitriões encastelados na Casa Rosada. Tal comportamento autoriza o trocadilho ?América Latrina?. Há mais veracidade sobre nossos países nos livros de ficção de um Gabriel García Marques, um Jorge Luis Borges ou de um Murilo Rubião do que em muitas "reportagens especiais" produzidas pelas redações do coronelismo eletrônico. De fato, A vaca voadora que a escritora Edy Lima publicou não é mais mágica que do a reportagem da tartaruga!
(*) Funcionário público federal