Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

AcessoCom

CAPITAL ESTRANGEIRO

“Vale o registro”, copyright Epcom, www.acessocom.com.br, 4/9/2002

“O ministro das Comunicações, Juarez Quadros, entregou em 2/9 ao ministro chefe da Casa Civil da Presidência da República, Pedro Parente, o anteprojeto de lei que regulamenta a participação do capital estrangeiro no capital social de empresas jornalísticas e de radiodifusão, limitada a 30%. Depois desta etapa, o texto deverá ser encaminhado para apreciação do Senado e da Câmara dos Deputados. Conforme os veículos monitorados por ?AcessoCom?, o anteprojeto apresentado por Quadros difere da proposta colocada em consulta pública entre 29/7 e 15/8. A principal mudança foi a retirada da permissão para captação de recursos junto a investidores institucionais, como entidades de previdência complementar, clubes e fundos de investimento. Na nova versão do texto, também foi acrescida no artigo que define como capital estrangeiro os ?bens, máquinas e equipamentos entrados no Brasil sem dispêndio inicial? a expressão ?destinados à produção de bens ou serviços? – preservando o artigo primeiro da Lei 4.131/62. A proposta do governo determina ainda que a nomeação de diretores deverá ser apenas comunicada ao Minicom, que não precisará autorizá-las. As mudanças societárias e transferências de concessão deverão ser comunicadas ao Congresso Nacional. Nenhum dos veículos monitorados por ?AcessoCom? apresentou uma estimativa de quando o projeto de lei poderá estar aprovado no Legislativo.

* A quarta reunião do Conselho de Comunicação Social (CCS), órgão auxiliar do Congresso Nacional para assuntos de Comunicação, foi marcada pela discussão em torno de demandas da sociedade. De acordo com o site do Senado Federal, em 2/9 o ?conselho instituiu uma comissão destinada a apresentar propostas relativas à radiodifusão comunitária?. O grupo será formado pelos conselheiros Paulo Machado Neto (representante das emissoras de rádio), Roberto Wagner (emissoras de TV), Fernando Bittencourt (engenheiros), Daniel Herz (jornalistas), Regina Festa (sociedade civil) e Francisco Pereira da Silva (radialistas). Segundo o presidente do CCS, José Paulo Cavalcanti Filho, o ministro das Comunicações, Juarez Quadros, lhe informou que o número de rádios comunitárias a espera de autorização no Brasil chega a 8 mil e que o Ministério teria condição de liberar pelo menos mil outorgas por ano. Na mesma reunião, os conselheiros decidiram entrar em contato com a Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara dos Deputados para saber o motivo do atraso na outorga ou renovação de 492 emissoras comerciais de rádio e TV que receberam notificação mas ainda não entregaram toda a documentação. Outro ponto da pauta foi o relatório sobre a digitalização da comunicação social eletrônica de massa, que está em fase de elaboração pela Comissão de Digitalização, formada pelos conselheiros Bittencourt, Herz e Geraldo Pereira dos Santos (representante dos profissionais de cinema e vídeo). Os conselheiros acordaram que qualquer proposta ou parecer leve em conta todos os estudos que já foram feitos no Brasil pela Sociedade Brasileira de Engenharia de Televisão (SET) e pela Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert). Os conselheiros decidiram também adiar para o segundo turno das eleições a convocação dos candidatos a presidente da República para esclarecerem suas propostas para a área das comunicações.

* O vice-presidente do SBT, José Roberto Maluf, anunciou na quarta semana de agosto que a emissora está negociando uma parceria com ?um grande estúdio internacional? para produzir programas para TV no Brasil. O negócio inclui ainda a construção de três novos estúdios de gravação em um terreno de 50 mil metros quadrados, vizinho à sede do SBT, em Osasco (SP). Conforme informa o jornalista Daniel Castro em sua coluna para a ?Folha de São Paulo?, Maluf fez o anúncio durante um encontro de afiliadas do Nordeste na Bahia. O executivo salientou em seu discurso que as parcerias da rede com o capital estrangeiro nas empresas de comunicação vão iniciar pela produção de conteúdo. Depois, observou, poderá ser formalizada a participação nas empresas, limitada a 30%. Castro salienta que duas fontes lhe confirmaram o conteúdo do discurso, embora oficialmente o SBT só confirme a construção dos estúdios. A emissora tem negócios com a Warner, Walt Disney e Fox, além de estar negociando a co-produção internacional de filmes.

* Em depoimento prestado ao 1? Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, a viúva do repórter Tim Lopes, da TV Globo, torturado e morto por traficantes em 2/6, a estilista Alessandra de Araújo Wagner, levantou a suspeita de que ele tenha sido traído por seu informante na Favela Vila Cruzeiro. Ela revelou que a pauta sobre a exploração sexual de adolescentes em bailes ?funk? não foi sugerida por Lopes, que ao retornar de férias foi escalado para fazer a reportagem. ?Tim disse que aquela matéria era barra pesada. Chegou a dizer: ?Essa eu faço questão de não assinar?, contou Alessandra. Os veículos monitorados por ?AcessoCom? registram que o advogado de Alessandra, André Martins, também acusou a Globo de estar protegendo o informante. ?Alessandra quer que a verdade aflore e acha que a TV Globo substitui o Estado, ao dar proteção a uma testemunha que, ao ver dela, é suspeita. A Globo tinha conhecimento de que havia homens armados. Ele ir sozinho, com a cara e a coragem, é expor a vida do trabalhador ao perigo?, argumentou, informando que o fato constitui crime previsto no artigo 132 do Código Penal. Conforme o jornal ?Folha de São Paulo?, Alessandra revelou ainda que Lopes tinha que comprar e consumir drogas quando fazia reportagens nas favelas, porque não tinha como jogá-las fora. No mesmo dia, o motorista Rudmann Guilherme Castro, contou em seu depoimento que aguardou o repórter até a 0h10min do dia 2/6, quando o horário previsto era até às 22h30min. Depois de ligar três vezes para a emissora, decidiu partir. Preocupada, Alessandra ligou para a Chefia de Reportagem às 7h, quando pediram-lhe para que esperasse pois ?a reportagem poderia ter rendido?. Na edição do ?Jornal Nacional? de 2/9 e em nota oficial, a TV Globo disse que só se manifestará sobre as declarações de Alessandra e Castro após ter a cópia dos depoimentos. Reiterando que seu ?compromisso sempre foi e sempre será com a verdade?, a emissora informou que ?ele (Tim Lopes) era daqueles profissionais que, pelo brilhantismo e correção, pautam-se a si mesmos?.”

 

MÍDIA E PODER

“História da RBS revela como nascem e crescem monopólios da mídia”, copyright copyright Agência Carta Maior, 7/9/02

“Em quase meio século de existência, o grupo RBS, afiliada da Rede Globo no Rio Grande do Sul, exorbitou em muito os limites da concentração dos meios de comunicação no Brasil, segundo mostram os números da própria empresa. Desejo de expansão não se restringe à mídia, conforme mostra estudo que analisa a participação do grupo no processo de privatização da telefonia no país.

Em quase meio século de existência, o grupo RBS, afiliada da Rede Globo no Rio Grande do Sul, exorbitou em muito os limites da concentração dos meios de comunicação no Brasil. A observação foi feita pelo site AcessoCom (www.acessocom.com.br), organização coordenada pelo jornalista Daniel Herz que monitora as atividades de mídia no Brasil. AcessoCom publica boletins diários, pela internet, analisando as principais notícias sobre os meios de comunicação. Em seu boletim de 2 de setembro, comenta os números divulgados pela própria RBS no jornal Zero Hora sobre a expansão do grupo que detém o monopólio das comunicações no RS.

Segundo matéria de duas páginas publicada em Zero Hora, o grupo RBS chega aos 45 anos de existência reunindo 24 emissoras de rádio (AM e FM), 21 canais de TV, um portal de internet, uma empresa de marketing e um projeto na área rural, tendo participação na NET Serviços de Comunicação, maior operadora de TV a cabo do Brasil, e mantendo uma fundação social ?dedicada à construção da cidadania?. O boletim do AcessoCom lembra que, de acordo com o artigo 12 do Decreto 236 (28/2 de 1967), uma mesma entidade só poderá ter ?concessão ou permissão para executar serviço de radiodifusão, em todo o País? no limite de 4 rádios AM e 6 FM por localidade, 3 AM de alcance regional e cinco emissoras de TV em VHF em todo o País, obedecendo o limite de duas por Estado. Os números publicados por Zero Hora ultrapassam de longe esse limite.

O nascimento de um império regional

A RBS começou a surgir em julho de 1957, quando Maurício Sirotsky Sobrinho comprou a Rádio Gaúcha, em sociedade com Arnaldo Ballvé, Frederico Arnaldo Ballvé e Nestor Rizzo. Em 1962, foi inaugurada a TV Gaúcha. Oito anos depois, em 1970, começou a operar na mídia impressa com o jornal Zero Hora. Segundo a matéria da própria ZH, a expansão da empresa se consolidou em 1970, quando foi criada a sigla RBS, de Rede Brasil Sul, ?inspirada nas três letras das gigantes estrangeiras de comunicação CBS, NBC e ABC?. A partir das boas relações estabelecidas com os governos da ditadura militar e da ação articulada com a Rede Globo, a RBS foi conseguindo novas concessões e diversificando seus negócios.

O grupo participou ativamente do processo de privatização da telefonia no Brasil. Segundo pesquisa realizada por Suzy dos Santos (do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Culturas Contemporâneas da Faculdade de Comunicação da UFBa e Sérgio Capparelli (do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação da Fabico/UFRGS), a RBS esteve presente em praticamente todos os momentos do processo de privatização das telecomunicações no país.

No governo Britto, RBS ingressa no negócio da telefonia

De acordo com esse estudo, em 16 de dezembro de 1996, ganhou a licitação para a privatização de 35% da Companhia Riograndense de Telecomunicações (CRT), comandada pelo então governador Antônio Britto (ex-funcionário da RBS), através do consórcio Telefônica do Brasil. Posteriormente, em 19 de junho de 1998, o controle acionário da CRT foi adquirido em leilão pela, agora, Telefônica do Brasil Holding, quando da venda dos 50,12% ainda restantes nas mãos do Estado. Na data da privatização da CRT, a composição acionária da Telefônica do Brasil era: Telefónica Internacional, 30%; RBS, 30%; e o restante das ações dividido entre a Portugal Telecom, 23%; a Iberdróla (empresa de energia espanhola), 7%; e o Banco Bilbao Vizcaya, 7%.

No entanto, a RBS sofreu uma pesada derrota neste processo. Segundo relatam Suzi dos Santos e Sérgio Capparelli, no mercado nacional existia um acordo informal entre a Rede Globo e a RBS que estabelecia lotes para a atuação dos grupos no setor de telecomunicações: a RBS se concentraria na região sul e a Globo no centro do país. Nos limites desse acordo, na divisão do Sistema Telebrás em três empresas de telefonia fixa, uma de longa distância e oito de telefonia celular, interessava à RBS, a aquisição da Tele Centro Sul e à Globo, a Telesp, a Telesp Celular ou a Tele Sudeste Celular (Rio de Janeiro e Espírito Santo). O planos das duas empresas foi por água abaixo a partir da aquisição, pela holding Tele Brasil Sul, da Telesp, por R$ 5,78 bilhões contra os R$ 3,965 bilhões ofertados pelo consórcio formado pela Globopar, o Banco Bradesco e a Telecom Itália. O lance pela Telesp foi definido sem o conhecimento da RBS. Com a aquisição da Telesp, legalmente, a empresa ficou impossibilitada de concorrer ao leilão da Tele Centro-Sul, vencido pela Solpart Participações – Banco Opportunity, Telecom Itália e fundos de pensão.

Um tiro no pé

Assim, em vez de solidificar a participação da RBS no mercado de comunicações da região Sul, a parceria com a Telefónica acabou sendo um tiro no pé do grupo: serviu de base para a entrada da operadora global no país e restringiu a expansão da RBS. O episódio estremeceu as relações entre as duas parceiras e abalou seriamente o planejamento da RBS. A empresa já tinha investido US$ 130 milhões na CRT, mas a possibilidade de compra das ações da Telefónica ou de algum outro participante da holding Tele Brasil Sul exigia a captação de mais recursos, condição prejudicada pela crise financeira internacional e a alta nos juros para títulos de dívidas. Outro personagem importante dessa história, o ex-governador Antônio Britto, após ser derrotado por Olívio Dutra nas eleições de 1998, acabou indo trabalhar como consultor do Banco Opportunity, que passou a administrar parte do controle acionário da CRT.

Ainda segundo o mesmo estudo, a RBS participou também do processo de licitações, ocorrido em 1996, da Banda B de telefonia celular associada ao jornal O Estado de São Paulo, ao grupo Safra, e às empresas norte-americanas Splice e Bell South. Ao contrário do Sistema Telebrás, onde não haviam limites ao capital estrangeiro, a licitação da Banda B previa o máximo de 49% de ações em propriedade de empresas internacionais, como nas concessões de TV a cabo. Ao todo, a RBS participou de quatro consórcios para a operação de telecomunicações BSE 20, BCP 21, Tele Brasil Sul 22 e Telefônica do Brasil Holding 23. Posteriormente, estes consórcios foram fundidos em dois: BCP, para as operações da Banda B de telefonia celular, e Tele Brasil Sul, para as operações de telefonia fixa e da Banda A de telefonia celular.

Os prejuízos resultantes da conturbada parceria com a Telefonica da Espanha obrigaram a RBS a adotar medidas drásticas de redução de custos nas empresas do grupo. Em setembro de 1998, o grupo demitiu 275 dos seus 6.300 funcionários. Além disso, extinguiu programas de incentivos e o reordenou gastos com produção de programação, entre outras ações administrativas que tiveram por objetivo diminuir 7% dos custos totais da empresa. Com a vitória do PT nas eleições estaduais de 1998 no RS, o processo de privatizações foi interrompido no Estado, o que coincidiu com a decisão da RBS de rever sua política de expansão em outros setores, especialmente na área da telefonia. O tema passou a integrar a pauta política no Estado. A privatização da CRT e as relações do ex-governador Antônio Britto com o Banco Opportunity tornaram-se um dos pontos mais polêmicos na sucessão estadual deste ano no Rio Grande do Sul. A campanha eleitoral começa a trazer à tona pontos obscuros desses negócio que fazem parte da história recente do Grupo RBS. (Marco Aurélio Weissheimer é correspondente da Agência Carta Maior em Porto Alegre)”

 

CIDADE DE DEUS

“Cidade de Deus (e do mercado)”, copyright Jornal do Brasil, 5/09/02

“Lá pela metade do filme, quando as rajadas de balas perdidas já perfuraram qualquer boa intenção do espectador, o narrador de Cidade de Deus diz que, se o tráfico de drogas não fosse crime, o bandido Zé Pequeno seria o homem de visão daquele ano. A gente ri. Depois de rir, a gente se toca: a anedota faz um sentido profundo. Aquilo é mais uma bala perdida. Zé Pequeno é um homem sem coração. Mata por amor, alguém dirá, mas por amor ao ofício de matar. É um killer – e a palavra killer, aqui, lança uma ponte entre Cidade de Deus e as cidades dos negociantes legalizados. Muitos dos grandes executivos que hoje correm o mundo conduzindo conglomerados maiores que nações inteiras, muitos deles se orgulham de ser chamados killers. Demitem dez mil funcionários de uma canetada só. São frios feito máquinas de calcular na hora de ?enxugar a folha?. São os killers. Como Zé Pequeno.

Ou nem tanto. Zé Pequeno é imbatível. Depacha os subordinados chatos com um disparo traiçoeiro, como quem acerta o pernilongo distraído com a palma da mão. Brinca de tiro-ao-alvo nos reféns amarrados na cozinha do motel, como um chefe de seção que se espreguiça na cadeira e atira o papel amassado ao cesto, quando dá o fim do expediente. Zé Pequeno fuzila o desafeto enquanto ri, e isso desde criança, isso desde antes de lhe crescerem os pêlos da cara.

Mas não é por saber matar que Zé Pequeno seria eleito o homem de visão. É porque, já adulto, aos 18 anos, sabe ampliar os seus negócios sobre as ruínas dos concorrentes. Tomando as bocas-de-fumo, uma a uma, e liquidando os competidores, um a um, assume praticamente o monopólio das drogas em Cidade de Deus. Dita o preço da mercadoria. Se o tráfico não fosse ilegal, é possível que Zé Pequeno viesse a ter problemas com o Cade. Monopolista, emprega os trabalhadores disponíveis sem que ninguém dispute mão-de-obra com ele. Impõe e regula as fases todas do plano de carreira do tráfico, o que é bem anotado pelo narrador: a criança começa bem cedo, como mensageira (office boy), e depois evolui, como avião, vapor, soldado… até chegar a gerente. Zé Pequeno seria enfim o homem de visão por ter sabido dizimar os rivais, absorvendo suas clientelas.

Incrível como, à medida que o filme avança, o que se desenha na tela é uma parábola fiel do mundo dos negócios, em toda a sua selvageria. Refiro-me, sim, ao mundo dos negócios legais. Cidade de Deus, mais que um retrato realista do crime numa favela brasileira, é um retrato expressionista do mercado global. Talvez aí esteja o segredo da universalidade do filme e do livro homônimo que lhe deu origem. Ao contarem com detalhismo e extrema proximidade a história dilacerada de uma aldeia (um subúrbio, uma favela), um lugar humano que só existe naquele lugar histórico exato, um lugar que é único e incomparável, o escritor Paulo Lins e o diretor Fernando Meireles apresentam uma síntese da sociedade inteira, forjam a mais escarrada metáfora do capitalismo contemporâneo. Na guerra dos traficantes – por áreas de influência, por poder, por freguesias, por namoradas, por um futuro – qualquer humano do planeta, submetido que está a um grau de competição sem precedentes para simplesmente sobreviver, vai se reconhecer. A Cidade de Deus, senhoras e senhores, é onde todos vivemos. E morremos. E matamos. E roubamos. E nos drogamos.

A guerra é o subtexto do nosso cotidiano dito civilizado. É o nosso alicerce invisível, mas concreto. A guerra generalizada não é uma particularidade excêntrica das disputas pelas bocas-de-fumo nos morros. Ela é, em graus muito mais refinados e destruidores, a referência das imagens didáticas que habitam as cabeças dos executivos, dos mais gananciosos aos mais subalternos. Veja um desses livros de business que hoje infestam as bookstores dos shopping centers. Eles falam em alvo, falam em logística, falam em tática, em guerra de guerrilha, em surpreender o inimigo; falam de equipes como quem fala de tropa, de pelotão, falam em moral de vitória, em disciplina, em cerrar fileiras, em matar ou morrer. São esses livros que endeusam os killers. Pelas metáforas de que eles se servem, a gente vê que o mundo dos negócios é a sublimação da guerra, mas uma sublimação que potencializa a idéia de guerra.

Nesse mundo sublimado, a guerra corre solta, sangrenta, pérfida. Apenas um pouquinho disfarçada. Zé Pequeno, cru e bruto, surge aí como o ideal inconfessável do executivo. Zé Pequeno é o killer puro, sem mediações da cultura nem polimentos de etiqueta. Sua biografia é uma lição de instinto capitalista (ou deveríamos dizer empreendedor?). Se bobear, alguém vai logo promover sessões de interpretação fílmica de Cidade de Deus num desses cursos de militarizar executivos. Serão sessões curiosas. Terão seu ?foco?, eles dizem assim, foco, na capacidade de liderança, na visão estratégica, isso sem falar em aliança com fornecedores e satisfação do cliente. Se bobear, Cidade de Deus vai ainda virar curso de gestão. Por que Zé Pequeno ergue um império e depois se arrisca a perder tudo? (Não quero entregar o fim do filme.) Uns dirão que o seu erro foi ter quase amado. Foi quase ter tido, por um segundo, um arremedo de coração. Foi ter matado, naquela noite, não mais por amor ao ofício de matar – mas por amor a um rosto de mulher.

Que filme magnífico. Que vida escrota.”