VOTE EM MIM
Afonso Caramano (*)
Caríssimos eleitores, permitam que me apresente. Não sou candidato a nenhum cargo eletivo, embora, ultimamente, se tenha falado muito de minha importância e poder decisório no pleito eleitoral. Há quem prediga que o grande vencedor será aquele que se aliar a mim. Ainda que a modéstia recomende não admitir, a verdade é que, de qualquer forma, com aliados ou não, serei eu o grande vencedor, pela razão de, oficialmente, não disputar as eleições nem ter concorrentes à altura.
Mas não se assustem com tais vaticínios nem se perturbem com o tom altivo. Não se sintam menosprezados ou relegados a simples coadjuvantes do processo. O arbítrio do escrutínio ainda lhes pertence, e o circo está preparado para o espetáculo. Haverá muito palavrório e imagens sedutoras, além de salutares paliativos. Afinal, a participação dos eleitores é imprescindível para que tudo pareça legítimo e natural. E sempre é bom despertar paixões veementes.
Uns reconhecem a minha importância e aproximam-se solícitos, cativantes, até se aproveitam de meus fundamentos, elogiando-me e defendendo minha autonomia; outros, precavidos, apontam defeitos, falhas ou me acusam de impessoal e calculista. Mas todos sabem que não podem conviver sem minha presença ? sou o peso e a medida de todos os seus atos. Quer gostem ou não, mesmo que se neguem a admitir, sou o regulador de todas as relações, a baliza de sua própria consciência, embora isso possa parecer paradoxal.
E não adianta me acusarem de excludente, desigual, iníquo ? trato a todos com igualdade ? os que não estão preparados ou não se adaptam é que se excluem. Aqueles que não estão aptos a entender os meus preceitos ficam à margem. O modelo é igual para todos, e ainda que confiram características inflexíveis e extremistas a mim ? a direção é única. Sou o caminho. Se há falhas, atribuam-nas ao sistema. Reconheçam que nada é perfeito, e que o sistema não é invenção minha. Se há perguntas, façam-nas a si mesmos. Reclamem de si mesmos, não de mim.
Deveriam saber que ninguém sobrevive sem alta dose de amor próprio e orgulho. De minha parte os cultivo sem exageros. Estes deixo para os teóricos que sempre se excedem, se empolgam com minhas promessas, com minhas oscilações. Apenas trabalho em silêncio. São os outros que costumam fazer alarde; depois, se não correspondo às suas expectativas, decepcionam-se e impingem-me a culpa. Porque nunca são culpados de nada. Se há culpa sempre recairá sobre mim. Mas estou acostumado com tais procedimentos, aliás, próprios dos homens. Ora me adulam (quando lhes é conveniente), ora me rechaçam.
Há quem suscite explicações psicológicas, insinue relações espúrias, negócios escusos para justificar os próprios erros, atribuindo-os a mim. Dizem até que eu teria poderes sobrenaturais e que estou sempre em conluio para ludibriar os incautos. Uma inverdade, um demérito, pelo simples fato de se sentirem frustrados com meu relativo humor. Aliás, tudo é resultado de meu humor e racionalismo acerbo. No entanto, vivem a fazer previsões e análises futuras.
Somos unos
Não sou tão volúvel assim ? ou insondável quanto possa parecer. Minha lógica não é dialética nem sou afeito a silogismos. Sou a razão pura e simples, e meu poder provém de meu pensamento hegemônico. Sou produto do desenvolvimento humano ? o fim e os meios. Sou a práxis, o modelo, o pragmatismo das relações. Podem chamar-me de mercantilista ou imperialista ? sem estes atributos não haveria progresso. Não se incomodem com reverências desnecessárias ou falsos pudores. Tenhamos ao menos o brio de admitir nossos atos, de assumir nossas responsabilidades.
Não me tomem por arrogante ou megalômano ? de um modo ou outro todos virão a mim ? sempre vêm. Ninguém pode escapar às minhas leis. Embora não as tenha em um código específico, todos as reconhecem em tratados ou coisa que o valha. Dir-se-ia que mantemos um firme acordo tácito e global. E não venham com desculpas, alegando meu caráter manipulatório. Não sou eu quem os manipula, mas vocês é que se submetem aos meus caprichos. Todos querem desfrutar de meus privilégios, gozar de minhas regalias e status. Não existimos um sem os outros.
Que fique bem claro. Se tenho méritos ? talvez o mais relevante seja o de trata-los com igualdade ? a tão almejada igualdade. O querer em mim é único, todos os desejos sendo múltiplos (porque a sedução também me é inerente) são únicos, todos os sonhos sendo únicos são iguais, todos os valores têm os mesmos parâmetros e tudo que possam querer está em mim. Este o meu poder, o de torná-los únicos e iguais. Este o meu legado. É o que posso oferecer-lhes. Sou o filho e o pai ? a própria criação ? não nos distinguimos mais. Sou o que desejarem que eu seja. Chamam-me de muitos nomes e de nome algum ? o demiurgo do que se convencionou chamar Mercado. A minha voz é a voz de todos vocês ? eleitores ou não. Vocês fazem repercutir a minha fala, fomentam meus anseios, prolongam meus gestos.
Caríssimos eleitores, perdoem-me se me excedo e os submeto a estas delongas. Se o faço é porque sinto-me no direito de fazê-lo. Ungiram-me deste poder ? e os exponho categoricamente para que não restem dúvidas ? de que somos unos.
(*) Funcionário público em Jaú, SP