DEZ ANOS DE COLLOR
Alberto Dines
Agosto, nos anos 50-60, era mês funesto. Para presidentes: em 1954, Getulio Vargas foi levado ao suicídio e, em 1961, Jânio Quadros renunciou.
Sitiado pela (quase) unanimidade de uma mídia que o considerava responsável pela morte do major Rubem Vaz, ao presidente Vargas não restou outro caminho senão o tiro no peito. A renúncia de Jânio, embora classificada pelos historiadores como um golpe branco, desdobrou-se a partir de uma inflamada peroração televisiva do governador do estão estado da Guanabara, Carlos Lacerda.
A partir dos anos 90, na virada do século, o primaveril setembro começou a aparecer como padroeiro do denuncismo mediático. Em 29 de setembro 1992, a Câmara dos Deputados iniciava o processo de impeachment do presidente Collor de Mello, culminando uma audaciosa matéria de capa da revista Veja (publicada em maio daquele ano). Quinze capas depois, numa edição extra o semanário festejava a renúncia do presidente, ocorrida em 29 de dezembro, vinte minutos depois de o Senado abrir sessão para julgá-lo.
Dois anos mais tarde, na noite de 1? de setembro de 1994, na reta final da campanha eleitoral para escolher o sucessor de Itamar Franco (substituto de Collor), o então ministro da Fazenda, Rubens Ricupero, um dos esteios da candidatura situacionista, antes de iniciar uma entrevista com o repórter Carlos Monforte, da Rede Globo, confessou candidamente que não tinha escrúpulos em esconder notícias: “O que é bom a gente fatura, o que é ruim, esconde”. O diálogo e as imagens circularam por um canal de serviço da emissora, captado pela antena parabólica de um telespectador que gravou o vídeo e avisou à Folha de S.Paulo, que transcreveu a infeliz declaração.
Figura respeitada pela competência, a honestidade e a defesa intransigente dos interesses brasileiros, o embaixador Ricupero sofreu um dos mais concentrados e acirrados linchamentos mediáticos, que chegou a atingir sua família. Acossado por uma mídia feroz que queria ver sangue na disputa sucessória, dois dias depois renunciava à pasta da Fazenda. Em seu lugar, assumia o então governador do Ceará que, assim, estreou na cena nacional.
Ricupero foi transferido para a embaixada brasileira em Roma, em seguida representou nosso país em diversos organismos internacionais e, meses depois, era “reabilitado” em grande estilo pela mesma Folha, que passou uma borracha na feroz cruzada anterior e o convidou a ocupar um posto semanal na página 2 do caderno de economia (onde está até hoje).
Na época, a candidatura de oposição tentou explorar o episódio levando o vídeo captado pela parabólica para o horário eleitoral. O TSE barrou. Hoje, oito anos depois, o embaixador Ricupero é um dos nomes cotados para assumir importante função no eventual governo do mesmo partido de oposição.
Por que razão uma gafe na esfera privada teve tamanha repercussão e quase liquidou com a carreira de um funcionário de altíssimo nível?
Porque dois anos antes, a partir da renúncia de Collor, criara-se na mídia a “síndrome da derrubada de presidentes”. Inspirados pela dupla Woodward e Bernstein, do Washington Post, jornais e jornalistas brasileiros passaram a operar com uma idéia fixa: repetir a façanha do Caso Watergate, ocorrido vinte anos antes, que levou à renúncia do presidente Richard Nixon. O sufixo inglês “gate” passou a enfeitar todos o cabeçalhos das denúncias. Começando pelo próprio “Collorgate”, também inventado pela Folha.
Em 1997, quando já se prenunciava o segundo embate eleitoral entre os dois principais candidatos do pleito anterior, a TV Bandeirantes e a mesma Folha, com base em denúncias de um ex-militante do PT, tentaram criar um escândalo envolvendo o presidente de honra do partido. Este Observatório condenou candentemente a manobra [remissão abaixo].
Data daquela época o grande surto denuncista, praga corruptora do jornalismo investigativo e que tantos males causou à credibilidade da nossa imprensa: a divulgação de “grampos” telefônicos (legais ou ilegais) que os veículos recebiam de fontes (nem sempre honradas) e transcreviam sem qualquer esforço paralelo de apuração e investigação [veja abaixo].
Adotou-se como norma primeiro atirar e, depois, perguntar quem vem lá. E isto de forma tão rotineira, intensa e irresponsável que animou magistrados de diferentes instâncias a embargar previamente a divulgação de fitas, estabelecendo no país um curioso e pernicioso sistema censóreo sustentando pelo próprio Judiciário em flagrante oposição a alguns fundamentos da Carta Magna [mais remissões abaixo].
O próprio início do Caso Collor aproxima-se perigosamente da esfera da irresponsabilidade, porque o primeiro depoimento de seu irmão Pedro foi publicado com enorme alvoroço, sem qualquer suporte reporterístico ou investigativo. Somente três semanas depois é que o semanário concorrente IstoÉ conseguiu produzir a primeira evidência e provar que as suspeitas eram fundadas.
Caso clássico de pré-julgamento. Felizmente, bem-sucedido. E se não fosse?
A grande verdade é que o “escandalismo” transformou-se em arma política. Entrou para o arsenal dos que buscam o poder ou querem confrontá-lo. E isto não apenas no Brasil. Mas entre nós, graças à ausência de instituições mais sólidas, deixou de ser acidente isolado para transformar-se em fenômeno corriqueiro. Hoje é matéria incorporada à ciência política.
Em nosso caso, o uso e abuso do escândalo acabou por cansar. A reiteração mediática criou um bumerangue, perigosa imunização. As denúncias não “colam”.
Isto é ainda mais grave.
Leia também
Artigos condenando as denúncias contra Lula na campanha eleitoral de 1998, parte da síndrome que acomete a mídia em tempo de eleição
Links para seleção de matérias publicadas no OI sobre dossiês “jornalísticos” e grampos ilegais:
Artigos sobre a censura prévia imposta pela Justiça à revista Carta Capital a pedido do candidato Anthony Garotinho, com o objetivo de impedir a divulgação de fitas prejudiciais a sua imagem, pendenga com O Globo por motivo semelhante e posição do Supremo Tribunal Federal sobre o caso.
Comentários sobre o livro A síndrome da antena parabólica: ética no jornalismo brasileiro, de Bernardo Kucinski, que põe o dedo na ferida do denuncismo irresponsável
Matéria do Caderno Idéias, do Jornal do Brasil (28/9), sobre a onda de escândalos políticos que se repete a cada eleição