A idéia de uma América Latina democrática, estável e harmoniosa está se dissipando rapidamente. As instituições e a legislação coadunam-se apenas formalmente com o design do Estado de Direito, o calendário eleitoral segue inalterável, mas as pressões para drásticas alterações constitucionais não conferem com alguns princípios republicanos essenciais – tais como o equilíbrio entre os poderes e a alternância no poder. Embora a retórica continue democrática, ela assume um caráter suspeito diante de ações intempestivas e intimidadoras. Sobretudo contra a imprensa.
A invasão das instalações do jornal Clarín, em Buenos Aires, a pretexto de uma auditagem fiscal, enquadra-se no clima de coação e ameaças que começaram na Venezuela e já ganharam adeptos no Equador e Bolívia. As explicações malandras e as visíveis contradições das autoridades portenhas desnudam as intenções da dupla presidencial, Néstor e Cristina Kirchner: reformar na marra a estrutura do sistema midiático.
É isto que interessa examinar. Em primeiro lugar é indispensável registrar que a estrutura da mídia argentina foi montada pelos governos anteriores, fruto de uma partilha de interesses. Ao peronismo – e suas inúmeras facções – não desagradava o atual desenho, tanto que não o alteraram. Servia perfeitamente aos projetos dos diferentes grupos empresariais que lidavam com a mídia, inclusive aos que tinham vocação e conexões políticas. Agora se descobre que o modelo é obsoleto, imperfeito e tenta-se rapidamente mudá-lo antes da instalação do novo Congresso fatalmente dominado pela oposição e cenário para o confronto sucessório em 2011.
Projeto de poder
É preciso igualmente lembrar que apesar dos altos padrões de qualidade da mídia argentina ela é absolutamente impermeável ao debate sobre os temas que lhe dizem respeito. Jornais não se mostram inclinados a incentivar discussões capazes de colocar qualquer tipo de reserva ou questionar o seu desempenho, procedimentos ou organização. Os jornalistas, por outro lado, não se animam a estabelecer um território autônomo onde, com os respectivos públicos, possam estabelecer alguma alternativa de diálogo.
Este distanciamento e esta arrogância já existiram no Brasil e foram em parte vencidos. Mas quando nosso governo e nossos grupos de mídia, sobretudo eletrônica, se acertam para ultrapassar algumas barreiras formais, o rolo compressor também funciona. Caso do Conselho de Comunicação Social, cuja existência efêmera (um pouco mais de dois anos) é uma clara demonstração das convergências em torno das quais se criou o sistema midiático latino-americano.
A desastrada operação dos Kirchner contra o Clarín lembra a desastrosa Guerras das Malvinas em que os generais tinham uma vaga noção dos objetivos da campanha, jamais pensaram na reação e na capacidade dos adversários. Conhecemos os resultados.
Alguém precisa dizer aos Kirchner que a discussão sobre um novo modelo midiático ou audiovisual, deve ser empreendida com os mesmos cuidados utilizados nas discussões sobre a reforma política: sem ceder a qualquer tentação totalitária. Este é um jogo que não pode ser misturado com um projeto de poder. A América Latina perdeu sucessivas décadas iludida pelo voluntarismo e pelo caudilhismo. A ‘Década Infame’ da Argentina (1930-1940) foi reprisada ao longo da segunda metade do século 20 e início do 21.
Menos estresse
A mídia latino-americana sofre dos mesmos vícios das sociedades que as criaram e às quais servem. Impossível desconectá-las. O sonho de desconcentrar rapidamente o sistema de comunicação social – partilhado por meia dúzia de estadistas latino-americanos – deverá acontecer com naturalidade. Nunca por imposição (ditaduras desgastam-se mais rapidamente do que as democracias).
Quando os legislativos forem confrontados com a necessidade de se qualificar para sobreviver, um novo mapeamento da mídia será inevitável. No caso brasileiro, a convocação de grandes debates, como a próxima Conferência Nacional de Comunicação, pode criar pressões reformadoras legítimas e eficazes sobre as forças políticas.
Por outro lado, as conseqüências da crise financeira internacional – que erroneamente imagina-se superada – vai estimular uma fragmentação saneadora. Os grandes conglomerados serão obrigados a repartir-se, forçados pela própria escala e pela diferenciação das tecnologias. Conteúdo não é uma commodity, é um conjunto de commodities processadas separadamente.
Os Kirchner e seu círculo de consultores, entre os quais estão brilhantes jornalistas, deveriam repensar suas doutrinas, agendas e estratégias. O confronto com a mídia só aumentará o seu desgaste. A co-habitação produz menos estresse. Foi ela, aliás, a responsável pelo esquema que os levou ao poder.