DEVER DE CASA
Diógenes Santos (*)
Numa manhã ensolarada, um grupo de neandertais e outro de australopitecos trocavam grunhidos com a finalidade de chegar a um denominador comum sobre as importantes questões sociais e antropológicas que ocasionaram mudanças abruptas em sua realidade "pré-histórica".
? "UuuuaaaaammmmHHHH", disseram os neandertais.
? "Oooolllluuuummmaaannaaauueeeeêêê", discordaram veementemente os australopitecos.
? "Muuuuaaannnncckkkkoooo", insistiram os neandertais.
? "Reeeellllasvicovch", praguejaram os australopitecos.
Até que chegou o homo erectus e disse:
? Não é nada disso. Tá tudo errado!
Surgia naquele momento um código universal: a linguagem oral, que aos poucos foi sendo melhorada, organizada em convenções e padrões de estética e gramática.
Foi então que, há aproximadamente 140, anos surgiu o lead, que se tornaria parte obrigatória de qualquer discurso, seja ele verbal, escrito ou mesmo imaginário. Representou uma grande evolução porque tornou a escrita mais organizada, oferecendo ao leitor uma síntese do texto mediante a resposta a cinco perguntas básicas: "Quem?", "Quando?", "Onde?", "Como?" e "Por quê?"
Com o passar do tempo, o lead transcendeu do status de mera função textual e ganhou vida própria, tornando-se absoluto, intocável. Uma espécie de deus que precisa ter sua ira aplacada com o sacrifício da criatividade e da originalidade do jornalista. A maioria desses profissionais da notícia converteu-se a essa nova filosofia, introduzida pela escola americana, sacramentada no Brasil pelo "padrão Globo de jornalismo" e absorvida pelos demais meios de comunicação.
Chegamos a um ponto tal que iniciar uma matéria sem o lead é impensável, uma blasfêmia contra a "sacra" estrutura do texto jornalístico. Os jornalistas passaram a ser escravizados pelo que deveria estar a sua mercê, manipulados pela própria criação, que já era encomendada com moldes pré-definidos, com começo, meio e fim. Inegavelmente o lead trouxe uma organização indispensável, mas com ela uma previsibilidade novelesca.
Sejamos Van Goghs
Este é um problema que se inicia na escola e intensifica-se a partir do ensino médio. Os professores de Literatura enaltecem a métrica decassílaba de Camões, o romantismo saudosista de lorde Byron e Gonçalves Dias, ao mesmo tempo em que Gregório de Matos, o popular Boca do Inferno, e Olavo Bilac, notável poeta parnasiano, passam em branco por terem ousado transgredir os padrões convencionais.
Para os pensam assim é bom lembrar que Clarice Lispector e Machado de Assis não eram considerados bons cronistas em seu tempo, e Carlos Drummond de Andrade não empolgava os críticos até a metade de sua carreira, sendo reconhecido como maior poeta de sua época somente alguns anos depois de sua morte. Tudo porque ousaram romper os paradigmas.
Meu objetivo não é introduzir a anarquia generalizada aos textos, mas sim apelar aos meus futuros colegas para que não abram mão de dois diferenciais do bom jornalista: sensibilidade e criatividade.
Assim como em outros tipos de arte, a escrita oferece duas opções: à semelhança de Van Gogh, primeiro pintor a representar sentimentos através das cores, algo inusitado em sua época, o jornalista pode libertar-se quando possível das amarras estruturais, deixando fluir um texto diferenciado ou conformar-se com o mundo monocromático do formalismo e fazer o possível com o espaço pouco flexível que lhe derem. Sejamos Van Goghs.
(*) Aluno do 3? ano de Jornalismo do Unasp