Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

“Le métallo” e a imprensa francesa

COBERTURA EUROPÉIA

Leneide Duarte, de Paris

Parece Copa do Mundo quando uma equipe nacional é desclassificada. Os torcedores escolhem outra para depositar nela novas esperanças e continuam acompanhando os jogos.

É mais ou menos o que se passa agora com a esquerda francesa. Depois da “desclassificação” de Lionel Jospin, em 21 de abril, e do arrependimento de ter apoiado Jacques Chirac no segundo turno, a esquerda acompanha de longe as eleições no Brasil e não disfarça a torcida por Lula. Uma espécie de gozo por procuração, depois do horror do voto útil para “salvar a República” da ameaça Jean-Marie Le Pen. A direita, por sua vez, lança um olhar atento enquanto a esquerda torce.

Nas conversas, apesar do entusiasmo, os franceses de esquerda expressam o temor de que Lula não consiga fazer as reformas necessárias, por diversos motivos conjunturais, ou mesmo por um golpe à la Salvador Allende, como no Chile, em setembro de 1973.

Esse debate e o interesse que o fenômeno Lula desperta não poderiam deixar de estar espelhados na imprensa. Tanto a simpatia pelo “ex-métallo” está discretamente expressa na imprensa de esquerda como os jornais Le Monde, Libération e L?Humanité e na revista Le Nouvel Observateur quanto o temor de um governo de esquerda no Brasil também pode ser percebido imprensa de direita ? como Le Figaro e o semanário L?Express. A objetividade do jornalismo, na qual só os tolos acreditam, não é uma preocupação da imprensa francesa de uma maneira geral.

O semanário Courrier International, que circulou com data de 3 a 9 de outubro, tinha a foto de Lula na capa e a pergunta “Brésil, enfin à gauche?” (Brasil, enfim à esquerda?). Em 8 páginas, a revista examinou o fenômeno Lula através de notícias publicadas na imprensa do Brasil e de outros países. Logo na matéria que abre o especial Lula, em páginas com tarja verde, o jornalista Abel Gilbert, do jornal El periódico de Cataluña, apresenta o PT como o “partido de esquerda mais importante do mundo ocidental”. Nem os petistas ousariam tamanha ênfase.

A verdade é que Lula empolga corações e mentes na França, onde ele esteve em abril deste ano, para animar um comício de Jospin, em Bordeaux, onde fez um discurso entusiasmado defendendo o candidato do Partido Socialista. O artigo do jornalista Ernesto Ekaizer, do El País, transcrito no Courrier, lembra que Lula esteve na França para apoiar Jospin. Como o ex-primeiro ministro que, piscando um olho para o eleitorado mais conservador, declarou que seu programa não era socialista, Lula também se afastou de muitos traços radicais do seu partido. Ao contrário de Jospin, esse pragmatismo pode ser sua salvação?

O artigo de César Benjamin ? “Por que a esquerda vai fracassar” ? transcrito pelo Courrier da brasileira Caros Amigos é o melhor texto de todos os que a revista selecionou. Bem escrito e bem pensado. Mas tomara que César Benjamin esteja enganado.

“Desespero de causa”

Para não fugir à fama dos títulos de efeito, sempre que possível com um trocadilho genial ou uma boa piada, o Libération deu na primeira página da edição de terça-feira (8/10) o resultado final das eleições brasileiras: “Lula ganha um segundo turno”.

Peremptório, o jornal de direita Le Figaro saiu em 6/10, dia do primeiro turno, com uma grande foto de Lula e sua mulher na primeira página e o título: “Brasil: a esquerda radical às portas do poder”. Ainda na primeira página, o jornal mais lido pelos empresários franceses informava que o Brasil “não teve um governo de esquerda desde a instauração da República, em 1889”. Le Figaro dedicou duas páginas internas a explicar o Brasil e o “métallo” a seus leitores. O voto eletrônico, no qual os candidatos recebem um número ? “como numa loteria” ? e o peso insuportável da dívida pública eram apresentados em outras retrancas. Serra, Ciro Gomes e Garotinho tinham direito a uma foto e um pequeno texto de um parágrafo. José Serra era apresentado como o preferido dos meios empresariais.

O Le Monde, o jornal dos intelectuais franceses, deu, em 2/10 (quarta-feira), uma página inteira sobre Lula, com chamada na primeira página. Nessa edição, cuja manchete da página 2 dizia “Com Lula, a esquerda brasileira chega aos degraus do poder”, diversas retrancas mostravam as chances do presidenciável, contavam a história do PT e comentavam o programa dos candidatos. No perfil de José Serra, o jornal assinalava que “se apresentar como candidato da ?mudança na continuidade? é um verdadeiro número de equilibrista”.

No dia 4, Le Monde analisava o crescimento da candidatura Lula entre os empresários, apesar de a maioria ainda estar do outro lado. O texto começava citando a frase de Mário Amato, de 1989, segundo a qual, caso Lula fosse então eleito, 800 mil empresários deixariam o país. Amato garantiu ao jornal que hoje já não diria o mesmo. Segundo a enviada especial do Le Monde Babette Stern, mais de mil empresários declararam apoio ao candidato do PT. Mas o jornal não deixa de publicar opiniões de empresários anti-Lula, que preferem o candidato oficial. José Serra é apresentado como alguém que “apesar de não ter carisma e ter feito uma campanha sem empolgação, soube se distanciar da política do governo Cardoso, que tem baixo nível de aprovação nas pesquisas”.

Na edição de 6-7/10, Le Monde publicou novamente uma página inteira sobre as eleições brasileiras, com chamada e foto de Lula na capa. Dentro, um mapa do Brasil explica ao leitor tudo sobre a “décima primeira potência mundial que pela primeira vez em 103 anos de história republicana pode estar prestes a elevar à magistratura suprema um brasileiro que não pertence à elite social do país”. O professor da Fundação Getúlio Vargas do Rio, Istvan Kasznar, diz que Lula é mais conhecido na Europa que em alguns países da América do Sul, e conclui: “Ele prefere a França e seus amigos do Partido Socialista aos países vizinhos”. E prevê : “O patronato brasileiro, que parece ter-se conformado com ele em desespero de causa, com certeza não vai facilitar a vida de Lula”.

Depois da vitória no primeiro turno, Le Monde voltou a consagrar uma reportagem ao tema, mostrando como a imprensa brasileira noticiou as eleições.

Torcida declarada

Fazendo jus a sua inclinação mais à direita, L?Express publicou na semana seguinte ao primeiro turno uma grande reportagem cujo título era “Brasil, uma vertigem chamada Lula”. Nela, o ex-presidente do Banco Central Gustavo Franco dizia: “Nós brasileiros estamos inquietos. E esta inquietude local multiplica-se no estrangeiro”.

“Mesmo se um célebre sociólogo brasileiro, Hélio Jaguaribe, lembre na imprensa a possibilidade que Lula seja vítima da ?síndrome de Allende?, isto é, seja superado por sua extrema esquerda, como foi o presidente do Chile, por movimentos sociais incontroláveis ou ocupações de terras, o líder do PT pode também convencer que ele será o Tony Blair ou o Felipe Gonzales do Brasil”, dizia ainda o L?Express.

Já o Libération, antes do primeiro turno, fez boas e bem apuradas matérias sobre as eleições com muito espaço para Lula e quase nenhum para seus adversários, mostrando as metamorfoses do “barbudo” e dizendo que Lula sempre encarnou a esperança de maior justiça social. “Mas essa esquerda antes irredutível fez alianças eleitorais inéditas com a direita.” E o texto explicava a aliança com o direitista Partido Liberal.

No dia seguinte ao primeiro turno, Libé mostrava como a dívida brasileira seria um obstáculo às mudanças. Luis Miotti, professor de economia na Universidade de Paris XIII é categórico: “O país se encontra hoje à beira do precipício”. O jornal do dia seguinte entrevistou alguém que cunhou uma frase de efeito para explicar o sucesso do PT e de Lula no primeiro turno: “Os brasileiros são conservadores. Querem mudança mas não revolução. O PT compreendeu isso”. A frase, obviamente, virou olho no texto da matéria.

Quanto ao Journal du dimanche, um semanário que só circula aos domingos, o título na primeira página de 6/10, com foto de Lula, parecia torcida : “Lula, o métallo que le Brésil va élire” (Lula, o metalúrgico que o Brasil vai eleger). E lembrava que, se houvesse segundo turno, ele viria como um presente de aniversário: Lula faz 56 anos no dia 27 de outubro. A manchete de dentro era tão partidária quanto o título da capa: “Brésil, c?est l?heure de Lula” (Brasil, é a hora de Lula) ? e a matéria dizia que ele tinha chance de já ganhar no primeiro turno. Para isso, “Lula cortou a barba, veste-se com elegância e prometeu respeitar o compromissos internacionais do Brasil, inclusive com o FMI”.