EFEITO ENÉAS
Pedro Eduardo Portilho de Nader (*)
Permito-me discordar do prestimoso jornalista Luis Weis ? cujo trabalho indubitavelmente merece o maior reconhecimento ? no que se refere às suas considerações sobre o chamado “Efeito Enéas” [veja remissão abaixo]. Concordo com Weis em que todo sistema eleitoral tem suas imperfeições, e que talvez o caso Prona em São Paulo não valha a reforma do sistema proporcional. Sabemos que a votação expressiva de Enéas implicou que a Câmara dos Deputados venha a abrigar, na próxima temporada, seis deputados federais de um partido sem programa ? além da construção da bomba atômica, única proposta apresentada pelo puxador de votos do Prona em todos esses 13 anos em que ele aparece na cena política brasileira.
Não há novidade no fato de um candidato puxador de votos de seu partido proporcionar a ocupação de vagas por candidatos menos votados; essa é a própria idéia implícita no sistema proporcional: dar maior importância aos partidos. A primeira falha no sistema proporcional aplicado no Brasil é a falta de unidade e consistência dos partidos. Isso também já foi sobejamente analisado e criticado na imprensa e mesmo por políticos ao longo dos últimos anos. Seria o amadurecimento da própria democracia no país que tornaria os partidos mais consistentes, o que levaria anos de processo democrático. Convém ressalvar, a julgar pelas alianças políticas neste 2002, o amadurecimento está cada vez mais longe, paradoxalmente.
Então, à primeira vista, o caso Prona não merece que se questione o sistema proporcional, como ressalta Luis Weis em seu artigo. Ponto final, se se tratasse tão somente da suposta legitimidade do sistema proporcional. Entretanto, a colunista Dora Kramer, logo após as eleições de 6 de outubro, escreveu, sobre o “fenômeno Enéas”, em sua coluna observações que não apareceram no resto da imprensa e que mereceriam mais discussão (não obstante o equívoco da colunista sobre a eleição de Churchill na Inglaterra logo depois da Segunda Guerra, corrigido no dia seguinte.)
“O que dizer do princípio da representação diante de tal barbaridade?”, escreveu ela. “No primeiro momento a tendência é culpar o sistema proporcional (…),” que. segundo a colunista, permite que gente sem voto acabe tomando o lugar de quem teve voto. Entretanto, a questão reside nos eleitores de Enéas, que teriam votado no puxador de votos como forma de protesto. Como observa Dora Kramer, ao voto no factóide deram o nome de protesto: “(…) Protesto contra o que se, além do uso da bomba atômica como forma de afirmação da soberania nacional, o senhor Carneiro jamais esboçou uma idéia com começo, meio e fim?” Então, os que quiseram protestar, é de se supor, contra políticos ruins acabaram dando seis vagas a políticos dos quais não se espera nada de positivo ? para dizer o mínimo.
Além disso, um agravante: o desrespeito mostrado por esses políticos na manobra de burla clara à lei: três dos deputados eleitos (somados, menos de 1.500 votos) deram como domicílio eleitoral o escritório do Prona em São Paulo, já que não são residentes no estado, como exige a lei, que é aberta e desavergonhadamente burlada há muitos anos, como no caso do ex-presidente Sarney, que é do Maranhão e vem sendo eleito senador pelo Amapá. O mais grave é que a única suposta punição que poderão sofrer os pronistas burladores é a impugnação de suas eleições, ou seja, apenas não serão empossados, o que, certamente, é pouca punição (se realmente pode ser considerado punição) para quem dolosamente fere a lei. Qual a punição pela burla intencional da lei?
Voltando ao cerne da questão: os eleitores, por protesto, votam no pior tipo de político que encontram. (Isso, em parte, pode ser culpa do voto eletrônico, que não permite votos no macaco Tião, do Zoológico do Rio, como já ocorreu, ou no “Seu Creysson ? ele é ignorante, você também/ele não vai ser o primeiro burro/ a governar esse trem”, do programa de televisão, como teria ocorrido agora). O cerne da questão, estou convencido, reside em grande parte no papel que a imprensa desempenhou na relação eleitores-imprensa-candidatos. A imprensa ajudou a fomentar o fenômeno Enéas, porque se omite (ou melhor, desinforma) ao igualar votos em branco e votos nulos.
Defeitos a corrigir
Devido ao tipo de jornalismo que se tem cometido nas últimas duas décadas, confere-se extrema importância às pesquisas de intenção de voto ? tema de que Alberto Dines tem apropriadamente tratado há anos (como em “O pêndulo de Macunaíma”, remissão abaixo, para citar apenas o mais recente). Voto em branco é considerado igual a voto nulo. A mensagem implícita é que votar em branco é ser contra a democracia. No entanto, é preciso diferenciar o que, efetivamente, é muito diferente. O voto nulo é, basicamente, voto contra o sistema ? político, eleitoral, no limite, contra o sistema democrático. (Além disso, o voto nulo pode ser simplesmente o voto anulado porque a pessoa não sabe votar. É fácil entender isso no voto escrito, mas também pode ocorrer no voto eletrônico, quando a pessoa anula por não conseguir votar como o pretendido).
O voto branco é, basicamente ? e isso, ressalte-se, é totalmente diferente do voto nulo, sendo mesmo seu oposto ? um voto a favor do sistema, mas em que se declina de escolher porque não é capaz de escolher (porque não prefere nenhum candidato aos demais). O voto branco se aplicaria quando o eleitor considera todos os candidatos bons ou todos ruins. Voto de protesto pode ser contra o sistema (voto nulo). Mas pode ser também de concordância com o sistema, e de protesto especifico contra a falta de alternativas que o eleitor considere razoáveis (voto branco).
Estranho mesmo é o pretenso voto de protesto no Prona. Como sugeriu Dora Kramer, que raio de voto de protesto é esse que vota por protesto e elege candidatos assim? Votando maciçamente no macaco ou no personagem do Casseta e Planeta não havia o perigo de elegê-los! Assim, é preciso considerar a atuação da imprensa antes da eleição. Dada a condição de Enéas como candidato, era mais do que previsível que ele poderia (para não dizer deveria) ter uma votação expressiva para deputado federal e, portanto, era previsível a formação de bancada do Prona na Câmara dos Deputados, como efetivamente aconteceu. A imprensa não tratou disso, não alertou para o efeito de uma votação no puxador de votos, não apresentou os candidatos que seriam eleitos a reboque de Enéas. Parte da imprensa só fez depois da eleição o que a imprensa como um todo deveria ter feito antes da eleição. E estabelece-se assim o pitoresco, ou a perplexidade.
Portanto, é fraca a análise do chamado efeito Enéas em função da crítica ao sistema eleitoral. O efeito Enéas não se resume ao sistema eleitoral. O que se deve é exigir democraticamente que se corrijam os defeitos da cobertura jornalística, que conspirou (certamente, sem intenção, mas ainda assim com culpa) para esse resultado.
(*) Bacharel em História (Unicamp) e doutor em Filosofia pela FFLCH-USP
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