ECOS DA CAMPANHA
Fernando Gasparini (*)
Paulo Maluf, Leonel Brizola, Orestes Quércia, Fernando Collor e Jorge Bornhausen não conquistaram cargos eletivos no pleito de 2002, assim como muitos outros candidatos que tiveram participação preponderante na história política do país nas últimas décadas. Os jornais e sua tropa de choque de especialistas, que servem, em boa parte das vezes, para legitimar, em termos acadêmicos, idéias do senso comum, apressaram-se em enfatizar o "sentimento de mudança nacional". Corruptos como Maluf e Celso Pitta não conquistariam mais, como fizeram em um passado recente, o voto do eleitor. Da mesma forma, "retrógrados" como Brizola estariam de uma vez sepultados pelas urnas eletrônicas. Analistas de esquerda não titubearam em afirmar que vivemos um desejo de substituição dos nossos representantes, daí o expressivo desempenho do Partido dos Trabalhadores (PT), tanto no Legislativo quanto no Executivo.
Podemos, sem dúvida, afirmar que houve uma renovação nos quadros políticos, observe-se que no Espírito Santo a Assembléia Legislativa receberá 20 novos deputados estaduais, que estréiam pela primeira vez como parlamentares de nível estadual ou que retornam depois de alguns anos sem participação na casa. Trata-se de uma mudança significativa, considerando que o legislativo capixaba é formado por 30 cargos eletivos. No entanto, o que explicaria as vitórias de Antônio Carlos Magalhães, José Roberto Arruda e Jader Barbalho? Os três renunciaram ao cargo de senador nos últimos meses, todos envolvidos em escândalos de corrupção. A "velha geração" está de volta, com um mandato novinho em folha para os próximos oito anos. Não se pode também deixar de levar em conta que o grande vitorioso, Luiz Inácio Lula da Silva, ganhou o primeiro turno das eleições acompanhado dos setores dito "retrógrados" da política, representados, entre outros, por Orestes Quércia e José Sarney. Para o segundo turno, Roseana Sarney e ACM começam a ensaiar seus apoios para o candidato petista.
A conscientização do eleitorado pode ser apontada como um fator responsável pela eleição de novos políticos. No entanto, não podemos cair em uma idéia otimista que pode guardar em si um raciocínio relativamente simples e quase que fantasioso. O voto, isoladamente, não é indicativo para tal conscientização. Pelo que se sabe, não houve, durante toda a década de 90, nenhum movimento social ou mesmo institucional que representasse uma nova consciência política. Ao contrário, os sindicatos esvaziaram-se, o Movimento dos Sem-Terra, talvez o maior movimento social do país, perde a cada dia sua credibilidade e as escolas públicas simplesmente faliram em termos de qualidade do ensino.
Por outro lado, crescem as organizações não-governamentais, as associações comunitárias e os investimentos em ações sociais da iniciativa privada, utilizadas posteriormente para o marketing social das empresas. Mas serão esses três fatores representantes de uma conscientização política? Será que os mais de dez milhões de votos conquistados pelo candidato eleito ao Senado Aloísio Mercadante são provenientes, direta ou indiretamente, de eleitores com participação política em algum órgão social? Não devemos deixar de notar a expressiva votação de Lula nos grotões desse país, onde não há água encanada, esgoto e energia elétrica, nem muito menos ONG?s, comunidades de bairro e empresas-cidadã.
Em um ensaio sobre as campanhas políticas, publicado no livro A Sociedade Refletida (Educ/Pontes, 1992), Landowski chama a atenção para uma nova forma de sociabilidade na política, em que as encenações publicitárias e todo seu aparato de técnicas e métodos invadem as propagandas eleitorais, numa hibridização entre esses dois campos sociais. Um cartaz de 1965 mostra o então candidato à presidência da França, De Gaulle, sendo aclamado por eleitores, que estendem à mão ao general. No canto inferior à esquerda, está o povo e, no canto superior à direita, está De Gaulle. A distinção entre eleitores e candidato é nítida. Trata-se de dois sujeitos distintos e, para falar em termos greimasianos, participantes de um "percurso narrativo". Já o cartaz de 1986 apresenta o então candidato às eleições, Jacques Chirac, herdeiro de De Gaulle, abraçado com uma criança. Não há relação gráfica de superioridade e inferioridade, ambos estão no mesmo nível. O abraço faz com que os dois sujeitos se confundam "virtualmente numa só identidade". Com De Gaulle, os eleitores são levados a crer que ele é o melhor candidato. Já no caso de Chirac, os eleitores são convidados a ser o candidato, a experenciá-lo corporalmente. Se esses dois exemplos não nos fornecem o corpus necessário para criar generalizações a respeito do comportamento político na atualidade, certamente nos dão pistas para uma nova forma de relação estabelecida entre eleitor e candidato, pautada pelo contrato pessoal entre ambas as partes. Essa nova relação nos parece óbvia quando analisamos os discursos eminentemente publicitários. Ao contrário dos reclames da década de 70, quando um produto era apresentado aos consumidores pelas suas vantagens sobre os demais, a propaganda atual traz sempre em seu bojo um componente emotivo. Não se vende somente um sabonete, mas também o desejo de ser uma mulher bonita e sensual. Da mesma forma, não se vende um carro, mas o desejo masculino de conquistar mulheres. A relação entre consumidor e produto não é mais a de querer-ter, mas sim a de querer-ser algo.
"Ao lado do esquema publicitário que consistia em propor ?objetivamente? bens e serviços a possíveis compradores, considerados competentes nas decisões relativas a seus próprios atos de compra, vemos aparecer uma fórmula alternativa que, também nesse caso, tende a uma alienação de suas capacidades de decisão." (Landowski, 1992)
Talvez os candidatos eleitos em 2002 no Brasil tenham sido aqueles que souberam incorporar melhor uma identidade direta com o eleitor. Para além das propostas políticas, que colocam em campos opostos um sujeito apto a realizá-las e outro apto a autorizá-las por meio do voto, a nova forma de sociabilidade, contaminada pelo discurso publicitário, pretende unir, pelo discurso, os dois sujeitos. Pela lógica desse contrato, a competência do eleitor é diminuída, uma vez que ele não escolhe as propostas do candidato e sim o candidato por si só, que implicitamente assume-se capaz de realização de mudanças não pela sua competência política, mas sim pelo compromisso que assume com quem o escolhe. Não são gratuitas as fotos de família divulgadas pelos sites da campanha (remissão abaixo), nem as entrevistas com os pais, mulheres e filhos de candidatos às eleições, numa estratégia de aproximação com o leitor através do espaço privado, da identidade pessoal, em contraponto ao espaço público, político por sua própria natureza. O que é comum nas campanhas de hoje em dia não o era há algumas décadas. Landowski lembra da primeira vez em que um político aparece sorrindo nas eleições presidenciais francesas, em1965. Vemos, no pleito atual, imagens de José Serra, candidato à presidência, dançando um samba, sendo benzido por um padre famoso ou ao lado de artistas. Lula também aparece ao lado de artistas e intelectuais de apelo popular, além de apresentar em seus comícios sua mulher, na tentativa de criar identidade com o público feminino.
As questões políticas da campanha não são necessariamente esvaziadas pelo discurso publicitário, mas notamos que aquelas servem de ancoragem a esta. Em outras palavras, o público (propostas políticas, composição de alianças etc.) é utilizado para legitimar o privado (cenas de família, história de vida etc.) e vice-versa. Vale a ressalva de que os candidatos vencedores não são necessariamente os que investem maciçamente em equipes de marqueteiros, mas os que assumem o discurso da pessoalidade e seus conseqüentes contratos simbólicos com o eleitor.
Essa é, sem dúvida, uma das reflexões que merecem ser levantadas ao analisarmos as eleições atuais. O discurso, além de deixar pistas sobre quem o realiza, também cria relações sociais com quem o aceita. Cabe perguntarmo-nos: até que ponto a publicidade e o marketing são responsáveis pelas novas formas de contrato político? Não estaremos vivendo, numa sociedade midiatizada, novos tipos de relações entre os atores sociais, pautadas menos pela competência do que pela identidade pessoal? Um sujeito autônomo, capaz de escolher, entre tantos produtos, o que lhe for mais conveniente, pode estar dando espaço a um sujeito normatizado, em que a capacidade de escolha já não lhe é mais delegada. Em conseqüências extremas, poderemos colocar em cheque o sistema democrático como mola propulsora do desenvolvimento político de uma nação.
(*) Estudante de Jornalismo da Universidade Federal do Espírito Santo
Referências bibliográficas:
LANDOWSKI, Eric. A Sociedade Refletida: Ensaios de Sociossemiótica. São Paulo: Educ/Pontes, 1992.
GASPARINI, Fernando. Estratégias Discursivas sob o Prisma Semiótico: Análise do Jornal Impresso enquanto Totalidade Significativa. Monografia apresentada para conclusão do curso de Comunicação Social/ Jornalismo, Ufes, 2002.
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