GLOBOPAR & TV PAGA
Nelson Hoineff (*)
O estado concordatário da Globopar, admitido oficialmente na tarde de segunda-feira [28/10], evidencia a crise no setor de TV por assinatura no Brasil e a falta de flexibilidade dos players do mercado para resolvê-la a tempo.
Há pelo menos uma peculiaridade nessa crise: todas as partes envolvidas estão perdendo. Os operadores, as programadoras, as redes de TV por assinatura e sobretudo os assinantes.
Os operadores, capitaneados pela NET ? cujas ações caíram 98% este ano e alavancaram um endividamento de 2 bilhões de dólares da holding ?, há muito tempo sinalizam o esgotamento. A base de assinantes empacou em pouco menos de 3,5 milhões, contrariando expectativas de crescimento que chegavam a 14% ao ano. As concorrentes no mercado de operação satelital de banda Ku (Sky e DirecTV) ensaiam há dois anos uma fusão, que não acontece por falta de interesse dos investidores externos.
Os mercados de cabo e MMDS (liderados pela NET e TVA) chegaram a encolher nos últimos dois anos. As programadoras brasileiras amargam prejuízos e as redes também. As programadoras estrangeiras dizem que não estão recebendo das operadoras e todas elas, em conversas realizadas em outubro com dirigentes da Associação Brasileira de Produtores Independentes de Televisão, declararam-se sem dinheiro para investir no Brasil. Os produtores brasileiros, por sua vez, não conseguem emplacar sequer a regulamentação da chamada "lei dos 3%" ? uma conquista da Ancine que, em tese, faz com que as programadoras invistam 3% de seu faturamento na produção de conteúdo nacional. A aplicação da lei, porém, mergulhou no lodo burocrático.
E os assinantes? Os assinantes pagam meio salário mínimo por um pacote básico que os premia com a repetição de canais, a falta de flexibilidade na montagem da programação e a ausência grotesca de produto brasileiro independente até mesmo em lineups que se aproximam dos 200 canais.
Filme de horror
Como toda a estrutura brasileira de TV por assinatura foi construída com base nos operadores, e não nas redes de TV ? um erro do qual o mercado acabaria se arrependendo, como acontece agora ?, a crise de um operador é suficiente para desmontar toda a atividade. É uma agressão aos padrões mínimos de bom senso e uma afronta ao bolso do consumidor brasileiro que isso não tenha sido percebido antes.
O foco nos operadores como núcleo do mercado tem origem na resignação à estrutura monolítica da televisão brasileira e na falta de uma mentalidade competitiva decorrente disso. Essa postura já era responsável pela baixíssima qualidade da TV aberta no Brasil e pela permanente crise de faturamento das emissoras. Acentuou-se na passividade com que se observou a instalação de uma estrutura de equilíbrio hiper-instável para sustentar uma atividade cara, de investimento intensivo, numa economia sujeita historicamente a flutuações cambiais, para não falar em mudanças nas regras do jogo.
Atribuir-se o esfacelamento da NET à alta do dólar, como se isso fosse tão inesperado quanto à queda de um meteorito sobre São Paulo, equivale a zombar dos observadores do mercado e principalmente dos consumidores. O mais grave é que a própria Globo, mal orientada na decisão inicial de estabelecer nas operadoras o núcleo de suas atividades em TV por assinatura, e pior orientada na sua intenção de reproduzir nesses negócios a mesma arquitetura centralizadora que fez prosperar sua atividade de produção e exibição de televisão aberta, a Globo, como dizia, acaba obrigada a assistir ao desmantelamento em cascata de outros negócios atrelados à Globopar. Alguns ligados à atividade de TV por assinatura ? Globosat, Sky, NET Serviços ?, outros sem qualquer vínculo direto com ela ? globo.com, Editora Globo, gráficas etc.
Para os Marinho, este é um filme de horror escrito por um roteirista sádico. A TV Globo é patrimônio familiar ? assim como os jornais e as rádios ? mas tornou-se garantidora das dívidas da Globopar, o que não apenas vem gerando prejuízos para uma atividade historicamente lucrativa como apontando para uma situação crítica pela frente, já que não há previsão de que a receita dos negócios de TV por assinatura possa equilibrar as despesas decorrentes do endividamento. Há duas alternativas possíveis: que a Globo gere receita adicional, suficiente para sustentar a si própria e aos negócios de TV por assinatura, ou que estes sejam vendidos.
A primeira alternativa é claramente fantasiosa. Quanto à segunda, muitos passos já foram tomados neste sentido, como a venda de parte de participação na Sky para a News Corp.. Mas a utilização da nova redação do artigo 222 da Constituição, que dispõe sobre a entrada de capitais estrangeiros nas empresas de comunicação, provavelmente terá que esperar até a sua regulamentação pelo Congresso. Isso para que a Globo não lance mão da Medida Provisória n?70, recentemente editada pelo governo Fernando Henrique Cardoso, que na opinião de analistas poderia trazer para a empresa um grande desconforto junto ao governo Lula.
Expectativa frustrada
O efeito cascata da crise da NET atinge em cheio a programadora Globosat (que é uma das primeiras a não receber da operadora) e gera estudos para que partes das redes de TV por assinatura (como a SporTV) sejam incorporadas à Globo. A arquitetura de controle de danos, bem como a reengenharia financeira para colocar a Globopar de pé e amenizar os efeitos sobre as empresas atingidas pelo turbilhão, em especial a garantidora de seus compromissos, não podem ser desvinculados da sucessão de problemas recentemente apontados pela ABTA (Associação Brasileira de TV por Assinatura) para o setor, e de outros identificados pela TAP (uma das associações de programadoras estrangeiras), pela Ancine, pela ABPI-TV e demais entidades.
Todas têm em comum a notável dependência do mercado às operadoras. Sabe-se que o preço da assinatura básica é alto; que o assinante deve ter o direito de construir seus próprios pacotes; que este assinante está pagando por 80 canais quando na verdade só receber os 6 ou 7 que lhe interessam; que há uma repetição exaustiva de canais nos mesmos nichos e uma ausência gritante de canais diferenciados; que cerca de 70% dos assinantes compram suas assinaturas para ver televisão aberta com maior qualidade de imagem e não em busca da programação que os pacotes estão oferecendo; que a produção brasileira independente não passa de 1% do que está sendo distribuído; que as redes estrangeiras, embora tenham feeds exclusivos para o Brasil, não dispõem de uma estrutura mínima no país para negociar a compra de programação e todas as decisões são tomadas por agentes de negócios em Miami.
Ao longo desses dez anos de implantação no Brasil das plataformas de TV por assinatura, virtualmente nenhuma rede brasileira independente de TV por assinatura foi posta em operação, contra mais de 300 nos EUA no início dos anos 1980. A despeito da profusão de sinais distribuídos, sabe-se que a TV por assinatura no Brasil falhou no incentivo à criação de redes regionais distribuídas nacionalmente, mesmo nas áreas de grande afluência migratória. Sabe-se, ainda, que o modelo de TV por assinatura não atendeu minimamente as expectativas do consumidor e frustrou quem acreditava que receberia uma televisão plural, diversificada e consistente.
Ao se repensar o modelo de TV por assinatura em vigor no país, e que está levando de roldão um modelo de administração em televisão inaugurada como a Globo, tudo isso terá que ser levado em conta. Ver as operadoras como núcleo dos modelos de TV por assinatura é exatamente o mesmo do que ver as antenas de transmissão como núcleo dos modelos de televisão aberta.
(*) Jornalista, escritor, diretor de TV