Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Jornal do Brasil

LULA PRESIDENTE / ELEIÇÕES 2002

“A Rosa do Povo”, Editorial, copyright Jornal do Brasil, 27/10/02

“Hoje é dia de escrever uma nova página da História do Brasil. Mais de 100 milhões de brasileiros vão às urnas eleger o presidente da República. O favorito é Luiz Inácio Lula da Silva, ex-metalúrgico e líder sindical que há 22 anos fundou o Partido dos Trabalhadores. Sua eleição, se confirmada nas primeiras horas da noite, se constituirá em fato de repercussão internacional. Será quebrada a longa tradição de presidentes com origem na elite econômica e intelectual. A política nacional nunca mais será a mesma. Encerra-se um ciclo iniciado com a volta de Getúlio Vargas.

Um operário chegar ao Planalto pelo voto é espetáculo raro, que dignifica toda a sociedade brasileira. É a vitória da democracia.

Se o século 20 foi marcado por ditaduras e golpes militares, o novo milênio inaugura-se de forma auspiciosa. Mostra que a alternância no poder é possível e desejável. Nada substitui o governo do povo, pelo povo, para o povo. A democracia fica cada vez mais estável à medida que se realizam eleições livres e limpas. O Brasil chama a atenção do mundo com um sistema de votação eletrônica simples, ágil e à prova de fraude. E, na prática, também saberá desautorizar a exagerada apreensão do mercado financeiro com uma transição firme e pacífica.

Os contatos entre economistas do PT e representantes do atual governo se desenvolvem de forma aberta e franca, sem nenhum tipo de obstáculo. Fernando Henrique demonstra, mais uma vez, seu zelo pela democracia. O tempo se encarregará de confirmá-lo como um grande presidente.

Para além do amadurecimento político, a eleição deste domingo é símbolo notável de mobilidade social. Tanto Lula quanto José Serra são filhos de famílias humildes. O pai de Serra era quitandeiro no mercado municipal de São Paulo; a mãe de Lula foi abandonada pelo marido no interior de Pernambuco com sete filhos para criar. Na dificuldade, os dois candidatos forjaram personalidades fortes, apegados a princípios éticos e morais. Cada um a seu modo superou os obstáculos e progrediu na vida. Apesar de tudo, o Brasil é terra de oportunidades. Não pode haver prova maior do que a ascensão social de Serra e Lula.

Serra destacou-se graças aos anos de estudo; Lula graduou-se na universidade da vida. Desde os primeiros movimentos no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, Lula impressionou a todos com a inteligência aguda, o carisma e a capacidade de liderança. Intelectuais de esquerda, como Frei Beto, Francisco Weffort, Marilena Chauí e Antônio Candido, ajudaram-no a criar o PT no início dos anos 80, mas sabiam que não passavam de coadjuvantes de um talento político natural e espontâneo. Mais do que ensinar, aprenderam com Lula.

Parte da elite brasileira insiste em fazer pouco dos méritos de Lula. Como um simples Da Silva se atreve a disputar o cargo máximo da República?, perguntam-se os bem-nascidos. Onde já se viu um homem sem berço e sem diploma governar o país! Não entendem que a força de Lula tem raízes exatamente nas dificuldades que enfrentou. O menino de Garanhuns que veio de pau-de-arara para São Paulo e só começou a se alfabetizar aos 10 anos soube mudar seu destino e cresceu na adversidade. Fez de tudo para ajudar a mãe. Foi vendedor de cocada, amendoim, tapioca e trabalhou como engraxate e entregador de roupa de tinturaria. Mas conseguiu florescer em terreno inóspito. Lula faz lembrar a rosa do povo, cantada por Carlos Drummond de Andrade.

É tempo de mudança. A república dos bacharéis pertence ao passado. A maioria dos eleitores se identifica com Lula na origem, na formação e nos dramas pessoais. Lula é acima de tudo um igual, um brasileiro que conseguiu vencer duras batalhas. Por isso, tornou-se sinônimo de esperança. Não se iludam as alas mais radicais do PT: Lula continua maior do que seu partido. Do contrário, o PT, além do êxito nas eleições proporcionais, teria feito governadores nos principais estados do país, o que não aconteceu. A vitória de Lula tem de ser recebida pela militância petista com a devida dose de realismo. Que a esquerda se comporte à altura do momento histórico e não atrapalhe os passos do futuro governo. A expectativa da população é enorme.

Quando o jovem Luiz Inácio Lula da Silva chegou em casa com o diploma de torneiro mecânico, sua mãe, Eurídice Ferreira de Melo, a dona Lindu, chorou de emoção. Agora, o Brasil se une emocionado ao sonho maior do ex-metalúrgico. Lula chegou lá.”

“De metaleiro a burguês sem capital”, copyright Primeira Leitura (www.primeiraleitura.com.br), 28/10/02

“Primeira Leitura afirmou certa feita que Lula seria eleito pelo zeitgeist, por um certo espírito do tempo que decidiu, sabe-se lá por quanto tempo, arquivar a razão e tornar categorias de pensamento as emoções baratas, as vulgaridades romanceadas, as histórias exemplares

Todos alimentamos a ilusão de que a Rede Globo de Televisão havia, afinal, aderido ao jornalismo. A emissora fez pelo menos dois debates respeitáveis durante as eleições, um ainda durante o primeiro turno e outro já no segundo – este já com uma demagógica ?participação popular?, com eleitores supostamente indecisos a universalizar mães cardiopatas e outros problemas pessoais como se fossem categorias políticas… Vá lá. Ainda assim, o resultado foi positivo. Na noite desta segunda-feira – quando ia ao ar, ao mesmo tempo, a notícia de que a Globopar, empresa do grupo dos Marinho, estava concordatária -, viu-se na emissora mais poderosa do país o que há tempos não se via. Luiz Inácio Lula da Silva, presidente eleito, deu ?plantão? no Jornal Nacional para comentar o noticiário do dia.

Até aí, poder-se-ia dizer, tudo bem. Ocorre que, antes de as questões serem propostas a Lula, assistiu-se a um inacreditável videoclipe em que as virtudes do presidente eleito foram cantadas em prosa e literalmente em verso. Recuperou-se o Lula das greves do ABC no fim da década de 70 e início da década de 80: ideológico, irascível, de esquerda, de camiseta, barba por aparar. A passagem do Lula carrancudo para o Lulinha Paz e Amor foi feita pelos jornalistas, que não perderam uma miserável chance de ser laudatórios, ?poéticos? lá à sua maneira.

Insiste-se: há muito tempo não se via tal soma de mistificação, puxa-saquismo, imprecisão e subjetivismo encomiástico. O resultado beirou o asqueroso. Um dos repórteres, num rasgo de entusiasmo, não se conteve: ?O homem que promete devolver a alegria ao país?. Repare-se: Lula era chamado para ser o ?comentarista? do Jornal Nacional no dia em que anunciou como prioridades de seu governo as reformas da Previdência e trabalhista, aquelas mesmas satanizadas durante os oito anos do governo FHC – e às quais, inacreditavelmente, o JN não fez a mais leve menção numa edição especial totalmente dedicada à eleição e à transição.

FHC, diga-se, esteve presente na fala de Lula nos dois discursos deste domingo, na coletiva concedida nesta segunda e, de novo, no plantão que deu no Jornal Nacional. Era o mesmo Fernando Henrique Cardoso que, há pouco mais de um ano, estava listado pelo PT em nada menos de 45 – sim, 45, o número tucano! – acusações de corrupção. O PT não conseguiu instalar uma megacomissão para investigá-los por muito pouco. Ora, se poderia dizer, isso tudo é política; é assim mesmo. Será? Será que CPIs e denúncias em escala industrial não vão minando, aos poucos, as reputações?

E Lula se entrega, sem reservas, a esse jogo. A ?edição? a que a Globo submeteu, nesta segunda, o pleito de 2002 e a biografia de Lula em nada fica a dever à histórica edição do debate de 1989 entre o próprio Lula e Fernando Collor de Mello, aquela mesma que até hoje provoca reações de ira na esquerda. Sim, já se podem antever os protestos: como Primeira Leitura pode fazer tal afirmação? Pode e explica por quê: assim como, naquela oportunidade, criou-se um presidenciável que não existia, também nesta segunda se inventou um Lula que não há, acima do bem e do mal, pronto para ser consumido como um remédio universal.

Seja na edição preparada previamente, seja na cordial informalidade com que a entrevista foi conduzida, o Lula que ali estava era um espécie de brinquedo de montar e desmontar manuseado a gosto pelas tais elites. O presidente eleito, ali confortavelmente instalado, a fazer digressões sobre Deus, o mundo e a natureza humana, ouviu pacientemente tudo o que o mercado externo espera dele: em suma, que siga rigorosamente os passos de Pedro Malan.

Amistoso, o petista entregava-se docemente à condição de refém dos mercados. Mas Lulinha é esperto, Lulinha não faz por menos. Incitado a dizer como espera responder às pressões desse mercado externo, não teve dúvidas: ?O mercado vai ter um lado coração? e compreender que os brasileiros querem comer três vezes por dia. Os entrevistadores devem ter considerado a resposta satisfatória, porque mais não quiserem saber a respeito.

A esquerda certamente não está aparelhada para entender o que está em curso – e talvez isso inclua Lula. Os esquerdistas têm uma larga tradição, para lembrar uma categoria de Nietzsche em Para a Genealogia da Moral, de parir valores que nascem do ressentimento escravo, de um dizer-não à realidade. Toda a sua racionália para desconstruir valores e acusar a manipulação foi forjada, ao longo da história, por sentimentos de derrota e, no fundo, de inferioridade em face da energia entre destruidora e criativa do capitalismo e dos capitalistas. Reparem como não há, no Brasil e no mundo, estudos ou obras que tratem da manipulação ideológica operada pela esquerda – porque se supõe, afinal, que ideológicos são apenas os valores produzidos pela direita.

Imaginem, a essa hora, na hipótese de terem visto seu líder no Jornal Nacional, como estarão os ?desconstruidores? da academia, aqueles que sempre buscaram severos emblemas de manipulação nas telas da Rede Globo. Como terão percebido o seu líder, ali, ao vivo, preparado para ser devorado pela massa ávida por ter de volta, como disse aquele repórter, ?a sua alegria?. E tudo ali, ao vivo, no dia em que a Globopar anuncia o seu ?devo, não nego, pago quando puder? e no dia em que John Williamson, o pai da expressão ?Consenso de Washington?, quase morto no mundo, anuncia, festivo, a adesão de Lula a seus pressupostos…

Primeira Leitura afirmou certa feita que Lula seria eleito pelo zeitgeist, por um certo espírito do tempo que decidiu, sabe-se lá por quanto tempo, arquivar a razão e tornar categorias de pensamento as emoções baratas, as vulgaridades romanceadas, as histórias exemplares (como a de Lula) que nem generalizadas podem ser, o conhecimento de baixo valor político agregado. Grande parte da mídia embarcou alegremente nessa história, levando na mão esquerda o seu esquerdismo possível, que é o pensamento politicamente correto (afinal, Marx é complexo e, muitas vezes, aborrecido), e, na direita, o velho espírito ranzinza, caudatário ainda da UDN. Lula e o PT servem como uma luva a esse duplo sentimento. Embalam as ilusões de remissão dos oprimidos de gente preguiçosa demais para estudar e ?indignada? o bastante com a política; daí porque secreta seu fel moralista. Para desempenhar tal papel, ninguém melhor do que o burguês sem capital.

Esses dois sentimentos, diga-se, estavam presentes, por exemplo, na entrevista coletiva que FHC concedeu na tarde desta segunda. O zeitgeist estava ali presente entre os jornalistas: muitos queriam porque queriam que o presidente fizesse uma autocrítica, se entregasse à autodilaceração. O sentimento de êxito que o presidente parecia estampar no rosto e a satisfação de, afinal, entregar o poder a um ex-líder operário num quadro de normalidade institucional (e com todos os rituais da democracia em dia) pareciam insuportáveis a alguns dos presentes.

O circo já está armado.

Falta agora o pão. Que há de redimir todos os pecados e justificar todas as conversões. Será?”