Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Uma revista ecumênica

SUPERINTERESSANTE

Deonísio da Silva (*)

Alberto Dines, quando me convidou para escrever neste Observatório, disse-me, no tom cordial e firme que o caracteriza, que tinha total liberdade para escrever sobre o que quisesse, mas recomendou-me que jamais esquecesse que nosso grande objetivo é examinar a imprensa com olhos críticos.

Trocando comentários sobre etimologia, à beira de copos, pratos e rostos certa noite memorável em São Paulo, em companhias inesquecíveis, surpreendeu-me trazendo o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa (três volumes), de José Pedro Machado, cuja primeira edição está comemorando meio século este ano. Sendo obra rara, fiz cópia que aguarda nova edição, mas sigo consultando a original. Dines que fique tranqüilo. Ele evitou o conselho de Décio de Almeida Prado, que me foi relatado pela jornalista Leda Rita Cintra Ferraz: "Livro não se empresta". Diz Leda que o famoso crítico, ao dar metade do conselho, completava, depois de breve paradinha: "E não se devolve". De minha parte, evitarei a segunda parte da recomendação.

Vou fazer pequena nota crítica sobre a revista Superinteressante. Espero não perder a isenção e para isso reforcei meus conceitos de crítica recorrendo ao que diz a etimologia. José Pedro diz que o vocábulo entrou para a língua no século 17, mas hoje, com o avanço das pesquisas, podemos comprovar que ele já estava na língua um século antes. E certamente em tempos ainda mais antigos os críticos já existiam com outras designações, vez que o ofício de julgar, tal como o praticam os melhores críticos, ampara-se no latim criticus, radicado no grego kritikós, os dois apontando para o ofício de avaliar, mas também o de censurar. Na viagem das palavras, há escalas. Elas vão deixando algumas mochilas e pegando outras. Censurar já significou apenas fazer o censo, contar, pesquisar. É historicamente recente o significado, quase exclusivo, de vetar que o verbo adquiriu.

Não vou censurar a Superinteressante. Tendo recebido um ensino primoroso nas Humanidades, faltou-me sempre uma base menos precária sobre as ciências exatas. Costumo dizer que para mim elas são um ramo das ciências ocultas, entre as quais inclui-se a feitiçaria. Declinar latim, tudo bem. Descobrir seno, co-seno, cateto, hipotenusa etc, ai, meu Deus! Assim, quando em 1987 surgiu a revista Superinteressante, passei a recomendar sua leitura a meus alunos e em textos que eu publicava aqui e ali. Ou alhures, palavrinha que entrou para a língua portuguesa no longínquo 1274. Quando dizemos "entrou", queremos apenas indicar que há registro escrito do vocábulo na data referida.

Pois agora dei de cara nas bancas com uma caixinha que anunciava 15 anos da Superinteressante em seis cedês (prefiro grafar assim a CDs). Comprei imediatamente. São 15.000 páginas, 10.000 imagens e 8.000 reportagens. Caramba! Números avassaladores. Pensei em reclamar das propagandas, incluindo o patrocínio, mas lembrei que quando compramos jornais e revistas, nem sempre nos damos conta de que a imprensa moderna é o que vem escrito no verso dos anúncios.

Bem, instalei no computador o primeiro cedê. Claro que não fiz uma "instalação" como aquelas que vêm sendo apresentadas em bienais de arte pelo mundo afora e que têm merecido do poeta e crítico Affonso Romano de Sant?Anna polêmicas ponderações. Recentemente, não lembro em qual país da Europa (vou perguntar ao Affonso), concluída uma amostra artística, pediram ao autor que fosse buscar o material de sua instalação. Ele mandou que jogassem tudo no lixo. Mas precisavam de uma autorização. E ele a forneceu. Por escrito.

Não, minha instalação demorou alguns poucos segundos. Com o ícone na chamada "área de trabalho", "cliquei" sobre a figura ou comprimi o "camundongo". Acho divertidas as traduções ou adaptações do inglês dos computadores, onde "save" é salvar, quando sabemos que apenas Jesus Cristo salva, como não cessam de proclamar todas as igrejas cristãs. Ou até aquelas que não parecem muito isso.

Misturas babélicas

Um alumbramento. Ali estava o primeiro número da revista. Ao acaso, uma bela imagem da Via Láctea, um céu estrelado e a indicação: "Você está aqui". É verdade que logo abaixo um banco avisa: "E nós aqui". Se você está com o saldo negativo, gostaria que o banco estivesse em algum distante lugar do universo que logo fosse engolido num buraco negro, mas na próxima vez que precisasse do crédito, o que é que você faria?

Texto curto. Apenas para dizer: gostei. Estou como um menino que pôde comprar seu próprio brinquedo, estudar do jeito que gosta, sozinho, na relação bunda-cadeira-hora, que tanta falta faz a nossos estudantes. Não é exagero dizer que esses novos recursos vão sendo aprimorados em velocidade espantosa. Fotos, vozes, trilhas sonoras, incluindo músicas e ruídos incidentais, maravilhas. Ou como disse a poeta, acho que Stella Leonardos, "mar, ave, ilha". Mas no plural, essas solitárias maravilhas nos trazem de volta os antigos sabores e fascínios dos diversos saberes que levam hoje um cientista a abandonar uma roda de chope para observar fenômenos num laboratório e, no passado, levaram homens primitivos a contemplarem o céu estrelado em busca de respostas às suas perguntas. Sofrendo de astigmatismo, ou portador de deficiência visual, como solidariamente a definiu Frei Betto, que sofre do mesmo mal, gosto de contemplar o céu estrelado sem óculos. Surge, então, diante de meus olhos deficientes um esplendor que só é possível a quem tem este meu defeito: as estrelas transformam-se em luminosos e resplandecentes sóis noturnos. Aviso que o espetáculo é privativo de quem sofre de astigmatismo.

Imagino quem organizou a coleção. Terão sido estudantes que um dia sofreram na mão de professores que os obrigavam às tautológicas decorebas ditas científicas? De minha parte, posso dizer que meu papel de professor tem sido ao longo dos anos muito mais o de fazer com que meus alunos deixem de odiar Machado de Assis e outras preciosidades de nossas letras que eles detestam sem conhecer. Quem sabe, os organizadores da Superinteresssante e também os que têm escrito e vêm escrevendo na revista carreguem dentro de si a antiga chama: o caminho é mais agradável e mais produtivo quando se parte do simples para o complexo. Nos circuitos escolares, quase sempre se faz o contrário.

A Superinteressante nos deu uma enciclopédia informal, uma linguagem caseira, que todos entendemos, mesmo aqueles que, como o signatário, entendem muito pouco de física, biologia, matemática. E de quebra, o sabor dos antigos almanaques, como se pode atestar nas misturas babélicas de assuntos e temas. A Torre de Babel sempre fascinou a Humanidade. Não é preciso mais transformar tudo numa Torre de Papel. Há o computador e por isso a revista pode, não dispensar a forma impressa, mas facilitar a consulta.

Os dicionários dizem que interessante é aquilo que não entendia, que cativa, entretém, fascina, motiva, entusiasma. Superinteressante! Quem terá imaginado título tão apropriado? Meus louvores à coleção. Pergunto apenas o seguinte: não cabia tudo num único cedê? E não é possível, como em certos dicionários, instalar toda a coleção no "C" do computador?

Post scriptum

O editor Luiz Egypto, com a sua habitual cordialidade e presteza, me passou todas as cartas dos leitores que concordaram (uns poucos) e discordaram (a maioria) de meu comentário sobre o direito de a atriz Regina Duarte dizer o que disse sobre suas aflições à hora de votar para presidente [veja remissão abaixo]. Reli o artigo, li as cartas e celebrei poder escrever hoje sem ter que ficar 72 horas incomunicável numa cela do Brasil meridional, interrogado por um general, condenado depois a dois de prisão por delito de opinião. E era apenas um conto! Lula, o vencedor, e José Serra, o derrotado, foram ambos perseguidos naqueles anos. Ninguém vai querer de volta aqueles tempos, vai? Defendo duas teses sobre a censura e sou chamado de censor. Dedico três anos de minhas verdes idades a formar comunidades eclesiais de base e sou chamado de quê, mesmo? Esqueci! Certos leitores bem que podiam civilizar-se um pouco e conhecer ANTES a quem querem criticar. Ou, quem sabem ao menos, ler alguns parágrafos do que já escreveu quem aqui o escreve. Não peço concordância, apenas que sejam cumpridas as regras do jogo democrático, com boa educação. Que, aliás, é uma das regras da convivência.

(*) Escritor e professor da UFSCar, doutor em Letras pela USP; seus livros mais recentes são A Vida Íntima das Palavras e o romance Os Guerreiros do Campo

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