LULA PRESIDENTE
“A Pororoca Social contra O Dragão da Maldade”, copyright Primeira Leitura (www.primeiraleitura.com.br), 2/11/02
“O sociólogo esquerdista Octávio Ianni disse que o mundo contemporâneo vive sob a égide do Príncipe Eletrônico, que serviria à direita. E no caso de Lula, como fica?
Jornalismo, no geral, produz pouco valor intelectual agregado. Torce-se muito, chuta-se outro tanto e se lê muito pouco. Por isso, raramente se vai além da superfície do fato. Por isso também, no geral, largas parcelas dos leitores quase sempre estão muito contentes com o veículo que escolhem. Com raras exceções, ele os conforta, fazendo-os crer-se muito sabichões ao não avançar além da sua cultura média. Quem arrisca um pouco mais leva na testa a pecha de ?arrogante? e ?incompreensível?. Como sabem, ?arrogante? costuma ser quem é mais contundente do que a gente, e ?incompreensível? é tudo aquilo que não conseguimos alcançar. Paciência!
Este editorial começa assim, quase na forma de enigma, enquanto, ao fundo, o escrevinhador ouve o Globo Repórter que a emissora preparou especialmente para Lula – isso depois de uma entrevista especial e exclusiva no Fantástico, de uma entrevista especial e exclusiva no Jornal Nacional, de uma vinheta em homenagem ao presidente eleito e, quem sabe, de uma participação também exclusiva do Domingão do Faustão.
Uma vista d?olhos, por cima da tela do computador, dá a pista: a maior emissora do país, para mitificar Lula ainda uma vez, resolveu fazer um mix entre a estética da fome e Amaral Neto, O Repórter. O presidente eleito é, assim, uma espécie de Pororoca Social contra O Dragão da Maldade. Glauber Rocha com triunfalismo redentor dos oprimidos. Uma mistura explosiva.
Recentemente, o sociólogo esquerdista Octávio Ianni, autor do clássico O Colapso do Populismo (um clássico do equívoco também, mas fica para outra hora), lançou um livro de ensaios chamado Enigmas da Modernidade – Mundo. A obra foi saudada na academia e nos jornais como coisa grande, embora se arrisque, neste editorial, sugerir que quem elogiou não leu, e quem leu não elogiou – qualquer coisa diferente disso corresponde a acatar a confusão de Ianni como norte.
Fica difícil compreender por que o nobre professor, ao fim e ao cabo, vê a globalização como uma oportunidade de universalização de valores, inclusive os humanistas, mas considera o processo especialmente perverso ao Brasil. Como se o que é bom para todos não o fosse só para nós. Fazer o quê? Confrontar um intelectual com suas contradições é considerado deselegância nesta terra cordial. Um dos ensaios do livro é particularmente interessante: aquele em que o autor fala sobre o Príncipe Eletrônico.
Depois de fazer digressões sobre o Príncipe de Maquiavel (o homem ?preparado para pensar e decidir, negociar e dirigir, administrar e agir, conciliar e dividir, premiar e punir, constituindo-se, simultaneamente, como símbolo ou emblema, para uns e outros, indivíduos e coletividades, população e povo, setores sociais e sociedade, nacionais e estrangeiros?) e sobre o Moderno Príncipe, de Gramsci (?partido político como intérprete e condutor de indivíduos e coletividades, grupos e classes sociais?), Ianni fala do Príncipe Eletrônico, que é a mídia, a grande mídia.
Segundo o autor, o Príncipe Eletrônico ?não é nem condottiero nem partido político, mas realiza e ultrapassa os descortinos e as atividades dessas duas figuras clássicas da política. O príncipe eletrônico é entidade nebulosa e ativa, presente e invisível, predominante e ubíqua, permeando continuamente todos os níveis da sociedade, em âmbito local, nacional, regional e mundial. É o intelectual coletivo e orgânico das estruturas e blocos de poder presentes, predominantes e atuantes em escala nacional, regional e mundial, sempre em conformidade com os diferentes contextos sócio-culturais e político-econômicos desenhados no novo mapa do mundo […]?.
Na seqüência de seu ensaio, Ianni deixa claro que, a seu juízo, o tal Príncipe Eletrônico – ainda que ele admita não ser ?monolítico? – atua em favor dos valores estabelecidos, do establishment, ou, se quisermos, mais genericamente, do que se chama de ?direita?. Ou, então, vejamos: ?[é ] esse o contexto no qual também estão presentes as corporações transnacionais. Interessadas no comércio de mercadorias e na publicidade, bem como na expansão dos mercados e no crescimento do consumo, elas se tornam agentes importantes, freqüentemente decisivos, do modo pelo qual se organizam, funcionam e expandem as novas tecnologias da comunicação. Sem esquecer que grande parte da mídia organiza-se em corporações e, muitas vezes, faz parte de conglomerados também transnacionais?.
Perversa realidade
Por mais que a ?leitura? de Ianni seja interessante e que o Príncipe Eletrônico seja um desses achados que se repetem por aí, sobretudo em cursos de jornalismo (ministrados, quase sempre, por professores que detestam jornalismo), a categoria não passa de uma roupa nova para a velha prática da esquerda de satanizar a mídia como canal dos valores reacionários. A esquerda, de certo modo, sempre deu mais importância à comunicação do que a direita. Não é por outra razão que todo país que foi um dia comunista teve como uma das primeiras providências censurar a mídia e a indústria do entretenimento, subordinando-a aos interesses do partido único.
Seria interessante saber o que o mesmo Ianni pensa hoje de seu Príncipe Eletrônico em face do endeusamento a que as TVs – e a Globo com especial ênfase – estão submetendo o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva. O leitor mais atento e algo afeito à teoria do professor poderia responder que a tese permanece válida, já que o Lula que estrela as superproduções globais é o Lulinha ?market friendly?, amiguinho dos mercados, que acata o superávit primário exigido pelo FMI, que promete cumprir contratos, que diz que vai manter a inflação sob controle, que agora prega responsabilidade com esse negócio de salário mínimo… Lembram-se o mínimo de US$ 100? Nas telas da Globo, Luiz Dulci, secretário-geral do PT, afiança, já em tom grave, sem aquele velho sotaque militante: ?O mínimo será tão elevado quanto possível?. Perfeito: para FHC, a utopia do impossível; para Lula, o que der. É uma das formas que a moral política tomou no nosso tempo. Mas deixemos isso para lá e voltemos a Ianni. Afinal, ele é um dos brasileiros pagos para pensar e para fazer pensar.
Seria, insiste-se, interessante que ele se debruçasse de novo sobre o seu Príncipe Eletrônico, essa instância capaz de manipular a ?virtù e a fortuna, a hegemonia e a soberania; ou o problema e a solução, a crise e a salvação, o exorcismo e a sublimação?. Curioso! O que Ianni pensou e categorizou como uma exclusividade da direita, do poder conservador, é agora explorado – e, a rigor, já foi durante o horário eleitoral – por uma liderança de esquerda. Insiste-se: poder-se-ia dizer que a Globo e a imprensa, de maneira geral, só promovem o presidente eleito porque ele foi ?desvitaminado? de seus valores originalmente de esquerda.
Discordamos. Seria essa uma leitura rasa. Quem quer que se debruce com vagar sobre o que está em curso percebe que, se o Príncipe Eletrônico atua, o faz em consonância, sim, com o Moderno Príncipe, aquele de Gramsci, o Príncipe Partido, o PT. Enquanto a Globo rola na tela a sua mistura de Glauber Rocha com Amaral Neto, Antônio Palocci negocia com os mercados, e José Dirceu atrai para o novo eixo de poder o PTB de José Carlos Martinez. Enquanto o Príncipe Eletrônico de Ianni transforma em mera arenga do bom senso os valores esquerdizantes do PT, promovendo Lulinha Paz e Amor como um príncipe unificador das várias bondades espalhadas no mundo, o Moderno Príncipe-Partido se encarrega da tarefa de organizar o governo.
Assim, o Lula que se submete à Globo não é o rebelde pacificado, tornado passivo à medida que engolfado pelo establishment. Esse Lula é parte de uma estratégia. O Príncipe Eletrônico só faz esse trabalho porque negociou antes com o Príncipe Partido.
Ianni, provavelmente, não estava preparado para ver a mídia de braços dados com um partido de esquerda. E ela está. Por que e com qual propósito, é tudo o que precisamos saber.”