O texto de Marilena Chauí [‘Contra a violência fetichista’, prefácio do livro ‘Videologias’, de Eugênio Bucci e Maria Rita Kehl; remissão abaixo], que deflagra estas considerações, toca precisamente em uma das facetas da mídia mais instigantes, qual seja, a do apagamento da linha divisória entre ficção e realidade. As reações em face de uma e outra – sei que estou sendo óbvio – são diferentes. A ficção nos leva a sair do nosso mundo e a ingressar em outro, num universo paralelo, que nos distrai da vida cotidiana, que nos conduz como que numa viagem de turismo para longe dos ‘mil choques naturais de que a carne é herdeira’ (Shakespeare, Hamlet, Ato III, Cena III).
Ali, as preocupações ganham um caráter total de alteridade, isto é, quando as nossas atenções estão voltadas para o espetáculo de ficção nós mesmos deixamos de ser o centro das nossas preocupações. É onde se faz presente, literalmente, a alienação em seu mais elevado grau. Os problemas que se verificam no plano da ficção não são determinantes das nossas decisões no mundo real: a transformação do Dr. Jekyll em Mr. Hyde, em si mesma, em absolutamente nada vai influenciar a safra ou o mercado de trabalho ou a relação dentro da família.
Agora, o fato concreto de o sujeito ficar com os olhos pregados na televisão, pouco importando qual seja o programa, ou ainda, o fato concreto de haver brigas em torno da programação a ser vista, ou a aprendizagem em razão do que veiculado pela telinha, tudo isto se dá fora do universo paralelo, que acaba não sendo tão paralelo, justamente por conta do efeito psicológico no espectador. Já quando se apresentam os dados como ‘reais’, o interesse reside na obtenção da matéria-prima das decisões que se pretenda tomar na vida. A referência à segurança no Rio de Janeiro, por exemplo, afeta, em muito, as decisões de quem pretenda veranear na Cidade Maravilhosa. Os dados quanto ao poder aquisitivo e os hábitos de consumo da população de uma determinada região afeta a decisão de se instalar determinado ramo de comércio ou de indústria naquele específico local.
Alta complexidade
Quando se fala na espetacularização do real, feita nos noticiários televisivos, ao mesmo tempo em que se procura conferir maior verossimilhança ao imaginário, o que se tem, na realidade, não será o esmaecimento da distinção platônica entre o conhecimento e a opinião? O tema que se coloca acaba não sendo o de uma violência explícita, mas o de uma atuação insinuante, que pouco a pouco, como se estivéssemos no campo da hipnose – da qual, por sinal, Freud, uma das referências do texto que ora se glosa, fez largo uso em sua terapêutica –, nos conduz a aceitar como nosso algo que não está em nós, mas nos é externo, algo que está fora das nossas inclinações.
Posso exemplificar a aceitação insidiosa do elemento externo com a disseminação entre nós do ‘Haloween’ – ou, aportuguesando, com toda a razão, ‘Raluín’ –, festa ligada à história norte-americana, referente a um trágico incidente ocorrido em 1692 na comunidade puritana que fundara, na então Colônia de Massachusetts, a Cidade de Salém , em que pelos motivos mais variados, desde o simples fanatismo ao puro oportunismo, qualquer pessoa era acusada de bruxaria e, após um simulacro de processo, era simplesmente levada à forca (fogueira era suplíctio empregado pelos adversários dos puritanos, os católicos). Nada contra a festa em si, assim como se vê em Quito, no Equador, na noite de 31 de dezembro para 1º de janeiro, o desfile dos ‘Años Viejos’, com suas máscaras monstruosas e seu chicote na mão, ou em Vera Cruz, no México, se vê ainda o perigoso brinquedo de origem tolteca denominado ‘Volador’.
Entretanto, os folguedos de origem nacional – e aqui não vai nenhum ‘nacionalismo exacerbado’ (já que hoje a palavra ‘nacionalismo’ soa como um palavrão, do mesmo modo que, há algum tempo atrás, ‘entreguista’ era uma grave ofensa) – vão desaparecendo. Noel Rosa (1911-1937) disse num samba que ‘o cinema falado é o grande culpado da transformação’. Embora, num certo sentido, reducionista, não deixa de trazer um ponto de partida interessante para a compreensão, já há quase 70 anos, da influência dos meios de comunicação social na definição do modo de as pessoas se conduzirem em sociedade. A simplificação reducionista está longe, entretanto, de se identificar necessariamente com a simplicidade: muitas vezes, ela apresenta facetas de alta complexidade, podendo ser maquiada por dados estatísticos – cuja composição dificilmente é questionada, por ser uma operação extremamente trabalhosa – ou pelo emprego de malabarismos verbais, que mostram uma extraordinária habilidade literária.
Outro debate
Por outro lado, uma tecnologia de Primeiro Mundo – a observação é feita por Celso Antônio Bandeira de Mello, no seu Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2002 –, os meios de comunicação atuam sobre as massas de tal sorte que a mensagem transmitida invariavelmente se coloca numa frase, atribuível aos respectivos proprietários: ‘Bom e belo é o que me agrada, verdadeiro é que me justifica, e o mais não merece consideração’. Veja-se que não está sendo tomado em consideração o que, efetivamente, é passado, mas sim o critério para que a mensagem seja transmitida. Eventualmente, o que agrada ao proprietário da empresa de comunicação social pode corresponder ao bom e ao belo – conceitos que não derivam da natureza das coisas, como já mostrou Spinoza no século 17 no seu Tratado do entendimento humano, mas do sentido que se atribua às coisas e aos fatos – e o verdadeiro – conceito que refoge à conveniência ou inconveniência, por implicar, simplesmente, a correspondência exata entre o enunciado e o fato a que ele se refere – pode justificar a atitude dele.
Mas, se verificado o contrário, não importa: os conceitos de bom e belo passam pelo prazer do proprietário dos meios de comunicação e o de verdadeiro pela legitimação de suas atitudes. E aqui, independentemente da violência física, a própria raiz da palavra, o radical latino ‘vis’ – força – faz com que ela tenha a sua pertinência, porque, afinal, forçam-se as relações de causalidade que se formam na mente do receptor, que se não é um papel em branco, não deixa de ser, contudo – para se utilizar uma expressão da química – reativa. É curioso que os discípulos de dois rivais – Marx, discípulo de Hegel, Freud, discípulo de Schopenhauer – venham a ser invocados como pilares da análise feita.
Mas este é um outro debate, a envolver o problema do sucesso ou insucesso de pensadores como Erich Fromm e Wilhelm Reich em fazerem esta aproximação como referencial teórico, ou da correção ou incorreção de englobá-los na condição de inimigo comum a ser banido, como o fez o economista austríaco Friedrich A. von Hayek.
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Advogado em Porto Alegre, doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais