Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Eugênio Bucci

LULA PRESIDENTE"Noção de cena", copyright
Jornal do Brasil, 7/11/02
"Primeiro flagrante
Anteontem, no Casseta e Planeta, deu-se o momento histórico
em que o personagem de FHC perde o poder para o personagem do presidente
Lula. Para o primeiro, é melancólico. Para o segundo,
o que se passa é uma espécie de pororoca política.
Uma avalanche, uma vazante, uma inundação. Lula governa
o vídeo. Mudou-se para a TV, como diz a apresentadora do
programa, que tem o colo por um triz, o riso de navalha, os olhos
num esgar e o nome de Maria Paula. Ela anuncia que, agora, o novo
presidente ?fica 24 horas no ar?. No Casseta e Planeta, o humorístico
oficial da Rede Globo, esse Lula em caricatura não rouba,
mas toma legitimamente a cena. Ocupa a cena. Ele é Bussunda.
Bussunda é Lula. Só dá um. Ou o outro. Dá
no mesmo.
O personagem de FHC protesta, com o seu bordão preferido,
o ?assim-não-dá, assim-não-dá?. Apresenta
uma placa em que se lê o seu prazo de validade: 31 de dezembro
de 2002. Choraminga em seu terno bege. Inutilmente. O contra-regra
não quer saber e o empurra de lado, chamando-o de camarada.
Agora quem manda é o sucessor, cheio de si em sua gravata
vermelha. A cena é toda dele. O camarim também, bem
nutrido de frios, quitutes e três moças esbeltas de
minissaia. ?Agora é Lula?, diverte-se Maria Paula. ?É
Lula lá, Lula cá, Lula aqui, Lula ali, Lula acolá.?
FHC desaparece. Os outros personagens não conseguem mais
se lembrar de seu nome. Lula é onipresente. Surge em todos
os ambientes, todos os espaços. Aparece no Jornal Presidencial,
onde confabula com Fátima Bernardes, e até dá
papinha para os ?companheiros trigêmeos?. É o rei,
o rei da TV, o que significa ser o rei de todas as piadas, ou melhor,
o rei em todas as piadas. Ou, melhor ainda, o personagem central
no reino das piadas.
Segundo flagrante
Recuemos um pouco mais no tempo. Recuemos para sábado passado.
Sábado à noite. Programa Altas Horas, também
da Globo, já na madrugada de domingo. A bem da verdade, não
é mais sábado. É domingo. O domingo está
começando, assim como o Altas Horas. Na primeira entrevista
da noitada, Sérgio Groisman conversa com William Bonner,
o apresentador do Jornal Nacional. Por algum motivo, talvez de ordem
técnica, talvez de ordem prática, talvez por incompatibilidades
de agendas, a entrevista é gravada. Fora do estúdio.
Bonner não vai ao estúdio do Altas Horas, superiluminado,
ruidoso, adolescente. O Altas Horas é que vai até
ele. A entrevista foi gravada contra um fundo negro, em um ambiente
silencioso, emoldurado pela escuridão. Daí que, quando
aparece no Altas Horas, William Bonner aparece falando de fora para
dentro; ele não está no interior do espaço
em que o programa é gerado, mas num espaço externo
e, mais que isso, muito mais que isso, num espaço anterior
ao programa. Está de terno, sóbrio, ainda que tenha
uma atitude descontraída. Bonner não perde a pose
ou, como ele mesmo diz, não perde a ?liturgia? que o Jornal
Nacional lhe exige. Assim, aparece no Altas Horas sem se confundir
com o ambiente ultra-informal do Altas Horas. Em outras palavras,
o Jornal Nacional não se deixa contaminar pelo Altas Horas.
Mantém-se intacto, inexpugnável, mesmo quando vai
ao Altas Horas, ou melhor, mesmo quando Serginho Groisman, em nome
do Altas Horas, vai até ele.
Primeira conclusão
Bussunda é um sujeito de televisão. Como William Bonner,
que também é um sujeito de televisão. O primeiro,
por intuição, sabe que a ele cabe banalizar, desgastar,
espremer até o bagaço as figuras públicas que
lhe caem nas mãos. O segundo, por instinto de sobrevivência,
no vídeo mais que na vida, sabe que precisa se proteger de
todo desgaste, de toda banalização. Sabe que não
pode se deixar ver em atitudes menos cerimoniosas, ou sua imagem
perderá aos poucos o lustro da autoridade que lhe é
dada pelo fluxo das notícias através de si. Quanto
mais ele se expuser fora de seu habitat, um habitat artificial,
mais perderá a força, e mais ficará visível
o seu ridículo mais íntimo. William Bonner sem a sisudez
seria tão frágil quanto um Sansão sem a cabeleira.
Por isso ele se protege, não se mostra em qualquer lugar,
em qualquer situação. Bussunda, de seu lado, expõe
quem não quer se expor. E se diverte com os ridículos
que fabrica, ridículos de mentirinha. Quer arrancar as perucas
de todos os Sansões, sejam eles políticos, âncoras,
zés ninguéns. Bussunda e William Bonner têm
absoluta noção de cena.
Segunda conclusão
FHC, não o personagem, mas o FHC de fato, também tem
noção de cena. Na semana passada, ao conceder uma
entrevista ao Jornal Nacional, fez com que a televisão fosse
até ele. Não foi até a televisão. Impôs
os seus termos às câmeras, para não ser submetido
aos termos impiedosos das câmeras vorazes, que sempre querem
revelar mais do que lhe mostram. De algum modo, FHC sabe que não
pode se confundir com o espetáculo banalizante. Não
se expondo em demasia para o Bonner do Jornal Nacional, como o próprio
Bonner não se expôs ao Serginho do Altas Horas, FHC
não facilitou o trabalho de Bussunda do Casseta e Planeta.
Não legitimou a banalização. O presidente se
protegeu e sua autoridade ganhou com isso.
FHC, ao menos nesse quesito, vem agindo bem. No ofício da
presidência, noção de cena é cada vez
mais fundamental. A televisão existe para ser usada pelo
presidente da República, e nunca para usá-lo. Não
existe para reduzi-lo a um quesito a mais de seu cardápio
de atrações. A noção de cena, para um
presidente da República, é questão de segurança
nacional."

 

"Essa turma estuda pouco", copyright Jornal
do Brasil
, 11/11/02
"Que seja revogado o horário eleitoral gratuito.
Que se cancelem todos os debates, tanto os que reúnem bandos
de anônimos
irremissíveis inventados por partidos de brinquedo quanto
duelos entre finalistas de segundo turno. Chega de comícios
e andanças pelos confins do Brasil. O apresentador Sílvio
Santos encontrou a fórmula capaz de radiografar a cabeça
e a alma dos que pretendem influenciar os destinos do Brasil. É
o Show do Milhão especial para políticos, com fins
beneficentes. Ninguém está lá para ficar mais
rico, e sim para que alguém fique menos pobre.
Alguns retoques talvez sejam necessários, mas estamos quase
lá. No programa de sexta-feira passada, por exemplo, multidões
de telespectadores puderam conhecer mais intimamente Marcelo Crivella,
bispo de uma Igreja Evangélica e senador eleito pelo PL do
Rio de Janeiro; Eduardo Suplicy, senador pelo PT paulista com mais
quatro anos de mandato pela proa; e Paulo Maluf, que acaba de ampliar
sua coleção de fracassos com a derrota na disputa
do governo paulista, mas comunica que continua na liça.
Havia na bancada outros políticos, que mostrarão seus
conhecimentos nesta semana, e um punhado de ?campeões?. Trata-se
de homens e mulheres que, em programas anteriores, alcançaram
o patamar dos 500 mil reais e o direito de tentar o sonho do milhão
(em barras de ouro, sublinha Sílvio Santos). Parece que só
um topou arriscar-se. Traído pelo nervosismo, errou ao responder
quantas letras tem o dístico Ordem e Progresso, da bandeira
brasileira. Mas esta é outra história. Voltemos à
reveladora sexta-feira.
O primeiro a exibir-se é Crivella. Boa voz, sorriso manso
de quem está habituado a levar rebanhos inteiros para o céu.
Chegará a 300 mil reais. Quando a pergunta emerge da praia
com a qual tem particular familiaridade, mostra que é um
pregador de primeira. Qual era o filho de David conhecido pela vaidade?
Absalão, claro. Sem que Sílvio pergunte, conta que
Absalão usava até fios de ouro nas tranças
do cabelo. O bispo-senador tanto fez bonito que foi premiado pelo
dono do SBT com a apresentação de um dos seus sucessos
musicais.
Crivella sugere uma voz em busca de alguma idéia capaz de
interessar aos não-evangélicos. Entra Eduardo Suplicy,
uma idéia sempre à caça de platéias
dispostas a ouvi-lo explicar o que é renda mínima.
Mostra o livro sobre o tema e começa o discurso. Não
há quem domine um programa de TV como Sílvio Santos.
Mas não lhe foi fácil desviar a formidável
garganta para a primeira pergunta. Qual é o signo representado
por um objeto que avalia o peso das coisas?
Tensão no palco. Suplicy sabe quantas famílias entrariam
no Programa de Renda Mínima, sabe quantos pobres morreram
ontem e quantos miseráveis nascerão amanhã.
Mas essa questão do signo é meio complicada. Pensa,
contrai a testa, examina com vagar as opções e segue
hesitante. Resolve pedir a ajuda de Márcia Peltier, Hermano
Henning e Lílian Witte Fibbe, no papel de ?universitários?.
Libra, informa o trio. ?Eu sabia?, murmura Suplicy, com um sorriso
constrangido. ?Só quis testar os universitários.?
Vencidos outros obstáculos, surge no caminho mais uma pedra
de bom tamanho: quantos salmos tem a Bíblia? A sorte é
que Crivella está por lá. Suplicy pede que os companheiros
ergam as placas, olha a do bispo, e responde: 150. Mas o senador
parece atrapalhar-se quando o tema não é renda mínima,
acaba parando logo adiante. Conseguiu 100 mil reais. Longe de ser
brilhante, o desempenho também não é de envergonhar.

E então chega a vez de Paulo Maluf. No primeiro Show do Milhão
desse tipo, Sílvio perguntou como se chama quem estuda a
vida dos santos. Havia a opção ?hagiólogo?,
mas Maluf foi de ?santeiro?. Ficou abaixo de (para ele) minguados
5 mil reais. Desta vez, já no pontapé inicial se pôde
desconfiar da performance do jogador. A questão era saber
que animal emite um zumbido. Elefante? Javali? Porco? Abelha? Maluf
queimou muitos neurônios até escolher, com a ajuda
de Sílvio, a quarta opção.
Segunda pergunta: O H representa qual elemento químico? Hidrogênio,
é evidente, declamou Maluf. Hidrogênio de H2O, a fórmula
da água, que Anthony Garotinho desconhecia. ?Eu era ótimo
em química nos tempos da Escola Politécnica. Se a
política não fosse a minha grande vocação,
seria pesquisador na área de química.? Maluf estava
feliz como uma criança de 71 anos, e então aterrissou
na tela a terceira pergunta: Qual era o nome do primeiro-ministro
italiano que deixara o cargo em 1996, pressionado por revelações
resultantes da Operação Mãos Limpas?
Silvio Berlusconi, claro, que hoje está no cargo de novo.
Mas Maluf descartou a hipótese de cara. Pediu placas. Todos
levantaram a que indicava o nome de Giacomo Matteotti, deputado
italiano morto por fascistas, em 1923, presumivelmente a mando de
Mussolini.
Todos os candidatos foram reprovados. Mas a fórmula da progressão
continuada não foi criada para resolver problemas do gênero?
Enquanto estudam, podem continuar a carreira. Mas precisam estudar
muito mais."