Saturday, 21 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Walter Fanganiello Maierovitch

CRIME ORGANIZADO
"O chefão das drogas", copyright
Carta Capital, 6/11/02
"Diego Montoya Sánchez, de 41 anos, está
com a cabeça a prêmio. Cabeça que vale US$ 2
milhões, mas que deve subir de preço. Há dois
anos o colombiano Don Diego está sendo caçado pela
DEA, pela CIA, pelo FBI e pela polícia colombiana. Existe
um mandado internacional de captura contra ele. Motivo: Diego Montoya
é o número 1 do tráfico internacional de drogas
e controla o Cartel do Valle Norte.
A heroína que começou a chegar ao Brasil provém
de papoulas cultivadas nos seus campos e é refinada nos seus
laboratórios. Don Diego está apostando no mercado
brasileiro, em face da redução do consumo dessa droga
narcótica (depressora, reduz a atividade cerebral e dá
sonolência de um Morfeu) nos EUA e na Europa.
Os consumidores americanos e europeus migraram para as metanfetaminas,
que são drogas sintéticas psicoativas. Preferem ficar
agitados, ligados. Daí o Cartel do Valle Norte estar ofertando
a heroína aos brasileiros. Antes, forneciam 90% da produção
aos EUA e o restante ao México.
O cartel de Don Diego usa o Brasil como corredor de passagem da
cocaína destinada à Europa. Ele sabe da regra que
todo país de trânsito vira grande consumidor. Isso
já aconteceu com o Brasil, uma alegria para o bolso de Don
Diego e seus dependentes.
O prêmio pela sua captura está estampado em panfletos
espalhados pelas regiões colombianas de plantio e refino
de coca, papoula e marijuana. Poderá subir e aproximar-se
do oferecido por Pablo Emilio Escobar Gaviria. Em 1993, a encomenda
pela morte de Escobar chegou a valer US$ 6 milhões.
Para localizar Escobar, os norte-americanos selecionaram e treinaram
um grupo policial de elite, imune à força corruptora
do Cartel de Medellín. Essa elite integrou o comando batizado
como Bloque de Búsqueda.
Esse comando de elite sustentou-se nas informações
dos paramilitares de direita, envolvidos no combate às duas
guerrilhas de esquerda. As Autodefesas Unidas da Colômbia
(AUC), por meio do seu coordenador, Carlos Castaño, tiveram
papel fundamental na eliminação de Escobar.
Na busca de Escobar, a norte-americana Drug Enforcement Administration
(DEA) chegou a empregar aviões dotados de equipamentos radiogoniométricos.
A DEA procurava captar, em algum lugar da Colômbia, a voz
de Pablo Escobar. Também os sonoros estampidos de uma pistola
Sig Sauer, de 9 milímetros, sua inseparável arma.

A captação de voz foi eficaz quando, avisados pelos
paramilitares de Castaño, os vôos deixaram a região
de selva e concentraram-se no espaço de Medellín.
Escobar escondia-se numa casa da sua propriedade, no bairro Los
Olivos, e comunicava-se por rádio. Tal sistema de triangulação
radiogoniométrico não serviu para surpreender o terrorista
Bin Laden.
A premiação ou a troca sempre integram as estratégias
norte-americanas. O dinheiro serve para atrair mercenários
e incrementar a deduragem, quer pela cupidez individual, quer pelo
desejo hegemônico de organizações criminosas
rivais.
Exemplo conhecido de troca envolveu Carlos Lehder, um dos maiores
narcotraficantes do século passado. Lehder escolheu as Bahamas
para montar seu entreposto de cocaína.
Preso e extraditado para os EUA em 1987, Lehder acabou condenado
a 135 anos de prisão. Delatou o ditador panamenho Manuel
Noriega. Recebeu, em troca, a redução da pena, de
modo a ganhar a liberdade vigiada. Noriega, o general narcotraficante,
continua preso. Está condenado à pena de prisão
perpétua, graças à contribuição
de Lehder.
Com o El Patrón, apelido de Escobar, a população
silenciou. Nada de delações. Ele era considerado um
benfeitor, como ficou evidente no seu concorrido funeral. Escobar
criou 3 milhões de empregos, para dar sustentação
ao seu Cartel de Medellín. Para isso, transferiu o plantio
e o refino da coca do Peru e do Equador para a Colômbia.
As coisas estão acontecendo de forma diferente na busca a
Don Diego. Os representantes do governo W. Bush vacilam, pois são
conflitantes muitos dos interesses políticos em jogo. Tudo
porque Don Diego financia os paramilitares das AUC, chefiados por
Carlos Castãno, sempre em luta permanente contra as Forças
Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc).
Don Diego injeta pesadamente dólares no Bloque Calima, das
AUC, que atua no Departamento de Cauca, onde se encontra parte substancial
da reserva petrolífera colombiana. Financia, ainda, as Autodefensas
Campesinas Rojo Ata (Acra), no Departamento de Tolima. E é
Don Diego quem, na região do Valle, investe no refino e plantio
de papoula em Tolima, Cauca e Nariño.
Uma outra peça desse quadro interesseiro diz respeito ao
recém-empossado presidente Álvaro Uribe. Sempre gozou
da fama de aliado dos direitistas das AUC. Quando era governador,
armou civis num projeto para enfrentar a violência dos insurgentes
das Farc.
Vale acrescentar possuir Don Diego um coeso e bem armado ?exército
privado?. Recentemente, colocou seu potente ?exército? para
combater o denominado Bloque Ocidental das Farc, chefiado pelo guerrilheiro
comunista Pablo Catatumbo.
Os chefes militares do Cartel do Valle atendem pelos apelidos de
Chocolate e Pelé – mas não são brasileiros.
O brasileiro que negocia a compra de drogas com o Cartel do Valle
é conhecido por Pedro Brá (de Brasil). Desconhece-se
até hoje a identidade real de Pedro Brá.
A batalha entre o Cartel do Valle e o Bloque Ocidental das Farc
iniciou-se após o grupo de Catatumbo seqüestrar, em
11 de abril passado, 12 deputados regionais do Departamento do Valle.

Fora do campo de batalha, Don Diego e Catatumbo figuram como os
maiores suspeitos do assassinato do monsenhor Isaías Duarte
Cancino, de muito prestígio na região. As suspeitas
recaíram em Don Diego e em Catatumbo em face de o clérigo
criticar com veemência, nas prédicas, o narcotráfico
promovido pelo Cartel do Valle e a guerrilha do bloco ocidental
das Farc. Desejava motivar uma reação social.
Evidentemente, os paramilitares não têm interesse na
prisão de Don Diego. Muito menos os mercenários, que
são financiados pelas AUC, com dinheiro dele e não
do Plano Colômbia, hoje rotulado de IRA (Iniciativa Regional
Andina).
Muitos dos mercenários integram a força armada do
cartel de Diego Montoya. Pelo divulgado na imprensa colombiana,
os comandados de Don Diego massacraram 107 camponeses, na cidade
de Trujillo, pertencente ao Departamento do Valle. Os camponeses
executados eram considerados simpatizantes das Farc.
Em 1999, Don Diego acendeu ao high-ranking elaborado pela DEA e
pela Interpol. Além da cocaína, seu Cartel do Valle
fornece heroína e marijuana aos EUA e ao México.
A carreira delinqüencial de Don Diego Montoya Sánchez
começou no Cartel de Cáli, subordinado aos irmãos
Rodríguez Orejuela. Atuou com os maiores nomes do narcotráfico
internacional, como Alejandro Bernal Madrigal (Juvenal), Hermano
Gómez (Rasguño), Helmer Pacho Herrera, José
Santacruz Condono, Victor Julio Patino (Fomeque).
Esteve ligado aos irmãos Ochoa, potentíssimos narcotraficantes
do Cartel de Medellín, que, depois das extradições
para os EUA, se tornaram colaboradores da Justiça norte-americana.

Hoje, os três irmãos Ochoa – Fabio, Juan David e Jorge
Luis – exploram suas grandes fazendas e criam cavalos de raça.
No acordo com os norte-americanos, conseguiram preservar a fortuna
conseguida com o tráfico de cocaína.
O Cartel do Valle do temido Don Diego estabeleceu-se na região
ocidental colombiana, onde a principal unidade militar do país
conta, na cidade de Tulua, com 110 homens. Os domínios do
Cartel do Valle alcançam, também, parte do importante
vale do Rio Magdalena.
O cartel domina plantios em Cauca, Tolima e Nariño e controla
todas as saídas da droga pelo Pacífico. Mantém
mais de 50 laboratórios de refino de heroína e cocaína
nas áreas rurais de Roldanillo, El Guamo, Ortega e Ibaguè.
Seus laboratórios refinam grande parte da coca produzida
em Guaviare, Vaupes, Caquetà e Putumayo.
Ao Cartel do Valle atribuiu-se o aumento internacional de oferta
da cocaína. No último ano, a Colômbia conquistou
outros 5% do mercado consumidor de cocaína. Ou seja, a Colômbia
já fornece 85% da cocaína consumida no planeta. Por
baixo, a ONU, pela sua agência de drogas sediada em Viena
(UNDCP), estimou em 1.200 toneladas a quantidade de cocaína
exportada anualmente pela Colômbia.
Nos EUA, Don Diego foi condenado por liderar organização
criminosa colombiana dedicada ao tráfico internacional de
cocaína e heroína. A sentença é de 4
de novembro de 1999. A pena imposta pelo juiz federal Stephen Brow
foi a de prisão perpétua.
O processo condenatório derivou do fato de Don Diego ter
exportado para os EUA mais de mil toneladas de cocaína pura
em um ano. Essa droga foi embarcada em portos do Equador e do México.

No México, houve acordo entre os cartéis do Valle
e de Tijuana. Este último cartel foi mostrado no filme Traffic
e leva o nome da cidade que faz fronteira com a norte-americana
San Diego. O cartel de Tijuana sempre cuida da remessa de drogas,
a partir do Golfo da Califórnia.
Em termos de fortuna, Don Diego está distante da amealhada
por Escobar. O Cartel do Valle não possui frota de aviões,
preferindo terceirizar o transporte e usar pilotos autônomos.
Ao contrário, Escobar mantinha uma frota de pequenos aviões,
conhecida como Expresso da Cocaína. E a cocaína acabava
chegando a Miami, Los Angeles, Nova York, Chicago, etc. Com o tempo,
a apelidada ?Rota da Farinha? alcançou a África e
a Ásia.
Assim como Escobar, Don Diego celebrou acordo com as máfias
da Galícia – espanhola – que anualmente redistribuem 650
toneladas de cocaína colombiana para a Europa.
Por Cauca e Tolima, Diego Montoya circula em um velho jipe Willys.
Muitas vezes, ao lado de uma conhecida modelo fotográfica.
Como todos nessas cidades sabem, o casal passa os finais de semana
às margens do Lago Calima.
No Brasil, a propaganda norte-americana pretende vincular as Farc
com personagens sem importância no tráfico internacional,
como Fernandinho Beira-Mar. E nada revelam a respeito das ligações
entre Diego Montoya Sánchez e os paramilitares das AUC. A
heroína que está chegando ao Brasil é refinada
pelos laboratórios do Cartel do Valle, de Don Diego.
Como se pode perceber, Don Diego tem papel relevante com os paramilitares.
Sua imagem, no entanto, macula a de Carlos Castaño, que se
apresenta como o chefe de uma organização paramilitar
que conseguiu, patrioticamente, vencer o narcotraficante Escobar.

As organizações paramilitares dependem dos financiamentos
de Don Diego e, por si, não conseguem, no caso da sua prisão
ou eliminação, operar internacionalmente o tráfico.
Não conseguiriam sair da venda a varejo, no seu próprio
território.
Importante lembrar que as novas e principais rotas de drogas percorridas
pelos cartéis colombianos passam pelo Brasil. Do nosso país
seguem em direção à Europa. No traçado
das rotas, o Brasil conecta-se com países africanos: Senegal,
Guiné, Libéria, Costa do Marfim, Gana, Nigéria,
Gabão, Angola, Namíbia e África do Sul.
No Senegal, parte da droga é remetida para a Argélia
e, pelo Mediterrâneo, chega à Espanha e a Portugal.
Numa outra rota, há um giro pela Nigéria e ingresso
na Ásia pelo Sudão e pela Somália.
São os cartéis que operam as redes internacionais
e cuidam da reciclagem do dinheiro da droga em atividades formalmente
lícitas. Para seus chefes, os movimentos rebeldes, de esquerda
(insurgentes) ou de direita (paramilitares), promovem a extorsão,
ou seja, exigem dinheiro para permitir o plantio, o refino e a circulação
da droga.
Um dos lavadores do dinheiro da droga do Cartel do Valle chama-se
Ever Villafagne. Foi preso na Colômbia no fim de 2000 e teve
sua extradição para os EUA aceita pelo Judiciário.
Antes de ser extraditado, no entanto, fugiu, em maio deste ano,
do presídio colombiano de segurança máxima
de Itagüí. Desde os tempos de Escobar, um presídio
em muito similar ao nosso Bangu."

 

CIDADE DE DEUS
"Cidade de Deus: Hipocrisia colonizada e apologia
do sem saída", copyright Hora do Povo, 24/9/02
"Debaixo de uma macaqueação do que
há de pior no cinema americano, todo oproblema é meia
dúzia de marginais pé-de-chinelo – como se eles nãofossem,
precisamente, a consequência inevitável da destruição
do Estado, do emprego e da despudorada falta de escrúpulos
por parte da quadrilha no poder Durante semanas, e antes mesmo de
qualquer pré-estréia, ?Cidade de Deus? foi incensado
como suposta obra-prima pelo que na mídia há de mais
colonizado, degenerado, venal e sem vergonha. Realmente, a obra
merece os seus apologistas. Pois trata-se de um filme exatamente
com aquela exígua dimensão – ideológica, política
e estética -, ou seja, aquele apodrecido conteúdo
que diariamente (como dizia há uns 130 anos o grande e bom
Alencar) é secretado por certas folhas.
COLONIZAÇÃO MENTAL
Do ponto de vista formal – e não apenas desse – ?Cidade de
Deus? é uma macaqueação de Quentin Tarantino
e outros assassinos do atual cinema americano. Não se trata,
bem entendido, de apropriação estética – e
não faltaria do que se apropriar, muito justamente, no cinema
americano. Do que se trata aqui é de servilismo e, como sempre
acontece com qualquer servilismo, cópia do que há
de pior, jamais do que há de melhor.
Misturado com isso, existem os recursos típicos de filme
publicitário. Mas, a rigor, uma e outra coisa são
a mesma, isto é, colonização mental. Mas a
forma é apenas aquela que é adequada ao conteúdo.
O país foi, nos últimos oito anos, arrasado por uma
política servil, antinacional, antipopular. O Estado – isto
é, o atendimento ao povo: a Saúde, a Educação,
a Segurança – foi depauperado para locupletar especuladores
estrangeiros e seus comensais internos, movidos a propina.
O emprego foi devastado, junto com a indústria, a agricultura
e o comércio. Evidentemente, onde não há Estado,
o crime toma conta. Onde não existe emprego nem atividade
econômica, o tráfico, e outras desgraças, os
arremedam. Onde os que estão aboletados no governo não
fazem senão cometer crimes contra o povo e a Nação,
exibindo a mais despudorada ausência de valores humanos –
morais, cívicos, intelectuais – como esperar que a sociedade
não seja dilacerada, que os criminosos (e são, diante
do que se fez no país, criminosos menores) grassem como praga
nos bairros populares? Se a cúpula da sociedade é
composta por bandidos…
MARAVILHOSA ESPÉCIE HUMANA
O extraordinário não é que isso aconteça
a uma parte do povo, mas que a maioria dele não tenha, apesar
de todos os sofrimentos e aflições, caído na
marginalidade. É algo que diz muito a respeito da maravilhosa
espécie humana – e, em especial, de nós, brasileiros.
Pois durante todos esses anos a quadrilha que nos infelicita ? agora
prestes a ser varrida do poder – e, sobretudo, a sua mídia,
tentaram fazer crer que o problema do Brasil é meia dúzia
de marginais pés-de-chinelo. Eles, não: roubam, destroem
a propriedade do povo, assaltam o Tesouro, desempregam milhões,
arrasam as escolas, os hospitais, destroçam a polícia
? dos salários ao aparelhamento. Mas o problema – único
ou, pelo menos, central – do país é a ?violência?,
que para eles está meramente em alguns traficantes e outros
bandidos que eles, a quadrilha no poder, fez proliferar e, inclusive,
cultivou, não somente através do degradado exemplo,
como também instalando uma política (?!) de segurança
que persegue a polícia e protege o bandido.
Tudo isso o leitor já viu na televisão e no noticiário
das folhas a que se referia, há tanto tempo, o nosso José
de Alencar. Pois ?Cidade de Deus? é exatamente a mesma coisa:
a mesma hipocrisia, o mesmo farisaísmo, o mesmo colaboracionismo
com essa quadrilha – e com os patrões estrangeiros dessa
quadrilha. A diferença é somente a embalagem, algo
mais custosa e, sobretudo, mais servil, mais desnaturada na imitação
dos piores ianques do que, por exemplo, uma daquelas ?reportagens?
cretinas da ?Globo? sobre o tráfico no Rio. O filme, por
sinal, é uma co-produção da Globo Filmes com
os americanos da Miramax (que, por sinal, já fizeram algumas
coisas razoáveis e até boas, o que não surpreende,
pois o puxa-saco costuma sempre ser pior do que a quem serve).
Os atores procuraram, realmente, fazer um bom trabalho. É
sintomático que boa parte da propaganda do filme – a declarada
e a que se apresenta como ?crítica cultural? – sustenta-se,
precisamente, no trabalho dos atores, em que não se trata
de profissionais, mas de favelados ?de verdade?, etc. O recurso
a pessoas do povo como atores foi uma das características
mais famosas do neo-realismo italiano, isto é, do cinema
de De Sica, Rosselini, etc. Assim, tenta-se faturar em cima do prestígio
imenso dos autores realistas de ?Roma, Cidade Aberta? e ?Ladrões
de Bicicleta?.
ESTEREÓTIPOS
O problema é que ?Cidade de Deus? nada tem de realista. Todos
os personagens – inclusive o jovem narrador – são estereótipos.
É interessante a reação da platéia diante
de algumas cenas sanguinolentas: o riso, às vezes a gargalhada.
E, no entanto, o tema do filme é, supostamente, uma tragédia
social. Acontece que é impossível se identificar com
estereótipos, com personagens que os espectadores sentem
que são uma falsificação do real.
No entanto, os fatos que estão lá, realmente acontecem.
Isso, aliás, é o que há de mais enganoso no
filme: fatos que sabidamente acontecem são dispostos de forma
a dar a impressão de que o autor colocou a ?realidade? no
filme. Se fosse assim, ?O Triunfo da Vontade? e outros filmes nazistas
seriam obras realistas. E não são. Pois, o que realmente
importa para o realismo ? as relações humanas – são
expressas de forma rigorosamente falsa.
INDIVIDUALISMO
Todos, sem exceção, inclusive os personagens ?positivos?
– o narrador, o traficante do qual o psicopata é amigo do
peito (?!), o trocador de ônibus que vira bandido ?por motivos
pessoais? (!?) – são individualistas e só pensam em
saídas puramente individuais.
É significativo que o psicopata do filme, apesar de todos
os crimes extremamente sanguinários que comete literalmente
desde criancinha, desperte pena e não repugnância.
O sujeito, aliás, consegue o domínio de todas as bocas
de fumo do bairro (com exceção de uma), tem mais dinheiro
do que qualquer um no bairro (que, a propósito, não
é exatamente uma favela). Tem um poder sem limites, mata
crianças e a população mostra-se, ao que parece,
muito satisfeita com a sua proteção, que evita assaltos
e outros delitos. No entanto, não consegue uma única
namorada, uma única mulher que se interesse por ele, porque
?simplesmente, é feio?… Trata-se do primeiro chefe do tráfico
com essa dificuldade. Repugnância, no filme, quem desperta
é a polícia, que é corrupta, assassina, e vive
afanando o dinheiro dos pobres traficantes.
JORNALISTAZINHA
A única personagem que tem algo de verdadeiro (em relação
às pessoas reais) é exatamente aquela que na realidade
já é um estereótipo: a jornalistazinha que
acolhe o narrador nas dependências de sua casa, depois de
roubar suas fotos e publicá-las sem autorização
na primeira página do jornal em que ambos trabalham, lixando-se
para o risco mortal que isso acarretaria ao autor. Este, é
o único personagem que consegue escapar do tráfico
e da violência – mas só porque é adotado por
um daqueles lupanares do pensamento de que falava Balzac, isto é,
pela redação de um jornal da mídia corrupta.
Que, como se sabe, é uma instituição muito
humana…
Coerente na falsidade, o filme descreve o bairro carioca de Cidade
de Deus como tendo origem em favelados que foram desabrigados por
incêndios e enchentes. O que serve para esconder, depois de
quase 40 anos, que o bairro foi um produto da política lacerdista
de banir os favelados da zona Sul do Rio para o que, na época,
era o fim do mundo – política que, infelizmente, persistiu
no início do governo posterior, quando o Rio foi assolado
por uma enchente colossal.
O braço do lacerdismo que executava a deportação
dos favelados era, não por coincidência, o mesmo que
se divertia atirando mendigos no Rio da Guarda. Mas por que, depois
de tantos anos, o filme tenta esconder o que é tão
conhecido? Porque essa foi a política da mídia colonizada
e da canalha entreguista na época. E porque ela continua
a ser a política dessa canalha, na impossibilidade de matar
todo mundo de fome, doença, facada e tiro.
REALIDADE IMUTÁVEL
Essa é a questão: porque a situação
chegou ao atual descalabro? Porque alguns celerados usurparam o
poder e entregam o país à casta imperial residente
em Nova Iorque e Washington, ou porque esse povo – o nosso povo
– é incapaz, preguiçoso, burro, violento e incompetente?
É evidente que é isso o que é destilado – ainda
que os autores do filme não tenham consciência disso
– em ?Cidade de Deus?. Senão, como explicar o desfecho, onde
as crianças apoderam-se do tráfico, depois de eliminados
os traficantes de antes? Aliás, pelo jeito que essas crianças
têm prazer em assassinar, deve tratar-se de um problema genético.
Ou seja: nada vai mudar, porque nada pode mudar. E por que não
pode mudar? Porque esse povo é assim mesmo. Salvação,
só sendo adotado pela mídia, ou seja, pelo que há
de mais canalha e mais criminoso dentro do país.
MOVIMENTO COMUNITÁRIO
Tanto é assim que, em sua pretensa ?história? do bairro,
o filme omite qualquer referência ao fato de que o movimento
comunitário do bairro foi, e é, extremamente ativo
– e assim tem sido há quatro décadas – e sua população
participou maciçamente nas derrotas eleitorais da ditadura
a partir de 1974.
Cidade de Deus é um bairro, antes de tudo, de trabalhadores.
Mas com exceção do peixeiro que é pai do narrador
– um sujeito apresentado como violento, porque desfere um santo
tapa no filho mais velho, exigindo que vá trabalhar ao invés
de participar de assaltos e fumar maconha – quase nenhum aparece,
servindo somente como pano de fundo para os traficantes. Um deles,
o trocador de ônibus, adere a uma quadrilha do narcotráfico,
mas apenas ?por motivos pessoais?, isto é, para vingar-se
individualmente da violência que lhe infligiu o chefe do outro
grupo (cujo motivo, por sua vez, foi o de que, ao contrário
dele, o trocador de ônibus era ?bonito? e atraía as
mulheres).
ABANDONO
Evidentemente, é verdade que existem traficantes no bairro
e é verdade que eles estão à solta, diante
da destruição do Estado pela canalha entreguista.
Essa, gosta de falar em ?poder paralelo? e outras patranhas. Trata-se
de algo cínico e sórdido. Não existe poder
paralelo, o que existe é abandono, traição
ao país e pilhagem do poder público. É isso
o que faz tráfico e os traficantes vicejarem. O lumpen, a
banda podre que cresce nos bairros populares é apenas a contrafação
do lumpesinato que se abriga no Planalto e adjacências, com
sua meia dúzia de favorecidos, sua mídia e, até,
um ou outro que se acredita cineasta. Não é possível
mudar a situação do país, do povo, sem afastar
essa corja do poder. E é isso mesmo o que estamos fazendo
no momento."