VILLAS vs TEMER
"Isenção, não. Transparência", copyright Jornal do Brasil, 10/11/02
"A vitória de Luiz Inácio Lula da Silva está abrindo caminho para uma amplo espectro de reflexões. Uma delas diz respeito a nós jornalistas, particularmente. É a que levanta a justa preocupação com os que, de forma oportunista, se transformam em apologistas do novo ídolo, a quem antes só endereçavam rejeição preconceituosa. E que é provocada por artigo instigante de Villas-Bôas Corrêa, publicado aqui no JB.
Quanto ao diagnóstico, não há o que contestar. Chega a ser assustador o assédio a Lula – não o popular, porque esse, mesmo eventualmente efêmero, é desinteressado. Mas o dos ?amigos do poder?, em todos os segmentos sociais, profissionais ou partidários.
É no desdobramento, na formulação sobre doutrina e ética jornalística, e na solução proposta, que está o xis do problema.
Villas-Bôas inicia seu artigo de forma contundente. ?Não posso, não devo, não quero mudar. Não vou aderir? , antecipando a conclusão não menos provocante: ?Não sou a favor nem contra. Simplesmente não vou aderir?. A referência do que é correto estaria, então, no Compromisso com a isenção, gravado no título.
A partir daqui, peço passagem para a discordância.
Onde estaria determinado que o contraponto da adesão é a isenção? E como se mede ou se julga a isenção? Mais ainda: onde está definido que possa haver isenção onde existe avaliação emocional, sentimental, e portanto subjetiva, de qualquer episódio? Nenhum magistrado é isento, ou não haveria a possibilidade do recurso contra a decisão de sentença firmada por interpretação pessoal, e evidentemente subjetiva, de fatos objetivos. Nenhum articulista é isento. Ele pode originar sua interpretação em fatos ou dados concretos. Mas a conclusão sobre tais fatos ou dados, e de suas possíveis consequências, se dará a partir de parâmetros subjetivos que lhe são próprios. Ninguém é isento, a não ser quando se exime de tomar posição. Pode, no máximo, ser objetivo, desde que se limite à narração, sem passar à interpretação.
Quando estabelecemos o direito democrático do contraditório – cláusula pétrea do bom jornalismo -, o fazemos por admitir a possibilidade de interpretações até antagônicas sobre um mesmo ato.
Um exemplo que nos concerne está na análise da passagem de timão do presidente Fernando Henrique Cardoso para seu sucessor, Luiz Inácio Lula da Silva. De forma absolutamente legítima é possível qualificá-la, como o fiz recentemente, nos termos de uma ?transição marota?. Porque, para além das razões objetivas que me levam à afirmação – receber, de um preocupado membro da já nomeada equipe, a informação do não fornecimento, até quinta feira à noite, da senha que lhe permitisse acessar ao menos o correio eletrônico -, há principalmente as subjetivas. São os pressupostos da intenção e propósitos de FHC, de transformar a derrota eleitoral em ganho político. O que não tira o direito de, no dia seguinte, de forma igualmente legítima, num texto em que desanca o PT, Villas-Bôas definir a mesma transição com visão oposta – ?(…) da entrega das senhas que dão acesso aos dados sigilosos. FH retoca sua biografia antes de ganhar o mundo(…)?.
Ambos exercemos transparentemente nosso papel de intérpretes de um único objeto. Mas claramente sem isenção, e com preferências explícitas. Até porque, a escolha entre FH e FHC, para se referir ao presidente da República, já representa um opção política. Todo repórter político sabe muito bem: para irritar o Planalto, use FHC ao se referir ao presidente. Não lhe agrada.
Quem tem grandes articulistas da imprensa mundial como referência sabe por que os lê. Do conservador francês Raymond Aron ao marxista inglês Eric Hobsbawm, pode-se dizer tudo, menos que sejam isentos. E aqui mesmo, por nossas plagas, quem procurava isenção, quando lia Nelson Rodrigues, Paulo Francis ou João Saldanha? Eram e são lidos exatamente pelo que previsivelmente opinavam, do futebol e da política à vida como ela é.
Aliás, se isenção, e não a transparência, fosse critério para articulistas, não estaríamos debatendo numa seção cujo título é Outras Opiniões, não é mesmo?"
"Não é nada disso, Temer", copyright Jornal do Brasil, 13/11/02
"Em artigo de texto impecável de jornalista que conhece o seu ofício, enfeitou o alto desta página na edição de domingo, dia 10, com o título Isenção, não. Transparência, de registro de discordância critica, o deputado Milton Temer, com dupla militância na imprensa e na política. Distinguiu-me com o privilégio, a que não estou habituado, de comentar as minhas modestas restrições a exageros e distorções no noticiário e em algumas colunas, no percurso dos dois turnos da campanha presidencial e no desfile de adesões dos que surfaram na onda vermelha que varre o país.
O alvo dos afagos e piparotes do ilustre meio-confrade foi a minha colaboração, que Temer qualifica com benevolência de ?artigo instigante?, e que intitulei de Compromisso com a isenção, publicada na edição de quarta-feira, dia 6. Nesse artigo apenas procurei, pelo visto sem sucesso, expor e defender o que chamo com ênfase excessiva de modelo de cobertura política legado pela minha geração, da qual sou o único sobrevivente no exercício ininterrupto de 54 anos de profissão. Em síntese que encolhe para meia dúzia de características, alinhei, em fila curta, a isenção e a imparcialidade, como escoras da credibilidade na análise interpretativa e nas especulações sobre os prováveis desdobramentos.
Na tática esperta do vôo invertido de morcego, Milton Temer primeiro sopra, para amortecer as fisgadas, que não sugam o sangue. Implica com a isenção, inocente substantivo que mestre Aurélio define como ?ato ou efeito de eximir(se) ou isentar(se)?. E aponta, como sinônimos, ?imparcialidade ou neutralidade?.
Não custa ceder a má vontade com a pobre da isenção e buscar amparo no mais preciso dos seus sinônimos. Fiquemos, portanto, na exigência da imparcialidade como um dos compromissos do rep&ooacute;rter, colunista, comentarista ou analista político – degraus ou patamares da mesma escada. De volta ao Aurélio, encontramos no verbete imparcialidade a sucinta informação de que é a ?qualidade do imparcial?. E logo acima, o enquadramento preciso de imparcial; ?1 – Que julga desapaixonadamente; reto, justo, 2 – Que não sacrifica a sua opinião à própria conveniência, nem às de outrem?.
Ora, meu caro Temer, estamos falando de coisas parecidas, mas não exatamente iguais. Não nego aos jornalistas políticos o direito óbvio e elementar das interpretações antagônicas sobre o mesmo fato ou conduta e muito menos o condimento da emoção que acrescenta o molho da vivacidade para despertar a atenção do leitor. Muito menos o dever da absoluta fidelidade às suas convicções, aos princípios éticos, aos valores democráticos. Nas nossas recaídas ditatoriais, nas fases negras de censura, o jornalista deve ocupar a sua trincheira e lutar com as armas disponíveis em seu arsenal.
Nos seus exemplos, você cita o Nelson Rodrigues, o Paulo Francis e o João Saldanha como jornalistas que eram lidos pelo que opinavam, ?do futebol e da política à vida como ela é?. Exatamente três extraordinários jornalistas, individualidades fortes e que exercitaram o jornalismo opinativo em diferentes escalas. O meu amigo Nelson Rodrigues foi um escritor excepcional, que fez literatura no jornalismo. As suas crônicas esportivas estão sendo reeditadas em série, repetindo o enorme sucesso. Mas Nelson jamais foi um repórter político. Nem ele nem Paulo Francis, desabusado e surpreendente e que espinafrou políticos e partidos nacionais de Nova York, onde morou nas duas últimas décadas de vida.
João Saldanha foi o mais festejado comentarista de futebol que conheci. Imbatível no rádio e na televisão, com a fantástica facilidade de comunicação popular. Escritor de estilo coloquial, com livros publicados e anos de constante atividade em jornais e revistas. Militante comunista durante toda a vida, deu seus palpites sobre a nossa barafunda institucional.
Certamente que cada qual decide seu rumo, obedecendo ao seu temperamento, aos seus conceitos éticos. O que sustento é que o jornalismo político, exercido com plena consciência profissional, distingue-se por singularidades próprias. Quem escreve sobre esporte, sobre música popular ou carnaval não necessita sufocar sua paixão pelo clube, pelo cantor ou compositor ou a escola de samba que desfila no Sambódromo.
Na minha seara é nítida a linha que separa o militante do jornalista. A minha geração, a de Castellinho e de Heráclio Salles, conquistou o seu espaço nos jornais abrindo a vereda da imparcialidade, com o reconhecimento dos diretores e editores da diferença entre a linha opinativa dos editoriais e o noticiário objetivo dos fatos e a sua análise isenta, imparcial.
E não posso, não devo, não quero mudar."