Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Sucessão de tragédias e glórias

Uma relação tensa que nunca vai se romper. Assim pode ser definido o “casamento” entre imprensa e política, nas palavras do jornalista e professor da Universidade de São Paulo (USP) Eugênio Bucci. Também com poucos caracteres, o jornalista Alberto Dines, coordenador do Observatório da Imprensa (on-line e pela TV) e pesquisador sênior do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Unicamp, escreve seu lead sobre este mesmo relacionamento nos últimos dois séculos no Brasil: “A história política do Brasil se confunde com a história militar e ambas atropelam a história da imprensa.” Para Dines, este entrelaçamento da história política, militar e da imprensa brasileira “talvez” tenha sido interrompido somente a partir da década de 1980 com a redemocratização.

Entre 1889 a 1964, período entre a Proclamação da República e o Golpe de 64, ocorreram no Brasil 12 motins, sobre os quais a imprensa sempre se posicionou. Mas sua participação na década de 1960 foi além do posicionamento: pela primeira vez ela conspirou. Na série de quatro vídeos-documentários produzidos em 2014 pelo Observatório da Imprensa, Chumbo quente – 50 anos do golpe de 64, Dines apresenta, com documentos e entrevistas, os fatos de um período ainda pouco revelado da história do Brasil. Entre as suas fontes, estão pesquisadores e colegas jornalistas que viveram com ele a realidade da ditadura militar.

“Diferente de golpes anteriores, o de 64 ocorreu em plena era da informação – ou da desinformação. Foi um golpe preparado e apoiado majoritariamente pela imprensa, logo depois transformada em sua vítima e dócil escrava”, narra Alberto Dines, autor de mais de 15 livros e responsável pela direção e lançamento de importantes revistas e jornais no Brasil e em Portugal entre as décadas de 60 e 90; foi também professor visitante da Escola de Jornalismo da Universidade de Columbia, em Nova York (EUA).

Sem debate e profundidade

Entrevistado pela ComCiência por telefone, Dines responde paciente e didaticamente sobre o paralelo entre a imprensa de 64 e a de hoje no Brasil, mas deixa bem claro já no início: “Você cria uma semelhança aparente, mas as circunstâncias são diferentes, porque naquele período havia a Guerra Fria, a renúncia de Jânio (Quadros) e a esquerda estava ainda se descobrindo. No cenário de hoje, nós saímos de uma eleição com vitória estreita, que nem foi comemorada”. Para o jornalista, em 64 “a imprensa esqueceu seu papel de moderadora”, enquanto agora ele entende que a imprensa tem tido uma atitude solerte. E critica: “Está faltando espaço para o debate e a reflexão”. Ele aponta como um dos motivos para essa falta de espaço o fato de a imprensa ter virado mídia, uma indústria de entretenimento.

“Essa indústria, com novelas, séries, realities shows, mostra um processo cultural de forma muito simplificada, que emburrece as classes média e média-alta, que hoje leem Veja e O Globo e acham satisfatório. Acho preocupante não ter uma elite pensante. A mídia emburreceu a sociedade brasileira. E as mídias sociais, que só crescem, não se aprofundam. A veemência não é proporcional à profundidade. Isso não é debate”, diz o jornalista.

Um único discurso

A falta de debate também está no posicionamento em bloco dos principais veículos de comunicação do Brasil, segundo o jornalista. “Entre os jornais de maior ressonância, nós temos hoje Folha de S. Paulo e O Globo, que são sócios no jornal Valor. Isso cria uma situação constrangedora do ponto de vista político-institucional. Quando temos jornais com diferentes posições, há uma despolarização. Na imprensa hoje parece que há um Tratado de Tordesilhas. Eles se bicam, mas não se mordem, não divergem. Isso é uma situação terrível para a sociedade, para a imprensa e para a política brasileira, porque na verdade temos um grupo só, que diz a mesma coisa, e ajuda a orientar a insatisfação”, declara Alberto Dines.

Dines, no entanto, não acredita que a imprensa é a única força uníssona a orientar ou a empurrar as pessoas para as ruas por fatores artificiais. “Outro dado importante é o papel político das religiões, que mexem com as massas não muito esclarecidas”. Para Dines, a cobertura da imprensa para as recentes manifestações de rua, como a que aconteceu no dia 15 de março deste ano em todo o Brasil, foi bem feita, com divergência apenas com relação a números de participantes. “Houve uma manifestação contra o governo, não há a menor dúvida, e o governo tem sido elogiado por aceitar essas críticas. Mas não acho que a mídia contribuiu para isso. Eu acho que ela tem sido solerte”, avalia.

Equívoco da imprensa

Na série Chumbo quente – 50 anos do golpe de 64, Dines lembra da atitude recente do jornal O Globo, em 2014, de fazer uma autocrítica do seu posicionamento político na década de 60. “Quando no ano passado o jornal O Globo surpreendeu ao reconhecer como equivocado o apoio ao golpe de 1964, admitia que grande parte da imprensa brasileira, além de apoiar a derrubada do presidente João Goulart, apoiou a ditadura nela incubada. Gesto ímpar, infelizmente sem seguidores, que, no entanto, poderá inaugurar o capítulo da diversidade na história da nossa imprensa. A unanimidade além de burra foi a causadora dessa tragédia”, narra Dines no documentário, demonstrando sua preocupação com a falta de debate e de posicionamentos políticos diferentes na imprensa atual.

“Onde a imprensa errou? Errou ao adotar o uníssono, errou ao se submeter a um cronograma militar sem deixar abertura para recuos, ajustes e negociações”, narra Dines no vídeo. “A imprensa não se preparou para a democratização. Era a pressa, a preocupação de ocupar os vazios do poder e os interesses corporativos das empresas. Ela entrou e saiu do golpe sem pensar.”

Contaminada pelo medo

O historiador Carlos Fico, professor da universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), registrou em seu depoimento em Chumbo quente a sua reflexão sobre a sociedade brasileira de 64 e a semelhança que ele enxerga em relação à atual: ”Um jornalista me pediu para eu dizer em uma palavra quais seriam as razões para o golpe. Eu pensei e disse que foi o medo. O medo que existe ainda hoje, que é a expressão do autoritarismo. O medo de perder privilégios. Porque as reformas de (João) Goulart, que a sociedade discutia, tinha tabelamento de aluguéis, reforma universitária para ampliar as vagas no ensino público, medidas que não eram comunistas nem revolucionárias, mas possibilitavam algum desafogo para os pobres e miseráveis. Isso gera um medo tremendo no Brasil. E esse medo ainda existe hoje”. A imprensa foi contaminada pelo medo e até os jornais progressistas acabaram entrando no processo golpista. Havia muito medo de que as reformas fossem implementadas e que mudassem completamente o Brasil.

No mesmo documentário, o jornalista Milton Temer, contemporâneo de Dines, declara em sua entrevista que: “a mídia não tem só um papel de observador e registrar a história, principalmente nos grandes momentos, porque ela desempenha um papel fundamental sobre o senso comum, que é a maior parte da população. São aqueles que não estão no comício, não estão na militância, mas são aqueles que constituem a massa crítica eleitoral e a massa crítica da base social”.

Melhores coberturas

O professor e jornalista Eugênio Bucci acredita que a expansão dos meios de comunicação coincide com a expansão da esfera pública, o ambiente gerado pelos debates públicos em torno dos assuntos de interesse comum. “Isso significa que o raio de alcance dos veículos de imprensa coincide com o raio de abrangência das comunidades que participam da vida política de uma sociedade. Ou, em outras palavras, a população que participa de um jeito ou de outro da interação e da interatividade proporcionada pela comunicação social é a mesma população que participa dos rituais da democracia, das eleições, dos protestos, das mobilizações. A base social de uma coisa e outra é exatamente a mesma”.

Autor de livros sobre ética no jornalismo, com passagens pelos principais jornais e revistas do Brasil e prêmios nacionais e internacionais por sua atuação como presidente da Radiobrás entre 2003 e 2007, Bucci avalia a cobertura política pela imprensa de hoje, especialmente das eleições, como a melhor dos últimos tempos, “nunca foi tão boa”. “Basta compararmos a cobertura da eleição atual (de 2014, na disputa eleitoral presidencial entre os candidatos Dilma Rousseff e Aécio Neves) com a cobertura das eleições de vinte ou trinta anos atrás (de 1989, entre os candidatos à presidência Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Collor de Melo, a primeira eleição direta após 29 anos no Brasil). Na Globo, por exemplo, os níveis de equilíbrio e de equanimidade melhoraram bastante. Mas ainda temos muito a melhorar.”

Mídias sociais

Mas Bucci também chama a atenção para o uso errado da palavra “mídia”. “É um nome genérico vindo da pronúncia em inglês da palavra latina ‘media’, plural de ‘meio’, que se dá à indústria da comunicação vista de um modo um tanto grosseiro e apressado. Usamos mídia como sinônimo de imprensa, o que é de um barbarismo indescritível. A imprensa reflete mais diretamente a reunião dos cidadãos em público. A ‘mídia’ é uma indústria, um mercado, um aglomerado de meios e linguagens múltiplas, com modelos de negócio muito diversificados. Mídia incluiu outdoors, games, indústria fonográfica, cinema e sites de pornografia. Imprensa é outro universo”. E complementa: “Existe mídia sob uma ditadura, por exemplo. Mas a imprensa na ditadura tende a ser tutelada, asfixiada, domesticada”.

Sobre a relação entre imprensa e política, Bucci entende que a primeira não pode existir sem a segunda. “A política tende ao poder. A imprensa critica o poder e, nessa perspectiva, capacita os cidadãos a delegarem o poder e também a fiscalizá-lo. Como são perspectivas divergentes, as relações entre as duas tende a ser tensa, mas nunca se rompe”, diz o jornalista, para o qual as mídias sociais, para o bem e para o mal, chegaram para ficar. Elas proporcionaram uma enorme ampliação do poder que a vida social sempre teve de pautar as coberturas. “Por meio delas, a instrumentalização da opinião pública por parte do poder econômico também se expandiu. Deram mais vasos comunicantes.”

E o jornalista?

Dentro desse contexto, como fica o profissional jornalista? Ele é agente de manobra ou tem conseguido cumprir seu papel jornalístico? Para Bucci, as duas alternativas são verdadeiras. Situações difíceis até hoje são lembradas por jornalistas que viveram a ditadura militar. Alberto Dines lembra quando, em 1973, foi demitido do Jornal do Brasil por “indisciplina” dois meses depois de não obedecer a ordem de omitir na edição do jornal o golpe que acontecera no Chile e o suicídio do presidente Salvador Allende. Na mesma década, o jornalista Cláudio Abramo também foi demitido da Folha de S. Paulo após criar uma página de opinião feita por jornalistas banidos pela censura.

Em seu artigo “A mídia e o golpe militar”, publicado em 2014 no volume 28 de Estudos Avançados, o jornalista Audálio Dantas lembra que um único veículo não aderiu ao golpe de 64, o jornal Última Hora. Os grandes jornais do eixo Rio-São Paulo, no entanto, ampliavam a cada dia o espaço para respaldar o movimento contra o presidente João Goulart. O GloboO Estado de S. Paulo e Tribuna da Imprensa participavam ativamente da conspiração. Em 2005, quando o próprio Audálio entrevistou o jornalista Ruy Mesquita, diretor do Grupo Estado, ouviu do seu entrevistado a seguinte resposta sobre o apoio dos jornais ao golpe: “Não só apoiamos, como conspiramos”, disse o empresário. Até mesmo jornais de tradição liberal, como o Correio da Manhã, ficaram alinhados ao processo de desestabilização do governo. Nos dias 31 de março e 1º de abril de 64, dois editoriais ficaram famosos, com os títulos: “Basta!” e “Fora!”.

A censura

Depois do golpe, com a ditadura instaurada, o que veio a seguir foi o período da censura. ”Havia uma farsa de que a imprensa estava sendo dominada pelos comunistas. E era o contrário. A imprensa estava dominada pela censura”, conta Audálio Dantas. As arbitrariedades, as prisões e as práticas militares, entre elas a tortura, não podiam ser noticiadas. O jornalista Vladimir Herzog, morto nas instalações do DOI-CODI, no quartel-general do II Exército em São Paulo, foi o primeiro entre as vítimas de tortura a não ser sepultado em silêncio. A partir daí, os jornais começaram a noticiar o que acontecia no regime militar.

O jornalista Alberto Dines acredita que nas últimas décadas houve um processo de degradação da imprensa, que perde aos poucos a qualidade. “Mas isso é cíclico, não é definitivo. O mesmo que acontece hoje nos jornais, está acontecendo na literatura”, adverte. “Eu sou otimista e acho que a imprensa bem feita terá sempre o seu lugar. Quando este ciclo se consolidar, vamos ver alteração no quadro e vai melhorar”, conclui Dines, que no dia 7 de abril, Dia do Jornalista, foi ao lançamento do livro Todo aquele imenso mar de liberdade – A dura vida do jornalista Carlos Castello Branco(Record, 437 páginas), do jornalista e escritor Carlos Marchi, que ele recomenda e diz ser leitura obrigatória para os jovens jornalistas: “Carlos Castello Branco, o Castelinho, foi a demonstração de que os anos de chumbo, apesar da censura e dos horrores da repressão, também ofereceram maravilhosos exemplos de brilho, de lucidez, ironia e integridade. Isso traz um pouco de luz para o jornalismo e os jovens jornalistas”. [Jornalista e escritor, membro da Academia Brasileira de Letras, Carlos Castello Branco é natural de Teresina, Piauí, formou-se em direito, em Minas Gerais, em 1943, mas dedicou toda a sua vida ao jornalismo. Iniciou a carreira nos Diários Associados, passando, posteriormente por importantes veículos, como O JornalDiário Carioca, revista Cruzeiro e Jornal do Brasil. Foi presidente do Sindicato dos Jornalistas do Distrito Federal de 1976 a 1981, enfrentando os militares, prisão e depoimentos no DOPS. Faleceu em 1993, aos 73 anos.]

***

Adriana Menezes, da ComCiência