LINGUAGEM JORNALÍSTICA
Luciano Martins Costa (*)
Vamos convencionar o seguinte: a grande maioria dos jornalistas ama sua profissão, a grande maioria dos donos de jornais se orgulha da atividade que escolheu ou herdou. O que é, então, que impede uns de realizar um trabalho satisfatório e outros de conduzir com eficiência seus empreendimentos?
De certa maneira, o cenário tem familiaridade com o fato de as instituições públicas não conseguirem atuar efetivamente sobre carências sociais, de organismos policiais não conseguirem agir com presteza no combate ao crime organizado, de a Justiça não alcançar, por exemplo, os responsáveis por um partido que pratica, confessa e reincide em falsificações do processo eleitoral. Não se pode analisar a imprensa sem esse olhar sobre o modelo inepto em que vivemos.
É como se a imprensa tivesse perdido a capacidade de compreender e revelar as causas mais profundas dos eventos que noticia. Vejamos o artigo de Ciro Reis, publicado na Gazeta Mercantil (21/11/02): num texto curto e recheado de números, Reis nos informa sobre uma pesquisa da imagem corporativa a respeito de noticiário negativo sobre empresas com atuação no Brasil, publicado por jornais e revistas. Fraudes foram tema de 34,3% dessas notícias e artigos, problemas de gestão e desempenho ocuparam 30,3% desse material, problemas de qualidade gerando substituição de produtos e ressarcimento motivaram 22,4% do noticiário negativo, 7% foram casos de propaganda enganosa e 6% se referiram a demissões e fechamento de fábricas.
Ciro Reis enfoca seu texto na aparente incapacidade da maioria das empresas envolvidas de dar respostas efetivas à opinião pública através da mídia, o que sem dúvida faz sentido. Mas há outro aspecto não menos interessante, que nos remete à ineficácia da mídia em dar ao leitor um retrato satisfatório sobre o fenômeno tão bem apanhado pelo articulista. Com o olhar preso em Brasília e o foco hipnotizado pelo Banco Central, jornais e revistas repetem no noticiário econômico o vício das sessões policiais, nas quais a cobertura se resume à narração recheada de declarações. Nem se fale do noticiário político, que desapareceria das páginas impressas se os manuais de redação limitassem o uso de aspas.
Dias melhores
Não me lembro de haver lido qualquer trabalho relevante sobre os danos econômicos e sociais produzidos pela ação deletéria ou negligente de gestores de empresas. Como parte num processo contra uma grande seguradora, tenho observado o alto custo provocado pelo descaso, má-fé, por contratos mal elaborados ou por simples e trágica incompetência de administradores ? em tempo de advogados, custas judiciais, horas roubadas ao trabalho produtivo etc. Pode-se calcular quanto custa ao país a soma dos casos que passam pelos órgãos de defesa do consumidor, e os que nem chegam a eles. No noticiário que revela a origem desses fatos, nota-se apenas a obsessão pelos números. Nenhuma reflexão.
O que amarra a imprensa? O que mantém as pautas travadas nos aspectos mais superficiais e, geralmente, menos relevantes dos fatos? O que nos impede, jornalistas, de oferecer com nosso trabalho uma pista sobre como deveriam funcionar as instituições? Perdemos a capacidade de explicar o mundo? Ou a própria linguagem jornalística perdeu o poder de significar a realidade?
Quando um jornal centenário e respeitoso aceita tratar os personagens do submundo por seus nomes de guerra, que lhes define certa honorabilidade e valor em seus guetos, que serviço está realmente prestando? Por que não chamá-los por seus nomes civis, lembrando com isso aos leitores, sutil mas eficientemente, que o crime é uma excrescência da sociedade? E quando o texto jornalístico se apropria do jargão do submundo, aceitando como parte do seu dicionário aquele subdialeto policialesco-marginal, o que é que temos? Jornalismo-verdade ou jornalistas esquizofrênicos dando um caráter pop àquilo que é simplesmente deletério?
Talvez esteja, exatamente aqui, na linguagem, o eixo da questão. Quando um repórter de economia relacionar claramente a má gestão de empresas a iniciativas de lesa-sociedade, quando o repórter político vincular explicitamente a fraude eleitoral ao crime comum de estelionato ou falsidade ideológica, quando o repórter policial rejeitar a sedução do jargão policial, estaremos assistindo a um saudável distanciamento entre a imprensa e seu objeto, talvez a melhor maneira de resgatar o papel educativo do jornalismo. Tornada relevante na percepção da sociedade, a imprensa poderia sonhar com dias melhores, até mesmo como negócio.
(*) Jornalista