OS SERTÕES, 100 ANOS
"O livro que desmascarou a República", copyright O Estado de S. Paulo, 1/12/02
"Cem anos depois, Os Sertões, de Euclides da Cunha, continua dividindo opiniões. É raro que não se reconheça sua qualidade e importância, ainda que muitos o considerem um livro chato. As opiniões se dividem sobre o alcance do livro. Euclides dizia, por exemplo, que sua pretensão era promover o ?consórcio entre ciência e arte?; mas não são poucos os estudiosos que descartam sua ciência e ficam com sua arte. Outros também criticam seu trabalho como repórter; no entanto, o livro é considerado uma obra-prima do jornalismo ensaístico brasileiro. A maior divisão, que engloba essas e outras, diz respeito à intenção do autor. Para uns, Euclides tenta e consegue ?advogar pelos sertanejos?, como em uma carta disse ter pretendido; para outros, ele não se desvencilha de seus preconceitos positivistas, de sua noção do homem como produto do meio, fanático porque atrasado.
É uma reação comum a relatos que mergulham na barbárie. No caso mais famoso, O Coração das Trevas, de Joseph Conrad, há quem veja ali uma defesa do colonialismo, o diagnóstico da ausência de civilização naquele povo (inspirado na dominação do Congo pelo rei belga Leopoldo II), e há quem veja ali uma crítica ao colonialismo, a denúncia da barbárie promovida pela tal civilização (pois houve um massacre em massa). No caso de Os Sertões, ele também costuma ser tido de um lado como uma descoberta do ?Brasil profundo?, em que os sertanejos demonstram mais dignidade do que os urbanos, e do outro como uma crítica ao primitivismo daquela gente. Mas, como em Conrad, a intenção central em Euclides é justamente captar essa ambigüidade de sentimentos.
Por não ser um romance, Os Sertões pode não deixar clara a existência de tal subjetividade. Mas o livro é essencialmente a história de uma transformação pessoal – a história de um engenheiro militar, com sólidos conhecimentos de geologia e geografia, que se veste de correspondente do Estado, parte para o semi-árido baiano a fim de entender por que a República estava a ?curvar a cerviz? (como diz em outra carta) para uma seita monarquista e, lá chegando, acompanha o desenrolar da campanha de seus pares com uma mescla de assombro e indignação – assombro diante da capacidade de resistência e ardil dos homens do local, indignação diante da crueldade e burrice das táticas militares. Tal como o negociante de marfim Kurz ficando mais bárbaro que os bárbaros que sonhava catequizar, o Exército se revela primitivo ao realizar o que Euclides chamou de ?charqueada? e os jornais de hoje chamariam de carnificina.
Esse é o fulcro da genialidade do livro, cujo estilo – apesar de rejeitado mais tarde pelo próprio Euclides como imaturo – consegue, para o leitor que não se sente incomodado com as palavras que desconhece, traduzir tanto a grandiosa complexidade da situação quanto os ardorosos desdobramentos do conflito. Cada uma das partes do livro tem seu próprio andamento: A Terra, ?andante maestoso?; O Homem, heróico-trágico; A Luta, veloz e vivaz.
Informações científicas abrem caminho para especulações sociológicas e desembocam numa narrativa estilística, onde o ser humano passo a passo toma o primeiro plano, com suas imprevisibilidades e relativismos. É isto, mais que a opção temática, que explica a influência de Euclides sobre tantos romances modernos, como Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, ou Guerra do Fim do Mundo, de Mario Vargas Llosa; e que tenha colhido elogios de poetas como Robert Lowell, que o comparou com Guerra e Paz, de Tolstoi.
Para enxergar melhor esse impacto subjetivo, é importante ir à sua correspondência, ao Diário da Expedição e às reportagens no Estado. Nestas, é impressionante ver como ao fervoroso republicano custa crer que a ?campanha clássica? não marcha gradualmente para a vitória. Como os americanos no Vietnã, Euclides e os combatentes vão descobrindo a astúcia dos adversários, que nasce de seu conhecimento do terreno e se exprime numa tática de guerrilha, de ciladas dispersas, que atraem o inimigo como a aranha à espera das moscas. E o que avulta no espírito do escritor é, acima de tudo, o tamanho da ignorância sobre o que ocorre, como e por quê.
?Procurar-se a verdade neste torvelinho é impor-se a tarefa estéril e fatigante de Sísifo?, divaga o repórter, depois da seqüência de desastres militares.
Num texto de 10 de outubro de 1897, o correspondente relata a chegada ao último círculo do inferno: ?o arraial imenso de Canudos?. Em cima do cavalo, olha ao redor e se surpreende com sua ?disposição topográfica e constituição geológica? – que comporiam os estudos de A Terra, no livro que levaria cinco anos sendo escrito. O arraial lhe parece um labirinto inextricável, como um abrigo africano amaldiçoado, e ele confessa: ?Quando os tiros dela (da cidade) partem, de todos os pontos, irradiando para todos os pontos da linha amplíssima do cerco, a fantasia apenas divisa ali dentro uma legião invisível e intangível de demônios.? No futuro – no Araguaia, no Carandiru ou em Carajás – essa mesma fantasia demonizante descambaria em equivalentes massacres.
Na verdade, Euclides espera que a ordem e a razão voltem a ser os valores vocacionais da República e, embora considere admirável a força dos sertanejos, nem por isso deixa de vê-los como fanáticos e matutos. Mas, embora boa parte de sua antropologia soe obsoleta (além de alguns equívocos geológicos e geográficos), não deve restar nenhuma dúvida sobre sua ênfase.
Euclides diz com todas as letras: ?Vivendo 400 anos no litoral vastíssimo, em que palejam reflexos da vida civilizada, tivemos de improviso, como herança inesperada, a República. Ascendemos, (…) deixando na penumbra secular em que jazem, no âmago do país, um terço da nossa gente. Iludidos por uma civilização de empréstimo?, decreta em O Homem. E adiante: ?E quando pela nossa imprevidência inegável deixamos que entre eles se formasse um núcleo de maníacos, não vimos o traço superior do acontecimento. Abreviamos o espírito ao conceito estreito de uma preocupação partidária. (…) Vimos no agitador sertanejo, do qual a revolta era um aspecto da própria rebeldia contra a ordem natural, adversário sério, (…) capaz de derruir as instituições nascentes.?
Euclides tentou recuperar em Os Sertões o traço superior do acontecimento: a estreiteza de espírito de uma república emprestada convertendo-se em intolerância brutal. É este o quadro histórico que pinta, com a força que só possuem aqueles que enfrentam sua própria ilusão e, expandindo seu espírito, dão a toda uma nação a oportunidade de também fazê-lo.
"Diagnóstico da formação da sociedade brasileira", copyright O Estado de S. Paulo, 1/12/02
"O livro de Euclides da Cunha, Os Sertões, é uma obra que, em certos aspectos, tem muito a ver com a realidade atual do Brasil. A importância do livro reside sobretudo no fato de Euclides ter focalizado de perto o problema das nossas disparidades sociais, regionais, ainda agora bastante visíveis. Euclides não só denunciou um crime (o do Exército contra os canudenses), mas fixou um problema que está na formação da sociedade brasileira – o do desprezo histórico às populações interioranas do País, que ainda agora se deslocam para virar miseráveis nas grandes cidades. E esse fluxo de pessoas para os grandes centros urbanos (que se intensificou desde o início da segunda metade do século 20) é, em grande medida, fruto do modelo econômico, da falta de uma reforma agrária.
Se se formula a pergunta: o que faz com que Os Sertões tenha status de literatura e, mais, seja aclamado em seus cem anos como uma das mais importantes obras da cultura brasileira? A resposta é: o estilo de Euclides.
Sobre o estilo euclidiano já falaram em ?jogo antitético?, em ?barroco científico?, etc. É visível em Os Sertões uma mistura dos gêneros literários (o épico, o lírico e o dramático). Além disso, o esforço de Euclides em decifrar aspectos fundamentais da nossa nacionalidade é um atributo literário de imenso valor. Um outro fator é o da intertextualidade. Ou seja, a grande massa de informações com as quais Euclides trabalha no livro, apoiando-se amplamente nas teorias do seu tempo (algumas delas hoje já reconsideradas). Citando Walnice Nogueira Galvão: ?Em ?A Terra?, são mobilizados peritos em geologia, em meteorologia, em botânica, em zoologia, em física, em química. Em ?O Homem?, o mais polêmico e que gera toda espécie de conjecturas, são passados em revista escritos de etnologia, de história da colonização, de folclore, de psiquiatria, de neurologia, de sociologia.
Na parte de ?A Luta?, o autor recorre não somente a suas próprias reportagens e anotações em cadernetas de campo, mas também aos registros de outros correspondentes, às ordens do dia do Exército, aos relatórios de governo.?
Violência – A Guerra de Canudos – que ocorreu entre 1896 e 1897 no interior da Bahia, com quatro expedições militares contra o arraial fundado por Antonio Conselheiro – foi um dos episódios mais sangrentos da nossa história. Ela se dá no momento inicial da República, tornando-se um conflito que revela bem o lado violento da modernidade.
Euclides, em Os Sertões, elabora muito bem a ?inversão de papéis? (aspecto que Roberto Ventura comenta com brilho em seu ensaio Euclides da Cunha no Vale da Morte, que consta de O Clarim e a Oração: Cem Anos de ?Os Sertões?, livro que organizei e que foi lançado em agosto último pela Geração Editorial). Ou seja, em certos momentos Euclides caracteriza o Exército como bárbaro e os jagunços como civilizados. Assim, a importância de Os Sertões está ainda no fato de ser uma obra que abre o século 20 fazendo uma das mais importantes interpretações do Brasil a partir da realidade específica do sertão.
Uma pergunta que se costuma fazer é: sem o texto de Euclides, a Guerra de Canudos ganharia o alcance que teve? A resposta: é provável que não. O livro de Euclides, por sua construção, por sua qualidade literária, terminou fazendo com que a Guerra de Canudos permanecesse viva, permanentemente lembrada, amplamente discutida. De fato, o alcance do episódio foi muito maior com o relato agudo de Euclides. Se lembrarmos do Contestado, por exemplo, veremos que não houve um ?livro vingador?, uma obra com força literária que fizesse com que esse episódio – tão violento quanto o de Canudos – permanecesse vivo como o conflito no interior da Bahia relatado por Euclides. De qualquer forma, a associação mais nítida que se tem feito de Canudos é mesmo com o Contestado, levante que se iniciou em 1912 e foi até 1916 na região Sul (Santa Catarina/Paraná). O líder desse levante, o profeta/curandeiro Miguel Lucena Boaventura, que adotou o nome de José Maria, tinha certas semelhanças com o Conselheiro. O Contestado e Canudos têm pontos parecidos – condenação à República, fundação de uma cidade santa, etc. Um e outro, fundados em bases messiânicas, tiveram como raiz problemas de natureza econômica e política. Mas, repito, o Contestado não teve o Euclides que merecia.
E como definir Os Sertões em termos de gênero? Nesse problema de classificação da obra há pelo menos três posições. Há aqueles que acham, como o historiador da literatura Alfredo Bosi, que não se deve enquadrar o livro em ?determinado gênero?, já que ?a abertura a mais de uma perspectiva é o modo próprio de enfrentá-lo?. Há quem viu, caso de Afrânio Coutinho, o texto euclidiano como ?obra de ficção?. Há ainda aqueles, como Massaud Moisés, que entendem como ?cômoda? a posição de não enfrentar a questão da classificação da obra – daí dizer que o livro se trata de um ?ensaio recheado de elementos estéticos e literários?. Fico com a opinião de Bosi – é a mais coerente, e a que mais atende à natureza do livro. Isso porque a obra permite, efetivamente, várias entradas. Ela acata leituras a partir de vários pontos de vista. Vejo, por outro lado, que a leitura do livro como obra literária (ou pelo menos como ?artefato verbal?, para usar uma expressão de Hayden White, historiador norte-americano) tem gerado bons trabalhos. Entre os bons ensaístas da questão literária de Os Sertões, aponto Roberto Ventura, Luiz Costa Lima, Walnice Nogueira Galvão, Leopoldo Bernucci e Berthold Zilly.
Lembremos rapidamente de um livro de ficção baseado em Os Sertões propondo uma última pergunta: afinal, como Mario Vargas Llosa traduziu Canudos em seu romance A Guerra do Fim do Mundo, de l981? Bem, a resposta aqui, sem a pretensão de ser definitiva, é também rápida: Vargas Llosa não decifrou tão bem o sentido da guerra como Euclides da Cunha. Ele viu mais ?fanatismos? de todos os lados (os quais curiosamente se equivalem no seu romance) como causa do conflito. Entendo isso como uma redução da História. As causas da guerra têm raiz na formação da sociedade brasileira. Contudo, o livro de Vargas Llosa não deixa de ter um rico diálogo com Os Sertões e vale a pena ser lido.
Já a leitura de Os Sertões se torna necessária sobretudo porque, como bem disse Antonio Candido, é uma obra que assinala ?o começo da análise científica aplicada aos aspectos mais importantes da sociedade brasileira?. E que belo começo! (Rinaldo de Fernandes é escritor e professor de Teoria da Literatura da Universidade Federal da Paraíba. Organizador de ?O Clarim e a Oração: Cem Anos de ?Os Sertões? (São Paulo, Geração Editorial, 2002))"