MÍDIA & LULA
"Comunicação e governabilidade", copyright O Globo, 29/11/02
"O povo brasileiro elegeu Luiz Inácio Lula da Silva para um período de quatro anos à frente do Executivo brasileiro, dando-lhe avassaladores 52,7 milhões de votos. Nos discursos e pronunciamentos à imprensa, o presidente eleito inicia um processo que deve se tornar sua principal preocupação nos primeiros meses de seu governo: conciliar as expectativas e esperanças dos brasileiros, seus eleitores ou não, com os recursos disponíveis para atender a estas expectativas.
Por outro lado, Lula e seu partido têm um programa e uma práxis política que são muito peculiares, forjadas em uma intensa vivência partidária que não é conhecida do eleitor médio brasileiro que, apesar de ter votado no candidato do PT para presidente da República, não é necessariamente um seguidor e um expert deste partido. O programa de governo terá, ainda, que ser negociado no Congresso, onde não tem maioria automática.
No início, todas estas dificuldades estarão soterradas pela avalanche de votos e expectativas positivas, mas depois, na medida em que as dificuldades conjunturais, internas e externas, continuarem cobrando seu preço, o presidente Lula e todo o seu governo precisarão utilizar tudo o que aprenderam em termos de mediação e conciliação política para manter e fortalecer o mandato que receberam das urnas. O processo de comunicação com a sociedade terá que ser também permanente e eficiente, sob pena de isolar o discurso político do futuro presidente, dificultando-lhe o trânsito entre os parlamentares.
Estamos vivendo um momento muito positivo, com a população, a mídia, e até o mercado, comprometidos com propostas de boa vontade e boas expectativas. A manutenção desse estado de espírito favorecerá o ritmo das mudanças e até dos sacrifícios que continuarão a ser pedidos à sociedade.
Mas para isso, é preciso que os canais de comunicação continuem sendo utilizados com a mesma regularidade e talento com que o foram até aqui, tanto pelo candidato Lula como pelo seu partido. E que, dentro desse processo de manter funcionando a roda do círculo virtuoso, a propaganda de governo e de suas instituições possa desempenhar o seu papel.
O povo agradece. Diferentemente do que pregam os detratores do que chamam às vezes, preconceituosamente, de propaganda de governo, o povo conhece e quer, sim, informação e comunicação, principalmente quando o seu conteúdo destina-se a esclarecê-lo sobre fatos que só a publicidade responsável pode fazer chegar ao cidadão de forma organizada e clara.
Em setembro deste ano, a Associação Brasileira de Propaganda divulgou o resultado de pesquisas inéditas encomendadas ao Ibope e ao instituto Retrato que nos dão a todos, governos, anunciantes e publicitários, recados e avisos importantes. O estudo intitulado ?A Imagem da Propaganda no Brasil? foi realizado com grupos estratificados do mercado, em sua etapa qualitativa, e com amostra representativa (2.000 entrevistas) de todo o universo da população brasileira, na sua etapa quantitativa.
À parte a excelente avaliação que os brasileiros, em sua grande maioria, reconhecem na publicidade, a pesquisa do Ibope registrou que 87% dos brasileiros responderam que os governantes deveriam fazer propaganda e prestar contas da administração durante todo o mandato, e não apenas no último ano (esta, sim, uma hipótese quase que unanimemente rejeitada).
O que se identifica aqui é que a propaganda de governo deve ser olhada como um processo político de relacionamento permanente entre os eleitos e seus eleitores, uma via de mão dupla, que serve para que os governantes possam expor atos e decisões de sua administração e para que a sociedade, ao conhecer e se informar de atos do governo, possa interferir, ou simplesmente aprovar, renovando diariamente o mandato recebido das urnas.
Assim como a resposta das urnas, o recado tem endereço certo. O novo governo que se instalará no início do ano que vem sabe que precisará legitimar e fortalecer diariamente o cacife eleitoral recebido, e para isso terá que usar as armas da política e da comunicação eficiente, não só do Executivo, como também de suas empresas, instituições e autarquias.
O governo federal controla diretamente um volume de investimentos publicitários estimado em cerca de R$1 bilhão, incluindo as empresas públicas e as verbas diretamente administradas pela Secom, estas com um poder de comunicação publicitário turbinado pelo recente acordo celebrado entre as empresas jornalísticas, as agências de propaganda e o governo federal, que garante preços de veiculação substancialmente reduzidos para a publicidade de utilidade pública.
Se, ao poder de mobilização do novo governo e das expectativas da sociedade (de que estamos tendo exemplos positivos na entusiasmada discussão e adesão ao projeto Fome Zero) somarmos o poder da propaganda, teremos campanhas de alto valor social e comunitário, campanhas que o público não só espera, mas aponta como prioritárias.
Quase todos os entrevistados pelo Ibope (96%) atribuem grande importância à propaganda de utilidade pública, e 70% reconhecem que este tipo de propaganda causa algum ou muito efeito na sociedade. A lista de sugestões da população para a realização de campanhas de utilidade pública reflete as maiores demandas da população, e reproduz a lista das principais e melhores campanhas já realizadas: combate às drogas nas escolas, combate ao analfabetismo, educação no trânsito, doação de sangue e prevenção de doenças (principalmente Aids), combate à prostituição infantil e à violência contra a criança; estímulo à educação e ao respeito ao idoso.
O novo governo terá que atualizar esta agenda, de acordo com suas prioridades e suas próprias contingências. E para produzir comunicação de qualidade, contará com as agências de propaganda e os publicitários brasileiros, bem mais amadurecidos pelos anos de trabalho para administrações de ideologias diferentes desde 92, o que resultou no compromisso da maioria com as questões de responsabilidade social e cidadania. Ao contrário do que a postura mundana de um ou outro profissional poderia sugerir."
"Cartas Ácidas", copyright Agência Carta Maior (www.agenciacartamaior.com.br), 2/12/02
"Apresentação
Olá. Para quem não me conhece, meu nome é Flávio Aguiar, natural de Porto Alegre. Tenho 55 anos, moro em São Paulo desde os 22, com passagens pelo Canadá e Alemanha. Sou professor de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo desde 1973. Militei no movimento sindical por muitos anos, fui presidente da Associação de Docentes da USP. Militei também na imprensa alternativa durante a ditadura. Foi aí que conheci Bernardo Kucinski, no fim de 1974 ou começo de 1975, quando participei da formulação do projeto do Jornal Movimento, de que fui editor de cultura até o grande racha de 1977. Por isso mesmo devo dizer que não pretendo ?substituir? Bernardo, o que seria, convenhamos, uma ?missão impossível?. Honrado pelo convite que ele me fez para ocupar este espaço durante suas férias, pretendo compartilhar com vocês algumas reflexões sobre este período curioso e importante da nossa vida política e cultural, que estamos chamando de ?A transição?. Como vejo muita TV, ela estará, acho, muito presente nestes comentários. Também pretendo incluir alguns comentários sobre publicidade e sobre cultura. Com esse cardápio chegaremos ao 1o. de janeiro de 2003. Depois veremos o que fazer.
Que está acontecendo?
No dia 30 de outubro, três depois da consagração de Lula, a TV passou uma cena emblemática sobre ?o que está acontecendo?. Ou sobre como se pretende ou se pode ler este ?o que está acontecendo?. Primeiro apareceu o ainda deputado (senador eleito) Paulo Paim defendendo a luta histórica pelo aumento do salário mínimo e afirmando que continuaria esta luta. Corta: aparece o deputado João Paulo Cunha dizendo que o governo do PT ?dará o que puder, o que for possível?. Corta de novo. O repórter então faz a clássica pergunta ao deputado Inocêncio de Oliveira: ?o que está acontecendo?? Inocêncio, com seu olhar arregalado, responde: ?o PT tucanou?.
Esta leitura tem um desdobramento: a seguida consideração de agora é a vez do PSDB bancar o PT, isto é, neste imaginário, fazer uma ?oposição feroz?. Mas cabe aos governadores do PSDB estender o manto da ?governabilidade?. É uma maneira de propor ao espectador/leitor que no fundo, nada mudou nem vai mudar. A vitória do PT seria apenas uma ?troca de cadeiras?. Quer dizer: depois da ?rejeição? ao PT, tecla em que a esmagadora maioria da mídia bateu por décadas a fio, vem agora a tecla da sua ?doma?. Diante da espetacular vitória de Lula resta a alternativa de ?neutralizá-la? durante a ?transição?.
Dias atrás o apresentador Bóris Casoy, do ?Jornal da Record?, retornou ao tema, por um outro viés. Primeiro o jornal noticiou as expectativas positivas da população que pesquisa do Ibope apontava (67% de ótimo e bom, e 21% de regular). Casoy comentou então que o governo teria ?credibilidade? para fazer ?as reformas? que ?exigem sacrifícios?. Daí seguiu-se a notícia de que Lula recebeu a caneta que pertencera ao sindicalista Santo Dias, assassinado num conflito de rua, para assinar o termo de posse. Seguiram-se notícias sobre as promessas do PT de não cair em promessas de cargos. Comentário: ?todo governo que sobe abomina o fisiologismo?. ?Mas se não ceder ao toma lá dá cá, não governa?. ?Os governos teimam, forçam, mas acabam domesticados?. O apresentador voltou ao tema ?governo? ainda ao comentar as discussões e acordos entre o futuro e o atual governo em torno da arrecadação: ?governo e governo eleito se uniram para meter a mão no bolso do contribuinte?. Dessa forma os comentários foram dando um giro de 180 graus, saindo da credibilidade para chegar ao ?assalto? a este ser fantástico, que é todos e é ninguém, ?o contribuinte?. Neste giro fica ressaltado o papel providencial da mídia: só ela, de fato, defende o pobre (ou rico) ?contribuinte?.
A caneta
E meio a estas reviravoltas da ?transição? a caneta de Santo Dias (entregue a Lula pelo deputado Luís Eduardo Greenhalg) traz à tona o que a nossa mídia tem dificuldade de assimilar: carisma. Por quê? Porque o carisma define uma relação entre líder e liderados que a mídia pode constatar, mas não ?mediar?, que é o que ela gosta de fazer. E Lula é o mais carismático presidente eleito desde os tempos de Getúlio Vargas (o carisma de Juscelino foi construído depois de sua gestão, tipo ?éramos felizes e não sabíamos?).
Essa dificuldade se transforma em aversão. Hugo Chávez, na Venezuela, tem carisma? É óbvio que sim, pois senão não teria sobrevivido à tentativa de golpe tempos atrás. Mas para a mídia não: Chávez tem é um populismo bronco de dinossauro político. Lula tem carisma? Até que tem, a mídia tem que reconhecer. Mas espera que esse carisma vá de encontro ao ?realismo? da governabilidade. Ou então que seja usado no ?bom? sentido, isto é, o de domesticar os aliados de primeira hora. ?Só mesmo ele? é o título da matéria de Veja desta semana (4/12/02, pág. 54) sobre a fartamente noticiada reunião de Lula com os sindicalistas. O teor da matéria é o de expor que só alguém que ?veio do meio sindical e da esquerda? (note-se a sutileza do verbo, ?veio?) teria respaldo para por um ?freio? nos sindicalistas de maneira tão ?dura e explícita?, como se no Brasil dos últimos anos houvesse um transbordamento de poder por parte dos sindicatos. Diante desta ?esperança? passa em brancas nuvens a convocação do próprio Lula no mesmo encontro, e noticiada na mesma reportagem: ?o movimento sindical precisa acabar com essa história de só funcionar na época da data-base e depois ficar um ano sem ter o que fazer?. Tal convocação sim, só o Lula teria condições morais de fazer.
O novo desafio para Lula
Há uma sutil rotação no ar. Lula foi eleito com o desafio de promover mudanças. O otimismo captado pelo Ibope aponta para isso: na mesma pesquisa 8% acham que ele vai cumprir todas as promessas, 48% a maioria delas e 21% a minoria. Sobre esta esperança está se estendendo o manto das ?reformas necessárias?: fala-se com insistência na da previdência, na tributária e na da legislação trabalhista. Ou seja, a retórica que nos recobre o cotidiano a partir da mídia está mastigando o carismático Lula para transformá-lo no administrador, de bom ou mau grado, da pauta das classes dirigentes, ou das que pensam que o são, como parte das classes médias. Como a de governo, esta também é uma ?transição? que nos acomete, e um novo desafio para Lula e a equipe que o acompanha. Dependerá de suas atitudes enfrentar ou não esta nova retórica."