DEPOIMENTO / OTAVIO FRIAS FILHO
André Leite (*)
Otavio Frias Filho, diretor de redação da Folha
de S. Paulo, apareceu na Escola de Comunicação
e Artes da Universidade de São Paulo com um terno escuro.
Usava uma gravata vinho. Veio direto do trabalho. Parecia tenso
desde o começo até o final.
Eles estavam ali para a aula de encerramento da disciplina ministrada em conjunto com o jornal que se autointitula o maior do país. Por meio de um convênio, reeditado depois de duas décadas, os alunos do departamento de jornalismo da ECA puderam ouvir palestras com maior parte dos jornalistas da Folha.
Depois de um relato sobre a história do jornal, de cerca de uma hora, Frias enfrentou os alunos com muita elegância. Nem um momento de entrevero como o vivido por ele e o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva no almoço de 19 de julho último. Briga aliás esmiuçada por Frias. “Eu disse que não tinha candidato. Eu anulo meu voto há vinte anos”, respondeu quando Lula insinuou que seu candidato ia mal nas pesquisas.
Apesar da cordialidade, não faltaram declarações sinceras. O concorrente O Estado de S. Paulo foi atacado: “Eles não só defenderam a candidatura Serra em editorial como muitas vezes enviesaram o noticiário para ajudar o candidato governista”.
Frias também criticou o denuncismo que assola a imprensa desde o impeachment de Collor. “Um promotor público passa a denúncia para um repórter. O repórter publica. E você criou uma bola de neve que passa a rolar contra a pessoa”. Sobrou até para Fernando Henrique Cardoso. “A retração que nós vivemos nos últimos anos de FHC fez com que o mercado, que era muito favorável ao jornalista, se tornasse um mercado menos favorável, ou até desfavorável.”
A seguir, os principais pontos do depoimento de Frias aos estudantes:
A briga com Lula
No encontro com Lula, fiz uma pergunta sobre que tipo de preparação ele vinha desenvolvendo para se capacitar a ser presidente da República. Para fazer essa pergunta, cheguei a dizer que sentia um preconceito na sociedade contra ele, mas pessoalmente era contra a tese de que alguém não possa ocupar um cargo desta importância só porque não tem faculdade. Ainda citei o caso do Abraham Lincoln como sendo um dos maiores estadistas da história e que teve uma trajetória de autodidatismo, uma pessoa que estudou com esforço próprio. Fiz todo esse preâmbulo para dizer que o que as pessoas criticam e não entendem é o que Lula tinha feito nos últimos 20 anos, quando teve condições para se preparar. Perguntei se ele tinha feito cursos ou buscado algum tipo de aprendizado mais sistemático. Ele disse mal-humorado que não ia responder a pergunta porque a achava preconceituosa. Eu retruquei: você está tentando se credenciar para dirigir 170 milhões de brasileiros; deveria responder o que tem feito para se preparar.
No final do encontro, eu perguntei sobre a aliança com o PL. Aí perguntei em termos mais ríspidos. Disse que as pessoas achavam normal que houvesse uma política de alianças do PT em relação aos outros partidos, mas que a expectativa era de que essa aliança se circunscrevesse no campo da esquerda e centro-esquerda, não que chegasse a um partido de direita, que sempre funcionou como linha auxiliar do malufismo.
Ele ficou bastante alterado. Disse que não sabia que eu estava naquele encontro na condição de jornalista, se soubesse não teria vindo. “Não tenho culpa se seu candidato está indo mal nas pesquisas”, ele atacou. Disse que não tinha candidato, que anulo meu voto há vinte anos para poder psicologicamente me colocar como uma pessoa que não tem candidatos. No meio dessa altercação ele se levantou e foi embora.
Eu estava determinado a inquiri-lo, fazer perguntas incômodas, isso faz parte da minha condição de jornalista. Acho que na segunda pergunta fui incisivo demais. Também acho que ele estava pouco feliz. Depois eu soube que aquele foi o dia em que, de manhã, ele visitou a fábrica onde trabalhou e se emocionou, chegou a chorar. Quero crer que o stress de campanha e a manhã emocionada fizeram com que naquele dia ele estivesse com o humor um pouco alterado.
Não posso deixar de registrar a minha impressão de que ele não é uma pessoa que não está acostumada a ouvir críticas e que reage mal quando as ouve. Ele está sempre cercado por uma aura de proteção. Qualquer crítica é associada a preconceito social. Também acho que isso acontece porque ele tem uma trajetória de quem sempre foi estilingue, nunca foi vidraça. Quando vira vidraça, tende a reagir mal.
História de mudanças
Ao contrário do principal concorrente, o jornal O Estado de S. Paulo, a Folha sempre foi um periódico com características muito plásticas, muito dinâmicas, muito mais permeável a influências e a acontecimentos conjunturais de cada período.
Também ao contrário do Estado de São Paulo, a Folha foi um jornal que passou por diferentes regimes de propriedade. É difícil traçar uma história linear e é difícil também ver características dogmáticas na tradição do jornal.
Definiria a Folha com um jornal mais aberto, mais plástico em termos de se adaptar a cada período, a cada situação e também de expressar as demandas, as aspirações que caracterizavam cada período e cada situação.
Circulação limitada
O Brasil não tem tradição de jornais com circulação propriamente dita nacional. Isso acontece por exemplo também nos EUA, onde não existe um jornal uma publicação que se possa dizer numericamente, quantitativamente, uma circulação nacional.
A circulação de um jornal como o New York Times, que é
muito grande, é concentrada em algumas regiões. A
circulação do Los Angeles Times é concentrada
na Califórnia. O único jornal que talvez pudesse se
dizer que talvez tenha uma característica nacional é
o Wall Street Journal, que é um jornal setorizado,
de informação econômica.
No Brasil, existem alguns jornais, eu diria que a partir dos anos 70, e sobretudo nos anos 80, que embora não tenham uma circulação propriamente nacional, tem uma irradiação, uma capacidade de influir em termos dos formadores de opinião, em escala nacional.
A título de ilustração, cerca de 50% dos exemplares da Folha circulam na Grande São Paulo. Trinta por cento vão para o interior do Estado. Só 20% seguem para os outros Estados. Apesar disso, dos jornais brasileiros considerados de influência, de repercussão nacional, a Folha é sem dúvida o jornal que tem a maior circulação fora do seu Estado sede.
Lucro: Folha capitalista
A história recente da Folha se encaixa muito bem na transição entre dois modelos de jornalismo. De um lado o modelo tradicional, que vigorou antes do regime militar. Do outro lado, o modelo, que na falta de melhor denominação, eu estou chamando de modelo de imprensa de mercado, que adquiriu uma certa proeminência no Brasil do final do regime militar para cá.
No modelo tradicional o foco da atuação dos jornais era a obtenção de poder e de prestígio institucional, prestígio político. Geralmente os jornais eram utilizados pelos seus proprietários ou para alavancar projetos de natureza político-partidária, ou para alavancar negócios particulares, que nada tinham a ver com o setor jornalístico e de comunicações.
A figura do Chatô se associa com essa segunda atitude, era um veículo que barganhava com o governo, no sentido de trocar apoio para conseguir vantagens e concessões.
A partir da década de 80 o foco do jornal passa a ser o objetivo de qualquer empresa capitalista, ampliar sua fatia de mercado, manter sua margem de lucro, reinvestir para crescer. As empresas passam a seguir as regras do capitalismo.
Houve também uma forte profissionalização entre os jornalistas. As pessoas têm apenas um trabalho e recebem remunerações que são bastante melhores.
Octavio Frias de Oliveira e Golbery
Em 1974 houve uma mudança de governo e assumiu o general
Geisel, que deu início a política de distensão.
Mais ou menos em janeiro de 74, meu pai fez um contato com o general
Golbery, que viria a ser o homem forte do governo. Ele definiu em
linhas genéricas o que os militares iam fazer em termos de
distensão e liberalização do regime. Chegou
até estimular que houvesse dois jornais com influência
política em São Paulo, que à época estava
concentrada no jornal O Estado de S. Paulo, crítico
da ditadura àquela época.
Folha e FHC
Durante a o período FHC a Folha se manteve numa atitude bastante distante em relação ao governo, e a memória de algumas reportagens incômodas contra FHC publicadas na Folha talvez seja suficiente para evidenciar isso. A Folha foi o jornal que publicou a compra de votos de parlamentares para a reeleição. A Folha foi o jornal que publicou os grampos do BNDES, com os bastidores das privatizações das telecomunicações.
Recentemente numa entrevista a revista Veja, Fernando Henrique, se referindo as mágoas que tinha nesse período de oito anos, disse que num determinado momento, jornais como a Folha, queriam produzir artificialmente um impeachment contra ele.
A opinião dos donos no noticiário
O peso da minha opinião no noticiário é muito restrito e é muito menor do que uma pessoa de fora possa supor.
Se eu quisesse exercer uma influência pessoal imprimindo a marca dessa influência no noticiário, a possibilidade real de que isso ocorresse seria relativamente pequena. Você tem uma série de elementos que limitam muito o arbítrio de quem está comandando uma publicação como a Folha. Você está limitado de um lado pelo público, que já tem uma certa expectativa em relação ao jornal. A Folha é considerado um jornal muito normatizado. É um jornal que no fim da década de 80 levou a normatização até um limite que eu considero paroxístico – de vários anos para cá temos procurado flexibilizar as normas do Manual da Folha. Há uma parafernália de dispositivos que nós temos que seguir, um padrão jornalístico em termos de apuração e divulgação de notícias. Não obstante esse conjunto de normas, há ainda benéfica vigilância que é exercida pela concorrência, que com suas edições, torna-se um parâmetro de comparação para nosso leitor.
O Estadão e o editorial pró-Serra
Acho legítimo o Estado colocar no editorial que é favorável ao Serra. Só que eu percebi um enviesamento do noticiário. Não tem ninguém aqui do jornal para defendê-los, mas ficou claro para mim que eles não só defenderam a candidatura Serra em editorial como muitas vezes eles enviesaram o noticiário para ajudar a candidatura Serra.
Também acho legítimo que um jornal como a Folha, por zelar muito intensamente por seu apartidarismo, não tome partido em relação a nenhum candidato.
Capital estrangeiro e as dívidas
Considero [a abertura do setor de mídia para o capital estrangeiro] uma medida acertada, porque vai permitir, em algum momento, que as empresas se capitalizem. Vai permitir que haja aportes de recursos nas empresas de mídia brasileira que vão gerar diversificação e crescimento, enfim, a dinâmica do capitalismo. Em curto prazo, porém, eu tenho impressão de que não haverá capital estrangeiro entrando. O ambiente internacional é muito avesso a investimentos, e a América Latina é considerada uma região pouco compensadora para investir neste momento.
Acredito que os investimentos ocorram, mas não a curto ou em médio prazo.
As empresas investiram muito na segunda metade da década de 90, e chegou a hora de pagar a conta. No caso brasileiro, esse pagar a conta está agravado pelo fato de que, por causa da desvalorização cambial, as dívidas que estavam em dólar se multiplicaram. As empresas estão num momento de cortar custos, apresentar resultados, para poder pagar suas dívidas. Isso prejudica muito o produto.
Estamos com um jornal cerca de 20% menor em termos de espaço editorial do que estávamos há três anos. Hoje as empresas estão muito preocupadas em obter rentabilidade que garanta o pagamento dos compromissos financeiros assumidos na época da expansão.
Na hora de estabelecer corte de custos existe sim essa briga interna. A empresa sempre quer um corte nas despesas e você luta para cortar menos, até que se chega a um consenso. Apesar disso, nós temos a preocupação de preservar o produto. Como a parte de conteúdo é a parte que lida diretamente com a qualidade do produto, nós temos a preocupação de preservar esta área.
Nos últimos três anos, os cortes na empresa como um todo chegaram a mais de 30%. Na redação esses cortes, numa visão pessimista, chegam a 25%. Na parte internacional, nós gostaríamos de ter uma ampla rede de correspondentes, como de fato chegamos a ter. Tivemos até 12 correspondentes trabalhando em tempo integral para o jornal no exterior. Hoje esse plantel está muito reduzido. É até humilhante você pensar que o maior jornal do país, ou o jornal que se jacta de ser o maior jornal do país, tem uma rede no exterior tão ínfima. E em fevereiro próximo essa rede deve ser desmontada.
A retração que nós vivemos nos últimos anos do governo FHC fez com que o mercado, que era muito favorável ao jornalista, se tornasse num mercado menos favorável, ou até desfavorável.
Formação do jornalista
Todos nós que atuamos no jornalismo deveríamos aprimorar nosso trabalho do ponto de vista técnico. Quando eu digo técnico, não estou me referindo ao aspecto tecnológico. Estou me referindo a capacitação intelectual para que nós compreendamos e discutamos o que cobrimos.
Todo investimento em formação especializada é útil. Não sei como são as estruturas dos cursos atualmente, mas seria ideal que o aluno pudesse tomar aulas em outras unidades, dependendo de suas aptidões pessoais. Eu acho que um aluno de comunicação que tem certeza do que quer fazer profissionalmente, que é o jornalismo, e ao mesmo tempo tenha uma afinidade com literatura, deveria fazer vários dos seus créditos numa faculdade de letras.
Esse tipo de semi-especialização é útil. Digo “semi” porque, por mais que haja espaço para essas afinidades de aptidão pessoal, o jornalismo sempre será uma profissão com baixa especialização. Na vida acadêmica, na vida tecnocrática, você tem níveis de especialização que não são possíveis de se praticar no jornalismo. Há um componente de superficialidade, de generalidade, que é quase imanente a profissão. Levando em conta que existe esse componente, acho que temos que melhorar nossas aptidões técnicas.
Outro aspecto que se levanta é essa eterna discussão
entre ensino mais teórico e ensino mais prático. Eu
sou muito simpático da idéia de que haja predomínio
da informação teórica. Ficar quatro anos ou
até mais na universidade é uma oportunidade rara que
a pessoa tem de se preparar do ponto de vista intelectual. Provavelmente
nunca mais na vida se terá a oportunidade de passar quatro
anos ou mais estudando para melhorar seu repertório intelectual
e cultural. Essa oportunidade não deveria ser desperdiçada
com aprendizado prático, até porque o aprendizado
prático na nossa profissão é rapidamente absorvido.
Em cinco ou seis meses aprende-se os rudimentos técnicos
da profissão. É óbvio que esses poucos meses
não bastam para virar um bom jornalista. Isso é um
trabalho para a vida toda. Já o aprendizado teórico
é um aprendizado em que não haverá outro momento
para que se dê o impulso possível de obter na faculdade.
O aprendizado prático você aprende na vida. Ele é
menos importante.
Manual
Os anos 70 foram anos de muita politização na Folha. Havia uma hipertrofia de opinião e uma atrofia do noticiário. É um exagero mas não foge muito da realidade: na época das Diretas até em texto de esporte tinha lá uma alusão à campanha. Achávamos que era preciso corrigir.
Eu não sou a favor de normatizar ou não normatizar um jornal. Em certos jornais extremamente normatizados, é saudável de tempos em tempos fazer uma política de desnormatização. Por outro lado, em jornais que estão muito desorganizados é importante implantar uma política de regras.
Essas coisas, como tudo na vida, têm vantagens e desvantagens. Quando você normatiza você estabelece critérios, dá parâmetros, propicia uma linguagem comum, permite que o produto se apresente com a mesma fisionomia, com o mesmo estilo aos olhos do público. Reduz o que se chama de erro por incompetência. Com regras pode-se garantir certos direitos, como o direito da parte acusada poder se manifestar.
As desvantagens também óbvias. Você estiola a criatividade, deixa os mais criativos com dificuldades para trabalhar. Acho que é saudável uma oxigenação, ou seja, um jornal ter períodos de certa rigidez normativa e outros de certa liberdade.
“Vitória” contra Collor
O impeachment do Collor trouxe efeitos nefastos. Ele subiu um pouco à cabeça. A vitória em relação ao Collor acabou criando uma mitologia de que nós jornalistas somos paladinos da Justiça, que nós estamos aí para corrigir os erros do mundo, que nós somos portadores da verdade e que governos corruptos vão se dar mal conosco.
Claro que há um aspecto positivo nisso. Mas há também um aspecto negativo. Nós ficamos mais arrogantes, menos autocríticos. Acho que proliferou uma certa prática que até recebeu um nome, o denuncismo. Estabeleceu-se uma corrente de transmissão que, levada ao extremo, é muito prejudicial ao trabalho jornalístico.
Um promotor público, geralmente com visões radicais da política, denuncia um governante. O repórter, com seu espírito crítico, publica aquela notícia. Você criou uma bola de neve que passa a rolar contra a pessoa. E nem sempre o trabalho do promotor e o trabalho do jornalista foram acompanhados do devido cuidado em termos de apuração rigorosa, e em termos de compreender que todo fato tem muitas facetas. São muito raras as situações em que é possível estabelecer quem é bandido e quem é mocinho. As realidades são sempre muito complexas. Essas sofisticações se perderam nos seguintes ao Collor. Qualquer denúncia ganhava manchete de jornal.
(*) jornalista e estudante da ECA (USP)