JORNALISMO CIENTÍFICO
Roberto Belisário (*)
O mundo está passando na janela e Carolina só vê parte dele. A que lhe causa impacto. Assim acontece com o qualquer jornalismo, incluindo o científico. Mas há águas agitadas debaixo dos túneis da ciência, prontas para emergir e talvez respingar na face da musa buarquiana. Se, é claro, ela não lhe for impermeável.
Astronomia, biotecnologia, nanociência, as estrelas do jornalismo científico alternam-se, como os campeões da Copa do Mundo. Mas nem sempre há correspondência entre a agitação na mídia e na comunidade científica. À margem da cobertura científica, há áreas efervescentes, folhas turbilhonando entre os cientistas, sem no entanto saltar aos olhos de Carolina.
"Colisões entre elétrons e átomos" talvez pareça uma expressão exótica, mas há décadas vem sendo responsável por uma parte considerável das publicações científicas e possui aplicações variadas, incluindo a fabricação de chips de computador. A revista Physical Review, uma das mais importantes da física, possui cinco edições simultâneas, sendo uma delas (Physical Review A) dedicada apenas à física atômica e molecular. Desta, o último número, de novembro/2002, possui mais de 15% dos artigos dedicados às colisões (20 matérias entre 130). Mas praticamente nada sobre isso aparece nos jornais.
Essa área não tem o apelo das outras, eis o ponto. Não é tão óbvio como cooptar os leitores com ela. Não há uma ligação tão cristalina com a tecnologia presente no cotidiano, como acontece com a biotecnologia e a nanociência; nem com o imaginário popular ou com grandes mistérios imbricados com o misticismo, como na astronomia, em certos temas da mecânica quântica ou na teoria da relatividade. O próprio leitor pode estar neste momento se indagando por que este texto vem falar justamente de assunto tão abstrato.
Apesar disso, ela tem uma ligação estreita com a nanotecnologia. Os artefatos nanotecnológicos têm um tamanho de umas poucas dezenas de átomos, e vários deles têm que ser construídos praticamente átomo por átomo, por processos onde a compreensão sobre as colisões entre átomos torna-se importante.
A nanotecnologia vem se tornando uma das estrelas maiores da mídia científica, mas é possível que o caráter de revolução tecnológica iminente da nanociência continue a abafar aspectos mais básicos das pesquisas envolvidas, e assim a área de colisões permaneça na berlinda. Não vou aqui simplesmente exortar os jornalistas a prestarem atenção à pobre e desprezada física atômica e molecular, ou aconselhar o leitor a ler os jornais tendo consciência de que a cobertura é sempre incompleta e cheia de vieses. Prefiro mostrar que a cobertura dessa área não é tão difícil quanto parece.
Átomos vagarosos
E não é tão difícil porque apareceu há 17 anos uma novidade que pode colocá-la no time dos estudos com forte potencial de cooptar o leitor, sem ser necessário nenhum malabarismo sensacionalista. A novidade é uma técnica de estudo na física atômica e molecular, identificada genericamente com a expressão "átomos frios". Como o nome indica, consiste em resfriar um gás à espetacular temperatura de alguns décimos de milionésimos de grau acima do zero absoluto (o zero absoluto é a menor temperatura possível, de -275,15?C). Com isso, pode-se observar fenômenos inacessíveis em situações normais.
A razão é que é difícil observar átomos na temperatura normal, quando viajam a cerca de 4.000 km/h, colidindo-se entre si inúmeras vezes por segundo, mas é muito mais fácil observá-los quase parados, perto do zero absoluto. O resultado pode ser uma revolução no estudo da física atômica e molecular. Pode-se, por exemplo, observar o que acontece durante as colisões ? normalmente, observa-se apenas o resultado delas, porque a colisão se dá muito rapidamente.
Observando bem de perto as colisões entre os átomos, pode-se acessar diversos aspectos do fenômeno que têm tanto apelo quanto as estrelas da mídia. Por exemplo, prevê-se que ela terá importância na construção de artefatos nanotecnológicos, pois átomos quase parados são muito mais fáceis de ser manipulados. Também, prevê-se a sua utilização em computadores quânticos, porque estes dependem de átomos em um estado chamado "emaranhado", que é extremamente instável, podendo ser destruído com qualquer perturbação mínima. O resfriamento extremo torna-os bem mais estáveis.
Já deu Nobel
Mas a conseqüência tantalizante do resfriamento extremo é que, a essa temperatura, os átomos deixam de se comportar como corpúsculos tradicionais (dito "comportamento clássico"), colidindo-se uns contra os outros, e passam a exibir comportamento quântico, ou seja, ondulatório. Grupos do mundo inteiro estão estudando a passagem do comportamento clássico para o quântico. O aspecto interessante disso é que as físicas clássica e quântica são radicalmente diferentes entre si que é muito tentador verificar o que acontece quando as duas são confrontadas numa situação intermediária. Observar fenômenos quânticos em sistemas macroscópicos é uma das partes mais excitantes da física experimental, porque permite testar paradoxos teóricos esquisitíssimos, como o gato de Schrödinger.
Será que isso será suficiente para que a área chegue às vistas do leitor nos jornais e revistas e na televisão?
Talvez sim. Pelo menos um aspecto já recebeu cobertura de impacto na m&iaciacute;dia: o condensado de Bose-Einstein, um novo estado da matéria, além dos conhecidos sólido, líquido e gasoso, caracterizado exatamente pelo comportamento quântico em nível quase macroscópico. Os átomos passam a se exibir características ondulatórias e a se comportar como uma entidade única. Previsto em 1925 por Albert Einstein a partir das pesquisas do físico indiano Nathan Bose, o fenômeno só foi confirmado em laboratório 70 anos depois, por causa da dificuldade em obter a temperatura extrema necessária. O feito valeu um prêmio Nobel em 2001, e por isso houve cobertura na mídia. Mas o tal condensado de Bose-Einstein também é uma estrela de abordagens especulativas, como em teorias sobre a consciência humana.
Tudo isso, mais o fato de que simplesmente não se sabe que aspecto tem um condensado de Bose-Einstein (serão necessários mais alguns anos de pesquisas para determinar suas características), torna-o uma entidade misteriosa, com potencial para cooptar a atenção do leitor. É tudo que a mídia quer.
Carolina e o Brasil
Esperemos que, se houver realmente uma tendência de os átomos frios abrirem os olhos da mídia para as colisões atômicas e moleculares, a ciência brasileira seja contemplada, pois aqui há pesquisas de ponta tanto na área de colisões tradicionais como na de átomos frios.
Os átomos frios são estudados principalmente no Instituto de Física da Universidade de São Carlos, e eles são um dos grupos mais ativos em colisões atômicas do país. O grupo é parte de um conglomerado maior de institutos de pesquisa, chamado Centro de Pesquisas em Óptica e Fotônica (CePOF), que reúne estudos sobre diversos assuntos envolvendo luz, incluindo fibras ópticas, amplificadores ópticos, lasers e átomos frios (que são resfriados a laser).
"Cada vez que conseguimos entrar num regime diferente, descobrimos coisas inéditas, que ainda não haviam sido previstas, que ninguém tinha pensado", diz Vanderlei Salvador Bagnato, que lidera o grupo de óptica em São Carlos. "Cada experimento que fazemos permite descobrir que não entendemos tanto quanto achávamos que entendíamos ? temos, por assim dizer, todo dia descoberto alguma coisa nova."
O Instituto de Física da Unicamp compete com universidades internacionais nas pesquisas, desta vez em temperatura ambiente ? e vem ganhando terreno. Em 1999, o grupo liderado pelos físicos Marco Aurélio Pinheiro Lima e Fernando Jorge da Paixão Filho abriu novas portas para o estudo de colisões entre elétrons e moléculas, quando conseguiu fazer um programa de computador capaz de realizar cálculos sobre colisões entre elétrons e sistemas moleculares com número ímpar de elétrons ("moléculas de camada aberta").
O interessante é que, até então, só se sabia equacionar moléculas com número par de elétrons, com raras exceções muito específicas. Posto desta forma, soa muito detalhista, mas o fato é que tais moléculas de camada aberta são em geral extremamente reativas e não permitem a realização de experimentos de colisão com elétrons (elas corroem os aparelhos!). E elas são muito importantes para diversas aplicações tecnológicas, incluindo a construção de chips. Não há praticamente nenhum resultado experimental na literatura científica sobre colisões de elétrons com essas moléculas. A lacuna tem então que ser preenchida por cálculos teóricos ? e o grupo da Unicamp conseguiu desenvolver o primeiro programa capaz de fazer isso.
Assunto não falta. No mundo e no Brasil. Temos pesquisa competitiva para mostrar. Possibilidades de despertar o interesse do leitor facilmente, ao gosto da mídia (no bom sentido!), não faltam. O que falta é… bom, talvez apenas a primeira matéria?
(*) Físico
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