Saturday, 21 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Programação de qualidade em risco

MANHATTAN CONNECTION

Antônio Brasil (*)

É grave a crise das TVs pagas brasileiras. Todos os dias surgem mais notícias sobre a decadência de todo o sistema. A situação das TVs alternativas piora e não parece poupar nada e ninguém. Nem mesmo alguns dos seus melhores programas, como o Manhattan Connection ? a mais antiga produção nacional da TV paga ainda no ar. Fui convidado recentemente para participar do programa, adorei o clima, pensei muito e fiquei ainda mais preocupado. O Manhattan Connection pode acabar nos próximos dias. Sua produtora ? a TBN, do jornalista Lucas Mendes ? ainda não conseguiu renovar uma parceria de quase 10 anos com o canal GNT, da Globosat, e a equipe já pensa na possibilidade mudança de canal ou até mesmo no fim do programa.

Se um programa deste nível, sucesso de público e de crítica, está com problemas para sobreviver, fica ainda mais difícil imaginar o futuro de nossas TVs por assinatura. Afinal, elas deveriam ser uma opção de qualidade tanto na forma como no conteúdo diferenciados e voltados para o interesse maior do público. Culpar sempre a crise econômica ou a alta do dólar não resolve nada. Nunca foi diferente no Brasil. A verdade é que ninguém vai pagar caro para assistir somente à alguns poucos filmes já exibidos no cinema, desfile de produtos inúteis em canais de vendas como o Shoptime ou as bobagens das TVs comunitárias.

Por incrível que pareça, no Brasil muitos ainda pagam pela TV a cabo somente por uma questão de qualidade de recepção, não se importando mais com tantos canais inúteis. Já desistiram das promessas das TVs segmentadas e só querem ver as novelas ou alguns poucos programas com uma imagem melhor.

A questão é simples. Se o custo aumenta e o serviço piora, a inadimplência é inevitável. Não adianta chorar e exigir mais dinheiro do público ou da viúva. O público não é bobo. Quando pode, sai em busca de alternativas ou de opções melhores. Mas se a grana está curta, simplesmente deixa de pagar por um serviço duvidoso e se contenta com as baixarias das TVs abertas.

Boas pautas

Lançado em março de 1993, o Manhattan Connection se tornou desde o início, em sinônimo de programa cult e inteligente. Um encontro marcado para todos aqueles que ainda acreditam na TV. A fórmula é muito simples. A produção do programa não acredita em grandes emoções, efeitos especiais ou custos mirabolantes. Apostou na inteligência do público e no poder de comunicação de uma equipe de jornalistas. Como todo o bom programa no estilo mesa-redonda, o programa se parece muito com uma das mais tradicionais instituições culturais brasileiras: a boa e velha conversa de botequim. A diferença é que a equipe é muito talentosa e o botequim fica em Nova York, a capital do mundo.

Ao contrário da maioria dos nossos programas de TV, Lucas Mendes preferiu não sair por aí simplesmente copiando as fórmulas televisivas estrangeiras para adaptá-las ao gosto (ou mau gosto) da grande maioria. Ao deixar a Globo, onde foi correspondente internacional e chefe de bureau durante muitos anos, convocou uma equipe de amigos jornalistas residentes em Nova York ? que incluía originalmente Paulo Francis, Nelson Motta e Caio Blinder ? para participarem de um projeto audacioso. Eles acreditaram que poderia existir vida inteligente na TV brasileira. As experiências de vida de cada um dos jornalistas garantiriam o conteúdo do programa e as diferenças de opinião se encarregariam da polêmica. Tudo muito simples e muito bom.

TV de qualidade não é feita somente com uma eterna choradeira sobre a falta de recursos e de oportunidades. Muito pelo contrário: é o investimento em talento, inteligência e, principalmente, na carência de um público insatisfeito com a mesmice da programação das longas noites de domingo. Nem tudo na TV precisa ser, necessariamente, “fantástico” ou “baixaria” para fazer sucesso. O segredo é acreditar que existe uma diversidade de públicos e manter o investimento em qualidade. Assim como outra paixão nacional com lugar cativo na TV, o futebol, os programas de mesa-redonda só precisam de bons profissionais e de bons temas.

Manhattan Connection evoluiu muito e está cada vez mais antenado com a atualidade. Transmite especiais ao vivo diretamente de Nova York e a equipe continua afinada com uma audiência garantida e fiel. Novos personagens como Arnaldo Jabor, do Rio de Janeiro (ou da Conexão Itapiru, como prefere) e Lúcia Guimarães, com boas pautas de cultura, conseguiram superar as crises e manter o altíssimo nível do programa. Tudo ali é produzido sempre com bom-humor, irreverência e muita informação. Mesa-redonda não é necessariamente uma fórmula desgastada e chata. Alguns canais ainda não perceberam que esses programas dependem essencialmente do talento dos apresentadores.

Respeito pelo público

É estimulante notar como se pode fazer um programa tão bom com tão poucos recursos. A fórmula televisiva não é nova nem original. Já havia feito enorme sucesso nas saudosas “resenhas esportivas” das noites de domingo. Ali também se acreditava principalmente na presença de jornalistas talentosos como João Saldanha, Nelson Rodrigues e Armando Nogueira, entre tantos outros. Os tempos mudaram, mas a idéia ainda é muito boa e o brasileiro continua gostando de assistir ou de participar de uma boa conversa. O grande número de e-mails recebidos semanalmente pela produção do Manhattan Connection comprova o interesse do público. O sucesso era mesmo inevitável.

Todos os brasileiros adoramos dar opinião, ainda mais quando o tema principal é os Estados Unidos. A conversa então tende a ser ainda mais animada: torna-se uma mistura de curiosidade, admiração, ódio e inveja, tudo ao mesmo tempo e sempre com muita paixão. Uma salada repleta de informações e distorções tão ricas e contraditórias como a nossa própria cultura. A única certeza de programas como o Manhattan Connection é que os americanos sempre nos fornecem boas pautas e que Nova York ainda é sonho de consumo de muitos brasileiros.

O sucesso gerou até mesmo alguns filhotes de qualidade, como a Revista Europa, do jornalista Sílio Boccanera, e o recém-lançado Saia Justa, ambos do GNT; e outros mais irônicos e irreverentes como o impagável Paquetá Connection, uma paródia muito engraçada produzida por publicitários e jornalistas cariocas. Eles criaram um grande impacto na mídia, mas tiveram vida curta. Não conseguiram vencer as barreiras do patrocínio e da divulgação.

Fazer TV independente ? e inteligente ? no Brasil é muito difícil. Ainda mais quando tem de competir com enlatados estrangeiros que nos chegam sem qualquer cerimônia e sempre a preço de banana. Ao contrário do cinema nacional, a produção independente de TV no Brasil sobrevive com muita ousadia, poucos recursos e depende somente da boa vontade de alguns poucos anunciantes e emissoras.

Manhattan Connection insiste em contrariar a fórmula e abrir um novo caminho para a realização de programas especialmente produzidos para as TVs pagas brasileiras. Mas tudo isso pode acabar a qualquer momento. O comunicado do canal GNT divulgado recentemente pela imprensa não garante o futuro do programa. As negociação prosseguem e, de quebra, são exigidas reduções de custo ainda maiores. A ameaça de cancelamento do programa persiste. Mas antes que sejamos surpreendidos por mais uma má notícia e nos tornemos “órfãos” de um dos melhores programas da TV paga, deveríamos nos mobilizar e exigir a sua manutenção. Afinal, pagamos muito caro para ter uma opção de TV diferenciada e não queremos ser inundados por enlatados estrangeiros de baixo custo e péssima qualidade.

Em tempos de liberação apressada de capital externo para as nossas combalidas TVs por assinatura, e da pouca discussão sobre seu futuro, condenar um dos seus únicos exemplos bem-sucedidos é um péssimo sinal. Não deve ser jamais encarado como caso único e isolado. A ameaça de cancelamento do Manhattan Connection também pode significar o começo de uma mobilização do público em protesto pelo descaso com que está sendo tratado pelas empresas programadoras de TVs pagas no Brasil. Assim como as regras de mercado ou a necessidade de lucro, o público telespectador também merece respeito.

(*) Jornalista, coordenador do Laboratório de TV, professor de Telejornalismo e doutorando em Ciência da Informação pelo convênio IBICT/UFRJ